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terça-feira, 15 de julho de 2025

Cacofonia de Individualidades

Um ensaio sobre a colisão das vozes do eu no mundo contemporâneo

No meio do ônibus lotado, alguém conversa alto no celular. Outro escuta música sem fone. Uma senhora resmunga sozinha, um jovem grava um vídeo com voz de radialista. E você? Está ali, tentando pensar. Mas pensar em quê, com tanto barulho?

Vivemos cercados por vozes — reais, digitais, internas. Cada uma quer ser ouvida, cada uma acredita ter algo único a dizer. Mas o resultado, muitas vezes, é mais ruído que música. A isso podemos chamar de cacofonia de individualidades: um mundo onde todos têm algo a expressar, mas poucos têm tempo, espaço ou silêncio para escutar.

A ascensão do indivíduo que se afirma

A modernidade nos ensinou que ser indivíduo é uma conquista. Desvencilhar-se do grupo, da família, da tribo, da religião — para tornar-se um eu. Um eu com desejos próprios, gostos, opiniões, selfies, slogans. A filosofia moderna, de Descartes a Nietzsche, deu o tom: “penso, logo existo”; “torna-te quem tu és”.

Mas a partir do momento em que todos querem ser “quem são”, o mundo se enche de vozes que não necessariamente dialogam — elas competem, se sobrepõem, se atropelam. O resultado não é sinfonia, mas cacofonia. Um ruído constante, um excesso de presença que ameaça até mesmo a presença mais íntima: a de si consigo mesmo.

Individualidades que não se integram

A cacofonia surge porque os sujeitos não se afinam. Não há harmonia entre as individualidades quando cada uma toca um instrumento para si, sem escuta ou regência comum. A lógica da diferenciação extrema — tão valorizada na cultura atual — torna-se contraproducente quando esvazia a possibilidade de comunidade.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han afirma que vivemos em uma “sociedade da performance”, onde o sujeito precisa se afirmar constantemente, se mostrar interessante, diferente, produtivo, autêntico. O problema é que, nesse esforço contínuo de singularização, as conexões reais se rarefazem. Tornamo-nos ilhas sonoras.

A escuta como ato filosófico

Há, porém, uma saída. E ela não é o silêncio forçado, nem a submissão ao coletivo. A escuta pode ser um gesto radical. Ouvir o outro — verdadeiramente — é permitir que a sua individualidade me afete, que sua melodia me altere, que nossas notas dissonantes formem outra coisa que não apenas gritos sobrepostos.

O filósofo Martin Buber dizia que o encontro autêntico acontece quando há um “Eu-Tu” — uma relação onde o outro não é reduzido a função, objeto ou distração. Escutar, nesse sentido, é a base para qualquer possibilidade de comunhão entre vozes. É o começo da harmonia.

O coro possível

A cacofonia pode ser um estágio. Um estágio inicial, bruto, de um mundo que ainda está aprendendo a ser múltiplo. Se há muitas vozes, há também a matéria-prima para uma nova forma de convivência. Mas isso exige regência — e não no sentido autoritário, e sim poético: quem será o maestro que ensina a pausa, o tempo certo, o contraponto?

Talvez a filosofia não deva dar respostas, mas propor escutas. Um novo tipo de ética, onde a singularidade não é o fim, mas o ponto de partida para relações mais afinadas. Onde a diferença não vira ruído, mas se transforma em harmonia possível.

Epílogo: no meio do barulho

Você está ainda no ônibus. E começa a reparar: a senhora que resmunga tem um rosto cansado, o rapaz que grava vídeos repete frases de impacto como quem precisa se afirmar. Cada um desses sons carrega uma história. Cada um, um motivo para existir.

De repente, o barulho não desaparece. Mas você começa a escutar diferente.

E isso muda tudo.