Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador Santos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Santos. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 24 de março de 2025

Letargia do Pensamento

A preguiça do pensamento e o conforto do mesmo

Lá estamos nós, mais uma vez, sentados no sofá confortável da cultura, assistindo a reprise das mesmas ideias, rindo das mesmas piadas, ouvindo as mesmas músicas e mastigando as mesmas opiniões mornas servidas em bandejas já desgastadas pelo tempo. Nada de novo, nada de incômodo. Apenas o acolhimento morno da repetição. Se há algo que caracteriza bem a nossa época, talvez seja essa mistura de displicência e acomodação cultural: a sensação de que nada precisa ser questionado porque tudo já foi debatido até a exaustão.

Essa letargia do pensamento não é um fenômeno novo. Desde Platão, já se falava da necessidade de romper com as sombras da caverna e encarar a luz do conhecimento, mesmo que ela fosse ofuscante e desagradável. No entanto, há algo de particularmente sofisticado na acomodação contemporânea: não é um simples comodismo, mas um estado de espírito que se veste de engajamento superficial.

Vivemos em tempos onde a cultura de massa se apresenta como um grande bufê de opções, mas a sensação é de que todos servem os mesmos pratos. O entretenimento, a política, a arte e até as formas de contestação parecem estar presas a fórmulas repetidas, limitadas por um roteiro invisível que ninguém ousa reescrever. Em nome da conveniência, aceita-se a estética do reciclado, o pensamento pré-moldado e a indignação previsível. A própria crítica tornou-se um produto de fácil digestão, embalado para consumo rápido e descartável.

O pensador brasileiro Milton Santos já nos alertava sobre os perigos da globalização perversa, onde a diversidade se vê reduzida a um espetáculo homogêneo. Para ele, a verdadeira liberdade cultural não está na mera aceitação do que nos é oferecido, mas na capacidade de recriação e reinvenção contínuas. A grande armadilha da nossa era é confundir consumo com participação, e assim nos tornamos espectadores do nosso próprio empobrecimento cultural.

A displicência cultural é também um reflexo da preguiça de assumir riscos. Qualquer nova ideia, antes mesmo de ser explorada, já é filtrada pelos critérios do que é aceitável, do que é rentável, do que não incomoda demais. Acomodação não significa simplesmente se contentar com pouco, mas aceitar passivamente que o mundo se mova sem a nossa interferência. Enquanto isso, a inovação verdadeira, o pensamento crítico genuíno e a arte que realmente transforma permanecem à margem, soterrados pelo excesso de repetição.

É preciso coragem para abandonar o sofá cultural e buscar algo que não esteja pronto, que não venha empacotado e testado para agradar a maioria. Significa abrir espaço para o incômodo, para o erro, para o desconhecido. Se há uma revolução necessária hoje, talvez ela não seja tecnológica nem política, mas uma revolução do pensamento: um convite para que deixemos de lado a displicência e assumamos, enfim, a responsabilidade de criar, questionar e, principalmente, reinventar o que chamamos de cultura.

Dentro de alguns dias teremos a 14ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre/RS, será realizada entre os dias 27/03/2025 a 01/06/2025, já visitei algumas exposições e sempre me surpreenderam. Porque lembrei da Bienal, ora porque a exposição nos tira da mesmice, e sempre me pergunto se a Bienal não seria uma oportunidade de vivenciamentos decoloniais.

Aí me ocorre, depende de como a bienal é vivenciada. Em teoria, uma bienal de arte ou literatura pode ser uma excelente forma de sair da comodidade, pois expõe o público a novas ideias, estéticas e narrativas que desafiam o pensamento e ampliam a visão de mundo. Se alguém chega aberto ao inesperado, disposto a explorar obras que saem do circuito comercial e a refletir sobre conceitos que incomodam, então a bienal pode ser uma verdadeira sacudida na acomodação cultural.

