Completamos um ano desde que a humanidade caiu de joelhos diante do vírus mortal, o ser humano está aprendendo uma lição de humildade, o mundo com olhar incrédulo diante de tanto sofrimento é obrigado a observar o passar do tempo entrincheirados em suas casas, porem estão sendo travadas neste ambiente verdadeiras lutas numa guerra de vida e morte pela sobrevivência.
Toda a correria que vivíamos diariamente, de cima para baixo, de um canto a outro do planeta, sem tempo para nós e nossa família esta em stanby, o que contavam eram os compromissos da agenda, ouvíamos a todo instante “tempo é dinheiro”, e agora? Com a parada brusca que já perdura um ano, muitos não sabendo ainda lidar com o desafio entraram em depressão, realmente não é fácil ficar com o pensamento positivo e o corpo firme sobre as próprias pernas.
Muitas pessoas estão aceitando o desafio de humildade como uma oportunidade para evoluir, encaram este último ano como um “ano sabático”, um ano de muita reflexão, a humildade está despertando a consciência de nossas próprias limitações, como humildes seres humanos estamos ingressando num novo mundo, um mundo de regeneração, e para ingressar neste novo mundo o passaporte dos sobreviventes, neste mundo dividido entre vivos e mortos, é o desenvolvimento de virtudes como a sabedoria, tolerância, gratidão, gentileza e compreensão.
Para quem não sabe o termo sabático é muito precioso, o termo sabático vem do vocabulário hebraico também conhecido por Shemitá, que significa “libertação”, na tradução literal. O ano sabático é descrito no livro sagrado do povo judeu (Torá) como o período de descanso da terra, ou seja, onde os judeus não podiam cultivar a agricultura. Nosso cultivo neste nosso ano sabático, é voltado para nosso interior, com humildade estamos cultivando virtudes que estavam sendo esquecidas, estamos reforçando laços familiares e laços de amizade, outros enfrentam dificuldades para conviverem juntos, pois só agora estão aprendendo a conhecer seus parceiros de caminhada.
Então, após o confinamento neste um ano de pandemia, o sentimento de fadiga por falta do contato
social é comum e esperado. Afinal de contas sabemos que pessoas precisam de
pessoas, o mundo gira em torno de uma natureza mais humana, gira em torno de
suas ideias e atitudes, precisamos uns dos outros, desde o nascer a nossa puberdade somos
dependentes e só após longo aprendizado e convivência aprendemos a caminhar com
nossas próprias pernas e mesmo assim permanecemos ombro a ombro.
Penso que será necessário aprendermos a caminhar novamente, o confinamento está deixando nossas pernas inchadas e nosso andar titubeante, estamos muito ansiosos em voltar a trilhar os caminhos do mundo, só o fato de saber que poderemos já nos alivia a tensão, acredito que nosso olhar daqui para frente seja um pouco mais lento e faça paradas ao longo da trilha para admirar a paisagem. Numa passagem em Zaratustra o sábio de Nietzsche se ria dos turistas que subiam as montanhas como animais, estúpidos e suados, era nítido que não haviam aprendido que há vistas maravilhosas no caminho que sobe e é necessário a parada para se ganhar fôlego.
Aqui cabe um aparte, afinal quem é ou foi este tal de Zaratustra? O profeta Zaratustra, a quem os gregos chamavam de Zoroastro, foi um profeta e poeta nascido na Pérsia, o Zoroastrismo foi desenvolvido por Zoroastro ou Zaratustra se desenvolveu e expandiu durante o Império Persa na Antiguidade, por volta do século VI a.C., a religião se tornou predominante no Império. O zoroastrismo se caracterizou como uma religião da dualidade entre o bem e o mal.
Nietzsche é um filosofo alemão que amava a filosofia grega e foi de lá que buscou inspiração para escrever o livro “Assim Falou Zaratustra”, conta a história de um pensador que desce das montanhas para ensinar aos homens o que descobriu em seu isolamento. Nietzsche usa linguagem poética e aforismos para trazer seus preceitos, ele fazia duras criticas ao cristianismo, mas não necessariamente a Jesus.
Neste ano sabático estamos confinados em nosso ambiente familiar, estamos sendo forçados a usar freios e a reaprender que a lentidão também é uma virtude a ser reaprendida num mundo que a vida é obrigada a correr num ritmo cada vez maior, o tempo de um dia já não era suficiente para atender todos os compromissos de agenda. Neste último ano o tempo é o que menos importa, estamos gastando o tempo conversando com nossos familiares, estamos redescobrindo-os, estamos sabendo mais sobre suas vidas, seus sonhos, seus medos e receios, nosso olhar num primeiro instante é de surpresa, afinal agora é que estou enxergando o que antes apenas olhava.
