Outro dia, me peguei olhando para uma foto antiga — daquelas que aparecem nas redes sociais como “lembrança de tantos anos atrás”. Lá estava eu: mais encorpado, com outro corte de cabelo, outra roupa, outro jeito de sorrir. Me perguntei: “eu sou mesmo essa pessoa da foto?” E, mais fundo ainda: “o que me garante que continuo sendo ‘eu’, mesmo com tanta coisa diferente?”
Aí
entra Derek Parfit pela porta da dúvida — sem paletó, mas com uma pilha de
argumentos. Para ele, essa pergunta está mal formulada. A ideia de uma
identidade pessoal sólida, contínua, inquebrantável… pode ser apenas uma ilusão
útil. Parfit nos convida a abandonar essa obsessão por um “eu fixo” e a pensar
diferente: o que importa não é se somos exatamente a mesma pessoa, mas
se há continuidade suficiente entre nossas experiências, memórias e
intenções.
Um
feixe de conexões
Parfit
retoma uma ideia antiga de David Hume: de que a pessoa não é uma substância
estável, mas um feixe de percepções. Somos um monte de coisas juntas —
lembranças, vontades, medos, planos, traumas — amarradas por fios frágeis, como
quem carrega uma sacola de mercado cheia de itens variados. Às vezes, um ou
outro item cai no caminho, mas seguimos andando.
Na
prática, isso significa que o “eu” é mais como uma história que se reescreve
do que uma estrutura imutável. Se você não se lembra de algo que viveu na
infância, será que ainda é aquele mesmo “você”? Para Parfit, a resposta
é: isso não importa tanto. O que vale é a cadeia de ligações entre aquele
passado e o presente. A cola da continuidade psicológica.
Implicações
cotidianas
Veja
só: a gente muda de cidade, muda de círculo de amigos, muda de ideias. Às vezes
até muda de nome — por casamento, por escolha, por identidade de gênero. E
mesmo assim seguimos dizendo: “sou eu”. Parfit ajuda a entender que isso só é
possível porque há relações psicológicas suficientes que conectam essas
versões da pessoa — mesmo que o “eu” antigo pareça um estranho quando revisto
de longe.
Essa
visão pode nos aliviar. Não precisamos carregar a culpa de sermos consistentes
o tempo todo. Podemos aceitar que aquilo que éramos há cinco anos talvez não se
encaixe mais. E tudo bem. Isso não é falsidade, nem contradição. É vida
acontecendo.
E
se eu desaparecer?
Parfit
também propõe experiências mentais curiosas. Imagine que sua mente seja copiada
e colocada em outro corpo. Você acorda, lembra da sua infância, dos seus
amigos, do seu time de futebol. Você é “você”? Se sim, então talvez a identidade
pessoal não dependa do corpo, nem de uma alma imortal, mas dessa
continuidade mental.
Agora
imagine que duas cópias suas são feitas. Quem é o verdadeiro “você”? Parfit
diria que não há uma resposta única, porque o que importa não é a
identidade, mas a continuidade relacional. E aí vem a provocação: talvez
o “eu” não seja tão precioso ou indispensável quanto achávamos.
Um
alívio e um susto
Isso
tudo pode assustar. Se não existe um “eu” fixo, então o que somos afinal? Mas
também pode ser libertador. Parfit nos dá a chance de olhar para nós mesmos com
mais gentileza. Não somos prisioneiros de um passado que já não faz sentido.
Somos processos em andamento.
Como
quem anda num trem e vê paisagens mudando — às vezes sem perceber que também
mudou.
Então,
a metafísica das pessoas nos tira a ideia de uma âncora existencial… para nos
dar o leme. Em vez de buscarmos um “quem sou eu” definitivo, podemos perguntar:
“em que direção estou me tornando?”.
E
talvez, ao abandonar a busca pelo eu eterno, a gente se torne, paradoxalmente, mais
humano.