Por outro lado, se a experiência for reduzida a um passeio previsível, onde as interações seguem roteiros prontos e o público busca apenas confirmar o que já gosta e conhece, então a bienal pode acabar sendo mais uma vitrine da mesmice. Muitas vezes, até as exposições mais ousadas são suavizadas para atender ao gosto do público, tornando-se menos um desafio e mais um evento confortável.

O segredo está na atitude: se entramos numa bienal dispostos a sermos provocados e a repensarmos nossas certezas, ela pode, sim, ser uma saída da comodidade. Caso contrário, será só mais um programa cultural que reforça o conforto do já estabelecido.

Fica aí o link da 14 Bienal: https://www.bienalmercosul.art.br/


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Lealdade Gaúcha

A lealdade gaúcha é uma virtude que corre como as águas de um arroio pela tradição do Sul. É uma qualidade que, mais do que uma escolha, parece um compromisso ancestral, entrelaçado com a paisagem, os costumes e o caráter de um povo acostumado a resistir às intempéries da vida, assim como o vento minuano que esculpe as coxilhas. É uma lealdade marcada pela profundidade, pela firmeza do olhar e pela presença silenciosa ao lado dos seus — mesmo quando as palavras faltam, mas o sentimento se impõe.

Na tradição gaúcha, a lealdade é uma palavra forte, como o mate que se compartilha nas rodas de chimarrão. É um valor aprendido desde cedo, na convivência com a família, no convívio com os amigos e nos momentos de introspecção ao redor do fogo de chão. Estar ao lado do outro, seja amigo, seja família, é quase um voto de permanência, como se o ato de ser leal fosse parte do DNA cultural que forma o caráter do gaúcho.

Link música “Céu, Sol, Sul e Cor com Leonardo:

https://www.youtube.com/watch?v=urxh-MzcG44

Sob uma ótica filosófica, essa lealdade se aproxima de um conceito de virtude aristotélica, aquela ideia de excelência moral e de compromisso com um ideal elevado. O filósofo grego Aristóteles falava da “philia,” que poderia ser traduzida como amizade ou amor fraternal, algo muito próximo da lealdade que o gaúcho expressa. É um laço que envolve afinidade, cumplicidade e confiança — a essência da vida comunitária. Quando um gaúcho é leal, ele não o faz por esperar algo em troca, mas porque compreende que o valor maior está em ser fiel àquilo que ele considera justo e verdadeiro.

Para o gaúcho, lealdade é também uma questão de respeito às tradições e ao modo de vida dos antepassados. É um resgate constante dos valores herdados, como o respeito à palavra dada e a força de um aperto de mão. O gaúcho honra a sua história com orgulho, e ser leal é a maneira como ele se mantém fiel à sua própria identidade, que foi lapidada entre a pampa e o horizonte infinito.

Link música “Querência Amada” com Teixeirinha:

https://www.youtube.com/watch?v=-XnMRZnr2RI

Um autor brasileiro que contribui para essa discussão é o pensador Mário Ferreira dos Santos. Em suas reflexões sobre a ética e o caráter, ele fala sobre a importância de vivermos de acordo com uma verdade interna que ressoe com o mundo à nossa volta. É um chamado para que a autenticidade prevaleça sobre a conveniência. Essa verdade interna, no caso do gaúcho, está ancorada na lealdade a si mesmo e aos seus, como uma força que o impele a honrar tanto a si quanto a história de sua terra.

Ao mesmo tempo, a lealdade gaúcha tem um sentido coletivo: não é apenas individual, mas social, parte de uma ética de cuidado com o outro. Esse vínculo é mais do que uma postura moral — é uma vivência cotidiana que pode ser vista na solidariedade, nas lides campeiras, no auxílio aos vizinhos e na honra do compromisso com a palavra dada. É um comportamento que define o que significa ser parte de uma comunidade que valoriza a integridade e o senso de pertencimento.

Talvez a lealdade gaúcha seja, no fundo, uma resistência à modernidade líquida, onde tudo parece passageiro e descartável, como descrito por Zygmunt Bauman. Ela é uma espécie de âncora que mantém o gaúcho fiel a seus valores e laços, como se fosse um grito de permanência num mundo onde tudo é efêmero. É o compromisso com uma “firmeza” que vem do campo e da natureza, que resiste ao tempo e às pressões de uma sociedade que incentiva o individualismo e o distanciamento.