A lentidão dos caracóis é um livro que foi escrito por Rubem Alves, um autor singular por sua sabedoria, seus livros têm muito a nos ensinar, este livro que li alguns anos atrás e releio eventualmente foi e é muito significativo, acredito que também foi para muitas pessoas que viviam a vida numa constante corrida. Somos sempre forçados a seguir para frente, seguir adiante, mas afinal a grande pergunta a ser feita: onde este caminho está nos levando? será uma caminhada impulsionada pela alegria fugaz do consumo de bens materiais?, ou tem algo mais importante a frente que nossa vista não alcança?
Neste último ano o consumo caiu atingindo a todos em razão dos danos causados pela Covid, por causa do distanciamento social, dos efeitos negativos sobre o mercado de trabalho e da queda dos serviços prestados às famílias, atingindo o tipo de consumo responsável necessários a sobrevivência básica e o tipo irresponsável/insustentável sem limites.
Aqui cabe um capítulo especial, neste ano sabático, aproveitamos para refletir acerca do consumo socialmente irresponsável, este tipo de consumo “consome” nossas economias assim como “consome” a fonte que é a natureza. O consumo está diretamente ligado ao nosso mundo globalizado, ele é fomentado pelas nações desenvolvidas e é responsável pela manutenção do desenvolvimento da sociedade, um aliado destas nações desenvolvidas é a mídia e é lá que se encontra o balcão de guloseimas, o estimulo e o apelo criados são muito fortes, sua arma está em nossa fragilidade que é o desejo, o ser humano é um ser desejante, ou a máxima: “somos seres desejantes destinados a incompletude”, e é isso que nos faz caminhar e continuar consumindo para preencher um vazio que jamais será preenchido. O vazio é alimentado por nossa falta de tempo em vivenciar o que realmente seja importante, falta leveza, falta vagareza no olhar para enxergar e assim ficamos mais suscetíveis em cair em armadilhas.
O mundo do trabalho foi o que sofreu o maior impacto, milhões de pessoas ficaram sem seus empregos, mudanças estão ocorrendo, tais como quem pode trabalha em casa.
Na forma dos caracóis que carregam suas casas e seu trabalho sobre as costas, estamos trabalhando em casa, pelo menos para aqueles profissionais cujo emprego não exige presença física em um local específico. Quem pode está aprendendo a viver e trabalhar em suas próprias casas, no chamado home office, a impressão é que nosso tempo atual rende mais do que antes, estamos aprendendo um novo formato de harmonização, o trabalho remoto veio para ficar, pesquisas já apontam que somos mais produtivos trabalhando remotamente, ou seja, em casa, só é preciso disciplina e organização.
Ficar em casa, porém, é inviável para muita gente, o pão de cada dia é ganho com o suor do trabalho diário no mundo exterior. O mundo está em polvorosa, temos uma crise sanitária e uma crise econômico-financeira, porém sem controlar a crise sanitária, não tem como manter a economia girando e resolvendo a crise econômico-financeira, sem condições econômico-financeiras não temos recursos para lutar contra a crise sanitária e vivos e sem saúde não podemos trabalhar. Muitos que não tem o que comer são obrigados a sair em busca do pão e correr o risco de morte pela contaminação do vírus, vivemos numa pedagogia da sobrevivência, vivemos literalmente num paradoxo mortal.
Mudanças estão sendo feitas na forma de deslocamentos, locomoção, convivência, porem entramos num ambiente ainda muito incerto, os problemas são cada vez mais complexos, será necessário apoiar-nos uns nos outros e confiar na inteligência colaborativa, as soluções estão nas diversidades, nas diferentes perspectivas pensadas por pessoas diferentes que pensam diferente, afinal como já disse antes: “pessoas precisam de pessoas”.
Neste
ano sabático, muitos tiveram de se reinventar, muitos pensaram a respeito do
que tinham a oferecer, o resultado desta avaliação é a pedra angular para
reconstrução de seu trabalho, construir sua própria proposta de reinvenção,
pensar a respeito de suas habilidades. A partir desta avaliação crítica serão
estabelecidos os objetivos para o futuro, no futuro bem próximo o mundo não
será como antes da pandemia, e será necessário o empoderamento das pessoas,
para que se reinventem de acordo com as necessidades que o futuro do trabalho
impõe. Uma questão abordada por empresas de grande porte é a robotização da mão de obra, logo é urgente pensar a respeito de nossas habilidades para este fururo muito próximo.
Neste ano sabático, ficou evidente o fato que o ser humano não pode ser entendido sem o trabalho e o trabalho, em si mesmo, reflete a condição humana, esta é uma relação pré-determinada entre o ser humano e o trabalho, entendido quase que como uma missão existencial, o trabalho é determinante na vida do ser humano como podemos ver ao longo da história, a consciência que o homem tem de desempenhar na vida uma tarefa concreta e pessoal, derivada de seu caráter único e ir-repetível, estabelece uma relação de valor e importância vitais a sua sobrevivência, relegando o valorizado status de “homem trabalhador”.
