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segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O Mito de Procusto em Tempos de Tretas


Procusto era um personagem da mitologia grega que faz parte da história de Teseu, ele era um ladrão que agia na estrada entre Mégara e Atenas. Assaltava as pessoas que passavam e as obrigava a se deitarem numa cama de ferro, esticando-as até atingirem o comprimento da cama se fossem menores, ou com o uso de seu machado cortava uma parte das pernas se fossem maiores que essa cama.

Werner Jaeger já afirmava que os mitos “são histórias que sempre existiram, mas nunca aconteceram”, a criatividade humana deu vida as histórias fantásticas, e este o mito de Procusto, que apesar de parecer algo tão distante e longínquo, na verdade está presente em nós, nas diversas situações em que nossos interesses, desejos e anseios não encontram satisfação ou realização, em regra, representa a intolerância do ser humano em relação ao seu semelhante.

O mundo está cheio de “Procustos” com suas camas de ferro:

Há o Procusto na política, políticos os experts em tretas, tretas são ferramentas que estão dentro de sua cachola que servem para fazer vencer seus interesses políticos – ou até mesmo pessoais – não pensam duas vezes em usar uma treta para “cortar as pernas do povo”, desrespeitando, na maioria das vezes, suas mais legítimas necessidades, é mais comum e sua utilização não é exclusiva em nosso pais, o que muda é só a discrição.

Há o Procusto no mundo do trabalho, quando é imposto ao trabalhador, um modelo padronizado e violador das individualidades, é quando o trabalhador passa a ser chamado de colaborador, dele são exigidas uma multifuncionalidade e uma pluralidade que estão além dos compromissos inicialmente formalizados, ninguém escapa dele, podendo ser positivo ou negativo, o que fará valer a pena é o retorno que cada um tem neste mundo de desempenho sem limites, desde que aliado ao crescimento profissional esteja explicito o crescimento e respeito humano.

O Procusto também aparece nas relações em geral, nada mais escapa ao olhar ele, se a pessoa não corresponder, absoluta e idealmente às suas expectativas, ilusões ou não, então a vítima é colocada na cama de ferro! E é grande, muitas vezes, a vontade de esmagar o outro que em sua diferença insiste em não querer e fazer aquilo que exatamente queremos, alguns chegam a psicopatia, é quando as tretas se tornam perigosas, mudam em potencia de um status leve para grave.

Nem a família escapa, as manipulações através de tretas são infinitas, as tentativas de encaixar o outro dentro das expectativas próprias são um caldo efervescente. Maridos, esposas, filhos, por exemplo, teimam em transformar o outro à sua imagem e semelhança, em realizarem coisas e os mais íntimos desejos pessoais, que não conseguiram realizar apelam para através das tretas a manipulação do outro em sua auto realização.

A diversidade humana e social, seja ela relativa à sexualidade, raça, cultura e outros, põe à prova, constantemente, nossa capacidade de tolerância e de aceitação, as pessoas que falam e se comportam de formas diferentes, aprendem em ritmo diferente, não acreditam nas mesmas coisas, não têm opiniões parecidas, nem compartilham os mesmos sonhos, são alvos do Procusto.

As tretas estão vivas e em sua organicidade se desenvolvem em forma de conversas fiadas visíveis em noticiários e debates em rádio, televisão, e outras mídias, basta ouvir as vozes dos leigos dando opiniões em lugar de peritos, disso sabemos bem, este período de pandemia foram muitos os Procustos que se arvoraram nas mídias a dar opiniões furadas, verdadeiras tretas, nos colocando em frente ao dilema do mito do Procusto, muito é culpa desta nossa sociedade em teimar em generalizar que, em democracia, cada cidadão deve ter opiniões políticas e assim levarem as pessoas a emitirem juízos sobre tudo e qualquer assunto, independentemente de ter algum conhecimento, enfim, surgiram e surgem uma imensidão de asneiras que Wittgenstein rolaria de raiva em seu túmulo, teria esbravejado dizendo que as pessoas descrevem uma realidade por suas próprias invenções sem se preocuparem com o valor da verdade que dizem, não poderíamos falar acerca do que não podemos falar, devemos nos calar.  

