Um ensaio sobre a colisão das vozes do eu no mundo contemporâneo
No
meio do ônibus lotado, alguém conversa alto no celular. Outro escuta música sem
fone. Uma senhora resmunga sozinha, um jovem grava um vídeo com voz de radialista.
E você? Está ali, tentando pensar. Mas pensar em quê, com tanto barulho?
Vivemos
cercados por vozes — reais, digitais, internas. Cada uma quer ser ouvida, cada
uma acredita ter algo único a dizer. Mas o resultado, muitas vezes, é mais
ruído que música. A isso podemos chamar de cacofonia de individualidades:
um mundo onde todos têm algo a expressar, mas poucos têm tempo, espaço ou
silêncio para escutar.
A
ascensão do indivíduo que se afirma
A
modernidade nos ensinou que ser indivíduo é uma conquista. Desvencilhar-se do
grupo, da família, da tribo, da religião — para tornar-se um eu. Um eu
com desejos próprios, gostos, opiniões, selfies, slogans. A filosofia moderna,
de Descartes a Nietzsche, deu o tom: “penso, logo existo”; “torna-te quem tu
és”.
Mas
a partir do momento em que todos querem ser “quem são”, o mundo se enche
de vozes que não necessariamente dialogam — elas competem, se sobrepõem, se
atropelam. O resultado não é sinfonia, mas cacofonia. Um ruído constante, um
excesso de presença que ameaça até mesmo a presença mais íntima: a de si
consigo mesmo.
Individualidades
que não se integram
A
cacofonia surge porque os sujeitos não se afinam. Não há harmonia entre as
individualidades quando cada uma toca um instrumento para si, sem escuta ou
regência comum. A lógica da diferenciação extrema — tão valorizada na cultura
atual — torna-se contraproducente quando esvazia a possibilidade de comunidade.
O
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han afirma que vivemos em uma “sociedade
da performance”, onde o sujeito precisa se afirmar constantemente, se mostrar
interessante, diferente, produtivo, autêntico. O problema é que, nesse esforço
contínuo de singularização, as conexões reais se rarefazem. Tornamo-nos ilhas
sonoras.
A
escuta como ato filosófico
Há,
porém, uma saída. E ela não é o silêncio forçado, nem a submissão ao coletivo.
A escuta pode ser um gesto radical. Ouvir o outro — verdadeiramente — é
permitir que a sua individualidade me afete, que sua melodia me altere, que
nossas notas dissonantes formem outra coisa que não apenas gritos sobrepostos.
O
filósofo Martin Buber dizia que o encontro autêntico acontece quando há
um “Eu-Tu” — uma relação onde o outro não é reduzido a função, objeto ou
distração. Escutar, nesse sentido, é a base para qualquer possibilidade de
comunhão entre vozes. É o começo da harmonia.
O
coro possível
A
cacofonia pode ser um estágio. Um estágio inicial, bruto, de um mundo que ainda
está aprendendo a ser múltiplo. Se há muitas vozes, há também a matéria-prima
para uma nova forma de convivência. Mas isso exige regência — e não no sentido
autoritário, e sim poético: quem será o maestro que ensina a pausa, o tempo
certo, o contraponto?
Talvez
a filosofia não deva dar respostas, mas propor escutas. Um novo tipo de ética,
onde a singularidade não é o fim, mas o ponto de partida para relações mais
afinadas. Onde a diferença não vira ruído, mas se transforma em harmonia
possível.
Epílogo:
no meio do barulho
Você
está ainda no ônibus. E começa a reparar: a senhora que resmunga tem um rosto
cansado, o rapaz que grava vídeos repete frases de impacto como quem precisa se
afirmar. Cada um desses sons carrega uma história. Cada um, um motivo para
existir.
De
repente, o barulho não desaparece. Mas você começa a escutar diferente.
E
isso muda tudo.