Diariamente agimos repetitivamente, deitamos, dormimos, acordamos, tomamos banho, desjejum, pegamos condução para o trabalho, trabalhamos muitas vezes fazendo a mesma coisa, tudo parece a mesmice de cada dia, mas não é, e nem por isto devemos nos sentir alienados, como bom heráclitiano, Heráclito de Éfeso diria que a cada instante nós mudamos e já não somos os mesmos, nem orgânica, nem intelectualmente, a metamorfose é parte de nossa evolução, estamos todos numa caminhada onde as paisagens mudam o tempo todo, basta ter os sentidos aguçados pelo bom humor, empatia e gratidão pelo simples fato de estar vivo!
Me veio a memória uma passagem de um dos melhores livros que li e reli, trata-se do livro Cem Anos de Solidão escrito pelo colombiano Gabriel Garcia Márquez, e jamais poderei me esquecer do personagem do Coronel Aureliano Buendia, nesta memória há uma pitada de angustia, o coronel trabalhava em home office, ele vivia fazendo repetidamente peixinhos de ouro, ele fazia e vendia os peixinhos de ouro por uma moeda de ouro, esta moeda recebida em pagamento era derretida e dela era feito outro peixinho de ouro, ele seguia diariamente nesse círculo vicioso, ele veio a morrer sozinho.
O trabalho do coronel era uma tarefa diária onde o principal valor na sua repetição estava no ato de “fazer”, vejo a decisão dele como uma forma dele se negar a viver num vazio depressivo, optou por executar uma tarefa com afinco e habilidade artística, tornando a tarefa um fazer humanizado, saiu da esfera do instinto. Entendo que repetição e rotinas funcionam como ancoras de referência neste mundo, sem referências seriamos como pandorgas sem rabo, sem rumo e sem direção. A luta diária dos homens na busca do vil metal em forma de moedas nas mãos do coronel se transformavam em magníficos ornamentos tendo agregado valor a algo que era apenas um agente de preço e discórdia. Acredito que esta forma de ver as coisas do mundo venham junto com a sabedoria da idade, por que não olhar os caracóis como agentes de sabedoria, assim com o mesmo olhar Rubem Alves.
A rotina diária do trabalho na busca do vil metal é na verdade a busca pelo pão que irá alimentar e garantir sobrevivência, é a busca diária do ser humano como pessoa humana não apenas em sua individualidade, mas como o ser em sua humanidade, ligando-o a todas as pessoas e seu ambiente por meio de seus direitos inalienáveis a vida, o ser humano depende de ser humano para se constituir em uma relação social garantindo a sobrevivência material e social da espécie civilizada.
Me permitam uma nota de roda pé: Trata-se de uma relação de dignidade, saber a diferença entre valor e preço é necessário para entender o conceito de dignidade, pois coisas têm valor, isto é, preço; a pessoa humana tem dignidade, tem valor, mas não tem preço, isto, independentemente de qualquer fator que tenhamos rotulado, seja ele, econômico, psíquico, físico ou social que se possa utilizar para demarcar a pluralidade humana na qual ninguém foi, é ou será igual a outra pessoa. Nisto consiste não a alteridade (a diferença entre pessoas e coisas ou entre coisas), mas a outredade, isto é, a diferença existencial que nos giza, e por isso todos temos dignidade, e não um preço.
A vagareza a nós imposta na pandemia não é a vagareza da negligência, é a vagareza daqueles que estão privados de sair ao mundo em busca do pão, a estes que sofrem sem o alimento na mesa, a vagareza é letal, neste caso, a celeridade nas ações sociais são extremamente necessárias, não há outra maneira de sobreviverem a crise que atingiu o planeta, a ajuda é o resgate da dignidade humana, vidas não tem preço.
As vagarezas dos caracóis podem ter uma leitura de prazer, trabalhar com prazer, é andar devagar e ver a beleza nos “entretantos” e a importância da caminhada, sem ter pressa para chegar aos “finalmentes”, pois se formos rápidos demais e chegamos aos “finalmentes” sem ter visto a beleza da caminhada, como disse Riobaldo, do Grande sertão: veredas, concordaria e acrescentaria: “O real não está na saída nem na chegada: ele dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Já pensou que andar depressa seja apenas uma
fuga?
Fontes:
ALVES, Rubem. A pedagogia dos caracóis. Campinas, SP: Verus, 2010.
HAMMITZSCH, Horst. O Zen na Arte da Cerimônia do Chá. Tradução de Alayde Mutzenbecher. São Paulo: Ed. Pensamento, 1993.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. 67ed.-Rio de Janeiro: Record, 2008
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falava Zaratustra. Tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2.edição.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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