Vivemos tempos mais coerentes ao Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã. Sim, aqui se trata da Moira de Erasmo, ela faz elogios a si mesma, obedecendo ao provérbio: “Se não tens quem te elogia, é bom que te elogies a ti próprio”, loucos que vestem pele de sábios, “não obstante as suas caretas, são apenas macacos vestidos de púrpura ou asnos cobertos de pele de leão: façam o que quiserem, haverá sempre uma pontinha de orelha a denunciar a cabeça de Midas”, são tantas as tretas em nosso entorno, tantos bufões de terno e gravata, intrusões, charlatães, que nos dão a impressão de vivermos num hospício noutra realidade alternativa, criada para seu divertimento sem qualquer medo de algum tipo de reprimenda.

Atualmente vivemos um grande desafio que é separar o joio do trigo, separar a verdade das tretas e lorotas, caprichos e impulsos, o que também dificulta esta separação é a fervura emocional humana nas mídias, ela é contagiante, sabemos que a sensação de falar e alguém o ouvir é uma liberdade de expressão que todo o ser humano ama, ama ser ouvido, ama ser admirado, ama ser curtido, por sermos seres elusivos e difíceis de entender, acaba dificultando decisões de renuncias em prol do outro.

Quando há a necessidade de renunciar ao princípio do prazer para dar lugar ao princípio da realidade e entrar no processo civilizatório sem tretas e lorotas, entra em choque sua individualidade e os interesses da sociedade, é quando estamos frente a frente ao dilema existencial: a tarefa contínua de respeitar e tolerar o outro com suas diferenças, peculiaridades e subjetividades e, por outro lado, absorver as leis – da natureza e da sociedade – que uma vez aceitas nos constituem como indivíduos dentro do coletivo, é quando sabemos que não pode ter tretas, lorotas, engodos ou qualquer outra artimanha, é quando não poderia haver irresponsabilidade em dar opinião de qualquer coisa que passe pela cachola sem se preocupar com a realidade, caso contrário muitos serão os estragos causados, como criando realidades alternativas, realidades de falsidades e imitações baratas, enfraquecendo nosso sentido de realidade.

Ao agir pensamos e não pensamos sobre consequências, nem sempre quando pensamos sabemos de fato quais serão, em geral supomos saber quais serão as consequências, as vezes ao errar ainda assim as consequências são positivas, mesmo errando se acerta, mesmo tentando acertar ainda assim erramos, vivemos surpresas, vivemos rotinas, vivemos ações e reações, movidas por impulsos e pulsões, vamos além do conhecido, impulsionados para além dos limites do nosso pensamento cognitivo e da nossa capacidade de representação, assim somos confrontados com duas opções: crescer expandindo o que podemos pensar e representar (ou seja, criar) ou reduzir o mundo que conhecemos, deitando num leito de Procusto e aparando-lhe aquilo que não cabe em nós (ou seja, destruir), o processo civilizatório é complexo e ativo, as culturas e seus processos civilizatórios vivenciam está tentativa de universalização dos direitos e valores humanos, vivemos entre decidir ir em frente criando outras expectativas ou paramos deitando na cama de Procusto se deixando destruir pelas tretas e lorotas.

Deitar na cama de Procusto e abrir o álbum de imagens do tempo revisitando os momentos felizes e aqueles não tão felizes assim, repassando vivencias na tentativa de desacontecer e viver hoje o passado reconstruído é impossível, Procusto é aquele que também ensina a não forçar a medida além daquilo que se pode suportar, as tretas e as lorotas também tem seus limites, aquelas que vivemos, lá nas páginas do tempo que ficaram para trás, ficaram para trás, vivemos hoje outras tretas e lorotas, porém estamos mais maduros e preparados para na não cair novamente na cama de Procusto, pois temos nossa medida construída sobre valores.

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