O Museu do Silêncio pela escritora japonesa Yoko Ogawa
(Estação Liberdade, 2016, tradução de Rita Kohl).
Sobre a autora
Yoko Ogawa nasceu em Okayama, Japão, em 1962. A carreira literária precoce ocorreu de forma natural, por sempre ter sido uma leitora voraz, com especial apreço por clássicos japoneses, pelo Diário de Anne Frank e por obras de seu compatriota Kenzaburo Oe. Estreou em 1988, com Agehacho ga kowareru toki [A decomposição da borboleta], pelo qual obteve o prestigioso Prêmio Kaien, voltado a novos escritores. Prêmios, aliás, não faltam em sua carreira, valendo menção o Akutagawa pela novela Ninshin karenda [Diário da gravidez], o Izumi Kyoka por Burafuman no maiso [O enterro de Brahman], e o Tanizaki por Mina no koshin [A marcha de Mina]. Por A fórmula preferida do Professor, ela ainda arrebatou os prêmios Yomiuri e o da Sociedade Japonesa de Matemática. Yoko Ogawa vive em Ashiya, província de Hyogo ― nas proximidades de Kyoto ― com o marido e o filho.
A escritora japonesa Yoko Ogawa tem uma particularidade, ela foge de enredos convencionais e românticos. A começar pela arte da capa, a imagem utilizada é “Detalhe de Grande Buda”, referente a imagem da imensa estatua do Grande Buda de Nara (Nara-no-daibutsu), é o Buda sentado sobre pétalas de lótus, localizado no Templo Todaiji, na cidade de Nara, Japão.
A escolha da arte conciliou muito bem com o tema do livro, pois além da obra de suspense, as figuras dos pregadores do silêncio dão a impressão de serem monges de uma antiga seita budista, muito parecida com os monges do silêncio católicos em que São Bento exortava que a vida contemplativa é um dos maiores dons que Deus tem dado à Igreja. Nela o silêncio fala. Através dele se pode escutar a Deus, no caso dos monges Budistas o silêncio, a tranquilidade e a simplicidade são elementos que permitem o encontro com o eterno equilibrio de uma maneira que tenha significado, forma e propósito para tudo o que vamos fazer e para tudo o que somos. O Budismo não fala de Deus. Para o budista o mundo é um conjunto de forças, ou elementos, que se transformam e interagem num ciclo eterno de equilíbrio. O ser humano é só uma parte desse ciclo e a ideia de identidade individual é para eles uma ilusão.
A autora conta a história do sonho de uma velha ricaça em construir um museu bizarro, a ideia é preservar lembranças de pessoas que morreram no vilarejo em que mora. A velha senhora é grossa, rabugenta e seca, mas não porque seja pessoa má, mas porque ela está pensando em coisas mais profundas, superiores ao comum, ela se sente presa em seu destino de fazer o museu. Ela não tem escapatória, precisa fazer aquilo dar certo antes que seu tempo acabe. A sensação de destino e certa obsessão podem ser a origem desta grosseria, não é difícil de entendê-la, afinal quando somos mais velhos temos maior noção do esgotamento de nosso tempo. Quando nos deparamos com detalhes no olhar de Ogawa, que descreve bem uma coisa da decrepitude na velhice: a velha é nojenta, tem furúnculos, sua dentadura cai, ela cospe, porem isso não é descrito para ser nojento e nem cômico, é um aspecto da vida, efeito de ser velho, isto choca aqueles que negam o destino físico de todos nós.
Para levar adiante a tarefa de montar o museu, a velha contrata um museólogo de fora, experiente, ele tem uma paixão muito sincera pelo que faz, é devotado ao trabalho ele se dedica, vai a fundo e é ligado por amor ao seu oficio, para fazer com seriedade e entusiasmo genuínos o melhor museu possível.
Pouco a pouco o museólogo torna-se cúmplice da velha, sua filha adotiva e do jardineiro que construirá o edifício do museu. Também, gradativamente, o narrador familiariza-se com o mau humor, grosserias e as idiossincrasias da velha e o cotidiano do lugar.
Como em outros museus, o Museu do Silêncio destina-se a abrigar uma coleção de objetos que representa um patrimônio histórico ou cultural de uma época ou civilização. O narrador é um experiente museólogo, em vista disto temos na obra um apanhado geral do trabalho cuidadoso desses profissionais, esta é uma oportunidade para se ter uma ideia do processo que envolve o trabalho que vai desde catalogar, preservar, reparar e projetar o futuro espaço. Ou seja, todo o passo a passo da criação da alma desse mundo particular que é um museu. No caso do romance, na criação de um mundo silencioso, irreal que tem suas raízes na vida real das pessoas simples ou não. Mas estes objetos não podem ter uma simples conotação afetiva. Têm que representar fundamentalmente a vida das pessoas que morreram, cada objeto do museu precisa ser a metáfora perfeita da existência do finado.
