Os admiradores da poética do Haikai, também chamado de “Haiku”, não podem deixar de ler os poemas do mestre japonês Bashô!
Haikai é um poema curto de origem japonesa. A palavra haikai é formada por dois termos “hai” (brincadeira, gracejo) e “kai” (harmonia, realização), ou seja, representa um poema humorístico. Essa forma poética foi criada no século XVI e acabou se popularizando pelo mundo.
Matsuo Bashō (松尾 芭蕉);(Tóquio, 1644 – Osaka, 28/11/1694); Matsuo Bashō, ou simplesmente Bashō, foi o poeta mais famoso do período Edo no Japão. Durante sua vida, Bashô foi reconhecido por seus trabalhos colaborando com a forma haikai no rengas, é reconhecido como um mestre da sucinta e clara forma haikai. Sua poesia é reconhecida internacionalmente e dentro do Japão muitos dos seus poemas são reproduzidos em monumentos e locais tradicionais. Foi ele quem codificou e estabeleceu os cânones do tradicional haikai japonês.
A poética do mestre japonês tem como características principais o desprendimento, simplicidade e a sensação de tranquilidade, sua poesia é intuitiva, há espontaneidade em seu olhar junto a natureza, palco de temas oriundos de sua contemplação com os objetos do cotidiano que estão presentes aos olhos sensíveis, vejamos nestes versos:
Um doce ruído
Interrompe meu sonho:
Gotas de chuva sobre a folhagem.
Imensa calma.
Penetrando as rochas
O canto das cigarras.
De que árvore florida
Chega? Não sei.
Mas é seu perfume...
Nesta noite
Ninguém pode deitar-se:
Lua cheia.
Para minha fadiga
Um albergue... Mas, oh,
Estas glicínias!
A essência de sua poesia pode ser percebida através de sua forma direta de observar, contemplar e interagir com objeto, está habilidade é adquirida por meditação nas práticas zen-budistas, a partir desta sua forma peculiar de observar nasce o haikai, na frase a seguir podemos entender como funciona seu olhar:
“Aprenda a respeito do pinheiro diretamente do pinheiro, a respeito do bambu, diretamente do bambu”.
A partir daí podemos entender como seu pensamento pode contribuir de maneira positiva com nossa forma de olhar e agir no mundo, entender sua obra exige de cada leitor sua própria interpretação da maneira que devemos fazer essa viagem neste mundo, ou seja, cabe a cada um caminhar com “nossas próprias pernas”, não podemos caminhar no mundo pelas pernas ou simplesmente pela boca dos outros.
“Como é admirável
Aquele que não pensa: “A vida é efêmera”
Ao ver um relâmpago!”
O contato com o zen budismo, através da presença do mestre Bucchô – então abade do templo Konponji em Kashima – revigora a sua poesia, favorecendo uma ampliação de horizontes. Isto ocorre a partir de 1681, quando conhece o mestre zen, e então a concisão do haikai vem enriquecida com “a amplidão do pensamento zen”. Chegou a viver por um tempo retirado numa cabana em Fukagaha, nas proximidades de uma plantação de bananas, daí a origem de seu nome (bashô: bananeira). Um incêndio em sua cabana, ocorrido um pouco depois, incita-o a retornar a vida de peregrino, reforçando nele ainda mais vivamente a percepção do sentido efêmero da vida.
Relata-se que num destes momentos de iluminação Bushô estava junto a seu mestre Bucchô quando escreveu seu clássico poema da rã no poço:
“Sobre o tanque
um ruído de rã
submergindo”
Em suas longas peregrinações Bashô nos traz um pequeno recorte de seus pensamentos que povoavam sua mente:
“Dias e noites vagueiam pela eternidade. Assim são os anos que vêm e vão como viajantes que lançam os barcos através dos mares ou cavalgam pela terra. Muitos foram os ancestrais que sucumbiram pela estrada. Também tenho sido tentado há muito pela nuvemovente ventania, tomado por um grande desejo de sempre partir” (BASHÔ, 2008, p. 31).
Sem dúvida que o haikai provoca um despertar pela sua simplicidade, há uma filosofia sensitiva que nesse sentido aproxima-se e faz contato com o zen budismo, o ponto de contato se faz na quebra da relação entre sujeito e objeto, provocando uma sabedoria distinta própria do vazio e a des-necessidade de atribuir um conceito ou um sentido material daquilo que transcende este mundo e não pode ser simplesmente tentar mensurar o imensurável.