Link da musica “Do Fundo da Grota” com Baitaca:

https://www.youtube.com/watch?v=EtTbS-KdcrE

A lealdade gaúcha é um modo de existir, uma ética e uma herança cultural que transcende o tempo e as mudanças. Ela é uma forma de ser que representa a continuidade de um compromisso com a terra, com o povo e com a própria história. Essa lealdade não apenas define o caráter gaúcho, mas também oferece ao mundo um exemplo raro de fidelidade e respeito às raízes. Somos um povo que enfrenta até enchentes catastróficas unidos superando os perrengues do destino.


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Sujeito Original

Hoje acordei pensando na palavra "original". No meio da correria do dia, entre tomar o café da manhã e me organizar para as tarefas, fui até a padaria e na rua vi um cara com uma camiseta estampada com algo provocador: "Seja você mesmo, os outros já existem". A frase é repetida por aí, como um bordão moderno, mas algo nela me incomodou. Será que ser "original" é só sobre ser diferente? Ou será que é mais profundo, sobre ser fiel a algo interno, uma espécie de autenticidade que não depende do que os outros são, mas do que nós, verdadeiramente, somos? O que é um sujeito original?

Ser original é uma das metas mais exaltadas nos dias de hoje. Parece que todos queremos ser reconhecidos como únicos, uma peça rara num oceano de repetição. Mas o que faz um sujeito verdadeiramente original? Ser original não é simplesmente se vestir de maneira excêntrica ou ter opiniões contrárias à maioria. Originalidade é, antes de mais nada, uma questão de postura interna, de estar em sintonia com o que somos na essência.

Um sujeito original é aquele que tem a coragem de não se moldar às expectativas externas de forma acrítica. Ele ou ela pode até participar das mesmas convenções sociais, trabalhar nos mesmos empregos e conviver nas mesmas relações, mas não permite que essas camadas de rotina diluam sua essência. Para isso, muitas vezes, é necessário um grau de isolamento, não no sentido físico, mas mental. É um silêncio interior que permite escutar a própria voz.

A imitação inevitável

Viver em sociedade nos condiciona a imitar os outros, de formas sutis ou evidentes. Desde o modo como falamos até os nossos gestos, tudo é aprendido de outros seres humanos. Maurice Merleau-Ponty, um filósofo francês, disse que o corpo é nossa primeira linguagem, e boa parte dessa linguagem vem da imitação do que vemos ao nosso redor. Então, a pergunta que surge é: se imitamos tanto, como ser original?

A resposta, talvez, esteja em como transformamos o que recebemos do mundo. Um sujeito original não nega suas influências, mas consegue dar a elas uma nova forma, um novo sentido. Como um pintor que usa as mesmas cores disponíveis para todos, mas cria algo que ninguém mais seria capaz de pintar. Assim, a originalidade não está na rejeição pura e simples da tradição ou do que os outros fazem, mas no modo como aquilo passa pelo crivo da própria personalidade.

O risco de ser original

Ser original tem um preço, e não é pequeno. Numa sociedade que valoriza a conformidade e a repetição de padrões, o sujeito original pode ser visto como excêntrico, difícil ou até perigoso. A história está cheia de exemplos de pessoas que foram marginalizadas por suas ideias e atitudes fora do comum. Pense em Sócrates, por exemplo. Sua busca incessante pela verdade e pelo questionamento do que se considerava "normal" acabou levando à sua condenação à morte.

Nos dias de hoje, o risco talvez não seja tão extremo, mas a pressão por ser como todo mundo continua forte. Redes sociais, modas e tendências nos bombardeiam com padrões a seguir. Em muitos ambientes de trabalho, ser diferente pode ser um caminho para o isolamento. Mas o sujeito original sabe que esse é o preço a pagar pela integridade.

