O fio invisível das relações humanas
Outro
dia, na fila do supermercado, ouvi uma senhora dizer: “A gente confia nas
pessoas por boa-fé, né? Se for pensar demais, não vive.” Ela falava da moça
do caixa que deu o troco sem contar direito. Ninguém conferiu, ninguém
reclamou. Parecia pouco importante, mas ali, entre sacolas e etiquetas de
preço, vi um tema filosófico se desenhando: a boa-fé como cimento invisível do
convívio.
A
boa-fé, antes de ser um princípio jurídico ou uma exigência moral, é uma aposta
cotidiana. É como atravessar a rua acreditando que o motorista vai respeitar o
sinal, ou deixar o celular carregando num café enquanto vai ao banheiro. Quem
vive desconfiando de tudo, vive encurralado. Quem confia em tudo, se expõe. E é
nesse equilíbrio instável que a boa-fé se instala — não como certeza, mas como
um gesto de esperança ativa.
O
que é boa-fé?
No
campo jurídico, a boa-fé é a expectativa legítima de que todos ajam com
honestidade, sem intenção de enganar. Mas, filosoficamente, ela é mais do que
um critério de conduta: é um modo de ser no mundo. Jean-Paul Sartre, em O
Ser e o Nada, fala da má-fé como uma forma de enganar a si mesmo. Por
contraste, a boa-fé seria a autenticidade — o esforço de viver assumindo a
liberdade e a responsabilidade dos próprios atos, sem se esconder atrás de
desculpas ou papéis sociais.
Mas
essa visão existencial ainda está centrada no indivíduo. E se a boa-fé fosse
pensada como um fenômeno relacional?
Boa-fé
como confiança radical
A
boa-fé é uma escolha que fazemos diante do outro: eu não te conheço, não sei do
que você é capaz, mas ainda assim ajo como se você fosse digno de confiança.
Isso é radical. Porque é justamente quando o outro é desconhecido, ambíguo ou
vulnerável que a boa-fé revela sua força criadora.
Quando
aceitamos que alguém diga “vou pagar depois”, que um vizinho cuide da
nossa planta, que um amigo guarde um segredo — estamos cedendo um espaço de
autonomia ao outro. Não há garantia de que ele agirá como esperamos. Ainda
assim, confiamos. A boa-fé, então, é um tipo de risco afetivo e simbólico que
torna a vida social possível.
A
falência da boa-fé
Vivemos
tempos em que a má-fé se organiza como regra de sobrevivência: contratos com
letras miúdas, relações baseadas em segundas intenções, discursos públicos
repletos de cinismo, incessantes ligações telefônicas suspeitas. A ironia virou
escudo contra a decepção, e a vigilância constante parece a única defesa contra
a esperteza alheia. Resultado? Uma sociedade onde o medo do engano paralisa a
generosidade.
Mas
sem boa-fé, o mundo vira um tribunal permanente. As relações deixam de fluir.
Tudo precisa ser provado, registrado, assinado. A espontaneidade morre sufocada
pelo receio. Como escreveu o filósofo brasileiro Gerd Bornheim, “a confiança é
uma aposta no que o outro pode ser, não no que ele já foi”.
Boa-fé
como gesto poético
Talvez
devêssemos pensar a boa-fé como uma forma de poesia cotidiana. Um gesto que,
mesmo simples, reinventa o sentido das relações. É quando oferecemos ao outro a
chance de ser digno, mesmo sem garantias. Quando esperamos o bem, sem
ingenuidade, mas com uma fé ativa na possibilidade de um mundo mais habitável.
Boa-fé,
no fundo, é acreditar que o outro também está tentando — como nós — ser alguém
melhor, mesmo quando tropeça. E talvez seja nesse espaço intermediário entre o
ideal e o erro que ela mais floresce: quando escolhemos confiar mesmo diante da
dúvida, e assim damos ao outro — e a nós mesmos — a chance de corresponder.