Bashô traz de volta o ser humano “ao cotidiano mais elementar”, este retorno nos remete a um “despertar diante do fato”, nos traz as origens e nos faz mergulhar numa pureza que nem Platão poderia imaginar em seu “mundo das ideias”, a poesia tem essência do iluminado no mundo zen-budista, o iluminado não vagueia em um deserto do nada, tudo é como um, não há separação! Nossa mente é que interpreta e define o que é real para nós, nós ocidentais estamos ainda mais contaminados por esta forma de pensar, e é dessa ilusão epistemológica que os ensinamentos budistas tentam nos libertar, e para conseguir isso, devemos libertar a mente da ilusão de um eu independente e fixo, pois não existe um eu (anatman) como uma entidade independente e separada, todas as coisas na vida estão ligadas, de modo que a interconexão natural em tudo.
As artes marciais são um bom exemplo e exercício do “libertar a mente”, significa não permitir que a mente “pare” em algum lugar, este foi um sábio conselho do célebre monge zen Takuan Soho, ele dizia que a mente não-liberta de “mente detida”, este conselho foi dado para os dois mais renomados samurais do Japão, Musashi e Munenori, ele alertou-os que deter a mente resultaria em desastre:
“Quando você nota pela primeira vez a espada que está se movendo para ataca-lo, se pensa em rebatê-la do jeito que ela vem, sua mente parará a espada naquela posição, seus movimentos serão cancelados e você será derrubado pelo oponente. É isso que significa parar.”
Ou seja, a mente “para” quando ela pensa, em vez de saber, quando tenta algo, em vez de abandonar algo. A mente para quando se coloca a uma distância do corpo, ela não está unida ao corpo, no caso das artes marciais, libertar a mente significa criar uma ponte entre si mesmo e o adversário, porém não existe adversário, é tudo uma coisa só, pensar diferente é agir contra a própria natureza, os homens devem comportar-se em acordo com as transformações da natureza, entender sua dinâmica é crucial, entender as transformações é a essência da mente liberta, assim pensava Bashô
O Haikai de Bashô abre um caminho para a dimensão da sensibilidade em observar as coisas belas da natureza, esta sensibilidade nos mostra uma dimensão que nada é permanente, de acordo com anicca, todas as coisas mudam, nada é permanente ou independente, nem mesmo um eu, nós ocidentais ainda estamos presos a ideia de permanência e “eu”, esta é a origem de sofrimento, ou dakkha (deslocação), por causa da interconexão entre todas as coisas, nossas ações têm impacto sobre todas as outras pessoas, e precisamos refletir antes de agir.
Há um anime muito interessante no YouTube com o título “Winter days” no you tube, Fuyu no Hi é um anime de 2003, animado e dirigido por Kihachiro Kawamoto. É baseado em um dos renku (colaborações de poemas ligados), uma coleção de 1684 do mesmo nome, do século 17 do poeta japonês Basho. A criação do anime seguiu a tradicional natureza colaborativa do material de origem – o visual para cada uma das 36 estrofes foram criados independentemente por 35 animadores diferentes. Assim como muitos animadores japoneses, Kawamoto chamou os principais nomes da animação de todo o mundo. Cada animador foi convidado a contribuir com pelo menos 30 segundos para ilustrar a sua estrofe, e a maior parte das sequências são menos de um minuto. Fuyu no Hi venceu o Grand Prize of the Japan Media Arts Festival em 2003. Fuyu no Hi é uma colaboração incrível, visualmente deslumbrante dos maiores mestres de animação do mundo, unindo forças para criar um renku visual, um estilo de poesia específica para o Japão em que compositores escrever um poema como um grupo, cada poeta cria um verso diferente.
Vou deixar o link para apreciarem:
https://www.dailymotion.com/video/x1zp2mn
Bashô e seu Haikai, são muito bem analisados como uma força de expressão na obra “Filosofia do zen-budismo - Uma desconstrução da história da paixão ocidental” do filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han, lá ele faz um estudo comparativo das filosofias de Platão, Leibniz, Fichte, Shopenhauer, Nietzsche e Heidegger, entre outras, são confrontados com as intelecções filosóficas do zen-budismo, é muito interessante porque o método utilizado é como um método desbravador dos sentidos que cada filósofo trata temas muito caros e presentes na poesia haikai de Bashô.
Referências:
BASHÔ, Matsuo. Elogio della quiete. Milano: SE SRL, 2001.
BASHÔ, Matsuo. Piccolo manoscritto nella bisaccia. SE SRL, 2006.
BASHÔ, Matsuo. Trilha estreita ao confim. São Paulo: Iluminuras, 2008.
HAN, Byung-Chul. Filosofia do zen-budismo / tradução de Lucaas Machado - Petrópolis, RJ: Vozes, 2019
Musashi, Miyamoto – O livro dos cinco anéis. Tradução do japonês José Yamashiro, Barueri, SP: Novo Século Editora, 2015. (Coleção Estratégia)
http://fteixeira-dialogos.blogspot.com/2015/09/o-haikai-e-revelacao-do-instante.html