A preguiça do pensamento e o conforto do mesmo
Lá
estamos nós, mais uma vez, sentados no sofá confortável da cultura, assistindo
a reprise das mesmas ideias, rindo das mesmas piadas, ouvindo as mesmas músicas
e mastigando as mesmas opiniões mornas servidas em bandejas já desgastadas pelo
tempo. Nada de novo, nada de incômodo. Apenas o acolhimento morno da repetição.
Se há algo que caracteriza bem a nossa época, talvez seja essa mistura de
displicência e acomodação cultural: a sensação de que nada precisa ser
questionado porque tudo já foi debatido até a exaustão.
Essa
letargia do pensamento não é um fenômeno novo. Desde Platão, já se falava da
necessidade de romper com as sombras da caverna e encarar a luz do
conhecimento, mesmo que ela fosse ofuscante e desagradável. No entanto, há algo
de particularmente sofisticado na acomodação contemporânea: não é um simples
comodismo, mas um estado de espírito que se veste de engajamento superficial.
Vivemos
em tempos onde a cultura de massa se apresenta como um grande bufê de opções,
mas a sensação é de que todos servem os mesmos pratos. O entretenimento, a
política, a arte e até as formas de contestação parecem estar presas a fórmulas
repetidas, limitadas por um roteiro invisível que ninguém ousa reescrever. Em
nome da conveniência, aceita-se a estética do reciclado, o pensamento
pré-moldado e a indignação previsível. A própria crítica tornou-se um produto
de fácil digestão, embalado para consumo rápido e descartável.
O
pensador brasileiro Milton Santos já nos alertava sobre os perigos da
globalização perversa, onde a diversidade se vê reduzida a um espetáculo
homogêneo. Para ele, a verdadeira liberdade cultural não está na mera aceitação
do que nos é oferecido, mas na capacidade de recriação e reinvenção contínuas.
A grande armadilha da nossa era é confundir consumo com participação, e assim
nos tornamos espectadores do nosso próprio empobrecimento cultural.
A
displicência cultural é também um reflexo da preguiça de assumir riscos.
Qualquer nova ideia, antes mesmo de ser explorada, já é filtrada pelos
critérios do que é aceitável, do que é rentável, do que não incomoda demais.
Acomodação não significa simplesmente se contentar com pouco, mas aceitar
passivamente que o mundo se mova sem a nossa interferência. Enquanto isso, a
inovação verdadeira, o pensamento crítico genuíno e a arte que realmente
transforma permanecem à margem, soterrados pelo excesso de repetição.
É
preciso coragem para abandonar o sofá cultural e buscar algo que não esteja
pronto, que não venha empacotado e testado para agradar a maioria. Significa
abrir espaço para o incômodo, para o erro, para o desconhecido. Se há uma
revolução necessária hoje, talvez ela não seja tecnológica nem política, mas
uma revolução do pensamento: um convite para que deixemos de lado a
displicência e assumamos, enfim, a responsabilidade de criar, questionar e,
principalmente, reinventar o que chamamos de cultura.
Dentro
de alguns dias teremos a 14ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre/RS, será
realizada entre os dias 27/03/2025 a 01/06/2025, já visitei algumas exposições
e sempre me surpreenderam. Porque lembrei da Bienal, ora porque a exposição nos
tira da mesmice, e sempre me pergunto se a Bienal não seria uma oportunidade de
vivenciamentos decoloniais.
Aí
me ocorre, depende de como a bienal é vivenciada. Em teoria, uma bienal de arte
ou literatura pode ser uma excelente forma de sair da comodidade, pois expõe o
público a novas ideias, estéticas e narrativas que desafiam o pensamento e
ampliam a visão de mundo. Se alguém chega aberto ao inesperado, disposto a
explorar obras que saem do circuito comercial e a refletir sobre conceitos que
incomodam, então a bienal pode ser uma verdadeira sacudida na acomodação
cultural.
Por
outro lado, se a experiência for reduzida a um passeio previsível, onde as
interações seguem roteiros prontos e o público busca apenas confirmar o que já
gosta e conhece, então a bienal pode acabar sendo mais uma vitrine da mesmice.
Muitas vezes, até as exposições mais ousadas são suavizadas para atender ao
gosto do público, tornando-se menos um desafio e mais um evento confortável.
O
segredo está na atitude: se entramos numa bienal dispostos a sermos provocados
e a repensarmos nossas certezas, ela pode, sim, ser uma saída da comodidade.
Caso contrário, será só mais um programa cultural que reforça o conforto do já
estabelecido.
Fica
aí o link da 14 Bienal: https://www.bienalmercosul.art.br/