Trecho do livro – pagina 45
“— Sempre que alguém da vila morre, recolho um único objeto relacionado àquela pessoa. É uma vila pequena, como você sabe, então não é todo dia que morre alguém. Mas não é fácil reunir esses objetos, algo que descobri na prática. Talvez fosse pesado demais para uma criança de onze anos. Mas, mesmo assim, consegui fazê-lo por muitas décadas. A minha maior dificuldade é porque não me contento com uma recordação qualquer. Nunca me contentei com algo fácil, uma roupa que a pessoa vestiu uma ou duas vezes, uma joia que viveu fechada no armário, uns óculos feitos três dias antes de morrer. O que eu quero são coisas que guardam, da forma mais vívida e fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram, entende? Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que possa eternamente impedir que a morte seja completa. Não são lembrancinhas sentimentais, não tem nada a ver com isso. É claro que o valor financeiro também está fora de questão” (página 45)
Entre os objetos coletados, estão, por exemplo, um DIU, que pertenceu a uma prostituta assassinada há cinquenta anos. Ou a capa de pele de bisão-do-rochedo-branco, que pertenceu a um “monge do silêncio”. O monge do silêncio e o bisão-do-rochedo-branco são referências imaginárias, no entanto na estória os pregadores do silêncio, que são monges vestidos por uma pele de bisões-dos-rochedos-brancos de uma seita misteriosa que defendem o desaparecimento das palavras. Nenhum personagem é nomeado, nem a cidade e pais são identificados, a estória trabalha na generalidade, assim o leitor pode aplicar a outras situações e outras cidades do mundo, no entanto percebe-se que o local onde a estória é narrada está bastante ligado a cultura japonesa, inclusive a jovem que ajuda o museólogo na descrição dos itens do museu é escrito a mão com caneta tinteiro, e no Japão a escrita à mão é muito valorizada, coisa que no restante do mundo está se perdendo tal habilidade, estamos substituindo pelo clicar de teclados, estamos perdendo uma bela habilidade humana.
A mensagem contida na obra nos remete a pensar que uma homenagem as pessoas quaisquer provocam uma reflexão sobre morte e esquecimento, ou morte e silêncio”, nos lembram de nossa finitude existencial e provocam uma angustia de não nos enxergarmos neste mundo.
À parte o projeto da velha, o vilarejo é sacudido por acontecimentos estranhos. Uma bomba explode, matando o monge do silêncio e ferindo a filha adotiva da velha. E uma série de assassinatos de mulheres guarda relação com a morte da prostituta, agora é inevitável uma crítica, outros acontecimentos dão a impressão de estarem soltos faltando uma liga, parece que alguns acontecimentos “caem de paraquedas”, talvez tenha de ser lido várias vezes para observar as nuances mais singelas.
A homenagem a pessoas quaisquer provoca uma reflexão sobre morte e esquecimento, ou morte e silêncio. Os dois únicos objetos afetivos que o museólogo leva para o vilarejo, o livro Diário de Anne Frank, que pertenceu à sua mãe, e um microscópio, herança de seu irmão, tornam-se emblemáticos.
Anne
Frank leva a pensar sobre os milhares de mortos na Segunda Guerra. As
meninas judias, que como Anne Frank, se esconderam em apartamentos clandestinos
para fugir da perseguição severa dos nazistas. Mas cujas vidas não ficaram
conhecidas, como a autora do diário, e foram esquecidas pela história.
Paradoxalmente, os milhares de mortos anônimos em Hiroshima e Nagasaki são lembrados permanentemente como
protagonistas da maior catástrofe provocada pelo homem nos tempos modernos,
ambos são grandes horrores que aconteceram promovidos por seres humanos contra
seres humanos. Por que será que os homens pensam que podem justificar a morte?
Já o microscópio mais do que revelar os mundos que se mantinham inacessíveis aos sentidos humanos, olhar e ver pela lente do microscópio tornou possível a produção de novas realidades, além do praticismo este objeto evoca olhar para a vida insignificante, olhar que tem paralelismo com o trabalho do escritor e quiçá do leitor, a partir deste instrumento foram lançadas bases para a emancipação da ciência em relação a filosofia e da revolução científica na física. Os personagens da literatura representam vidas quaisquer, que em verdade, somos nós, em dimensão universal. Através da ampliação de vidas minúsculas, percebemos a relação entre todos os seres humanos. Com o microscópio da literatura nos tornamos mais sensíveis à alteridade e ao conceito de universalidade. A inevitável morte é a equiparação da humanidade em comum, gênios ou medíocres, famosos ou anônimos, empresários ou trabalhadores, com a mesma finalidade para todos que seria a de nos ensinar a viver.
Os museus têm como pressuposto estudar, conservar, guardar objetos de valor histórico ou científico para fins de exibição pública, de modo a registrar à posteridade a memória e a importância que eles tiveram para a humanidade num período determinado, também servem para pensarmos o presente e refletirmos sobre o nosso tempo. Mas como seria no caso de um museu que tivesse como objetivo preservar lembranças de pessoas que morreram? Conseguiríamos imaginar que objetos poderiam preservar a lembrança de alguém próximo ou talvez a nós mesmos? Se me perguntassem qual objeto me identificaria, eu diria sem pestanejar que são meus óculos, as vezes penso que nasci de óculos.
A ideia que envolve o objeto vai além de um objeto que simplesmente represente a profissão de alguém, mesmo que estejamos vivendo numa sociedade de consumo onde os objetos possuem uma função descartável e muito passageira, alguns objetos tem particularidades onde são muito parecidos com as pessoas que os possuem, ao ponto de sabermos que a pessoa está próxima só de olhar o objeto, ou de nos lembrarmos da pessoa por carregar consigo algum objeto por sua fidelidade, apego e possíveis ícones de transformações em suas vidas.
Questiona-se o porquê de tal objeto e o que representa para si, as respostas poderão ou não coincidir com nossas respostas ou com as respostas que os outros poderiam nos dar, seria um confronto interessante, porque os nossos olhos usam lentes diferentes das lentes que os olhos dos outros usam, há muita subjetividade, há um imenso campo para imaginação e descobertas, lembrei de uma frase de Heidegger: “Nunca a verdade se pode ler a partir do que simplesmente é e do habitual”, tal ideia nos remete obviamente ao extraordinário, um museu do silêncio poderia “dar voz” ao objeto simples transitando ao extraordinário, numa visão que mergulhe no profundo silêncio onde pensamentos iriam tumultuar nossos pontos de contato e relativamente com a realidade de cada um, fazendo emergir emoções encobertas pela ação do tempo, onde o silêncio teria algo a nos dizer.
Um objeto por si só não pode transmitir algo se não estiver associado ou conectado as impressões causadas em seu possuidor ou observador, se vivo será necessário observação, se morto será necessária apropriação do modus vivendi , levando a cabo em sua definição estrita em latim, nos traduz a resistência de um acordo pelo qual partes de opiniões opostas concordam em discordar durante o tempo em que se obrigam a conviver, mediante acomodação dos respectivos interesses, dentro desta definição vale tanto para “vivo ou morto”. A acomodação dos interesses do morto deverá ser mediatizada pelo princípio do seu eu, único e individual, no impessoal todos são como são e na uniformidade ninguém quer “ser” como todo mundo é, a partir do extraordinário o objeto estará conectado ao seu possuidor, vivo ou morto como uma identidade pessoal, proporcionando algum sentido para o observador.
A morte tem mais a ver com os vivos do que com os mortos, a consciência da passagem do tempo nos leva a querer deixar o registro de nossas realizações como resistência, nós precisamos dizer que aquelas pessoas estiveram ali para confirmar a nossa própria existência.
Os objetos expostos no Museu do Silêncio, a cada um deles pertencerá a história do seu possuidor, e deverá ser levado em consideração que o mesmo objeto pode ser analisado de diferentes ângulos, o que leva não a um relativismo, mas à constatação da relatividade do conhecimento do observador, da interação deste com o objeto e da história do possuidor falecido.
Como podemos perceber o relativismo existente no interior do observador poderá causar uma passageira sensação de aprisionamento para um estado subjetivo de pura consciência ou pura libertação de amarras que temos em relação a rituais ligados a objetos os quais denominamos de amuletos, impregnados de intenções imagéticas dirigidos a eles tanto individualmente ou coletivamente como um arquétipo, no aspecto comum a ambos os casos Jung tratou da representação da imaginação ativa e dentre suas teorizações ele trata do inconsciente coletivo como a noção que surge como pano central a categoria de arquétipos.
O Museu do Silêncio é uma obra bastante simbólica da produção de Yoko Ogawa, sua literatura é excêntrica, preferindo temas mais mais duros e polêmicos, não raro flertando com o grotesco, o tema consegue nos fazer pensar e refletir sobre referências materiais e imateriais, reais e irreais, nossa abstração é provocada.
Fontes:
Ogawa, Yoko. O Museu do Silêncio. 2ª ed. Editora Estação Liberdade; Tradução: Rita Kohl; Outubro, 2016.
http://www.diariodeseriador.tv/2017/11/o-museu-do-silencio-morte-e-vida-em-um.html
https://www.estacaoliberdade.com.br/livraria/rita-kohl-na-radio-usp
https://lulunettes.wordpress.com/2016/11/16/livro-o-museu-do-silencio-yoko-ogawa/
https://www.respostas.com.br/o-que-e-o-budismo/
https://www.estacaoliberdade.com.br/livraria/museu-do-silencio