A originalidade no cotidiano

Ser original no dia a dia não significa romper com tudo e todos o tempo todo. Pode ser algo sutil, como tomar decisões baseadas no que realmente acreditamos, e não no que a maioria espera de nós. Pode ser na maneira como tratamos os outros, fugindo de fórmulas prontas e buscando uma interação mais genuína. Pode ser até na maneira como lidamos com os pequenos prazeres ou contratempos da vida. A originalidade pode aparecer no modo como lidamos com uma dificuldade, sem recorrer aos clichês da autopiedade ou do conformismo.

No fim das contas, o sujeito original não busca ser diferente só por ser. Ele é, antes de tudo, alguém que está em paz com o que é, sem se preocupar tanto com o que o resto do mundo espera. Ele é fiel à sua própria natureza, e é essa fidelidade que o torna, de fato, original.

Um toque filosófico

Mário Ferreira dos Santos, um filósofo brasileiro autodidata, dizia que o ser humano deve aprender a ser "de si mesmo", isto é, a construir uma vida baseada em seu próprio entendimento do mundo. Isso não significa se fechar ao novo ou às ideias alheias, mas sim filtrar aquilo que recebemos, transformando as influências externas em algo que reflita nossa própria visão e sentido de vida. Segundo ele, é na individualidade pensante, na reflexão crítica sobre quem somos e o que queremos ser, que reside a chave da originalidade.

Portanto, ser original é um desafio constante. Não é uma posição confortável, nem fácil. Mas é, sem dúvida, uma das formas mais profundas de liberdade que podemos alcançar. E, no meio de um mundo de cópias, um sujeito original é como uma luz única que ilumina o caminho.


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Industria Cultural

A cultura, com suas expressões artísticas, deveria ser um espaço livre, um reflexo da alma humana em suas mais variadas formas. Mas, olhando ao redor, a impressão é de que algo se perdeu. Um filme que deveria tocar em questões profundas se transforma em um blockbuster. Uma música que poderia emocionar acaba sendo uma fórmula repetida, feita para vender. A arte parece cada vez mais submetida às leis do mercado. E assim surge a questão: a arte ainda é arte, ou virou mercadoria? É aqui que a ideia de “indústria cultural” se insere, trazendo à tona discussões sobre a mercantilização da cultura e da arte.

A crítica ao fenômeno da indústria cultural tem raízes no pensamento da Escola de Frankfurt, particularmente em Theodor Adorno e Max Horkheimer. Eles defendiam que, na sociedade capitalista, a cultura se transformou em mercadoria, com seus produtos sendo moldados pelo desejo de lucro e pela lógica de produção em massa. Para Adorno, a cultura, antes um espaço de emancipação e reflexão crítica, tornou-se parte de uma engrenagem maior, onde o entretenimento anestesia as massas, privando-as da capacidade de pensar criticamente sobre suas realidades.

O conceito de indústria cultural denuncia esse processo de transformação da arte e da cultura em produtos comercializáveis, moldados para serem consumidos de forma rápida, superficial e massificada. Um exemplo claro disso está na música pop, onde a repetição de fórmulas comerciais garante que a canção seja “pegajosa” o suficiente para gerar lucro. As letras, muitas vezes, são rasas e repetitivas, feitas para tocar em qualquer rádio, em qualquer lugar, com o objetivo principal de vender discos, gerar streams ou lotar shows. O artista, por vezes, se torna apenas mais uma peça da máquina.

Essa transformação também ocorre no cinema. Ao invés de promover o pensamento crítico, muitos filmes de grande orçamento são feitos para agradar o público, sem grandes riscos, com fórmulas narrativas seguras, como os infinitos remakes e sequências de filmes de super-heróis. A arte, que poderia ser um espelho para a sociedade, torna-se um produto que devolve a mesma imagem sempre igual, reforçando estereótipos e padrões que perpetuam o sistema.

É claro que, nem todo produto da cultura de massa é desprovido de valor. No entanto, a crítica principal é que, na busca por agradar a todos, a arte perde sua capacidade de confrontar, de questionar, de incomodar. Quando o lucro se torna o objetivo final, a cultura perde seu poder transformador.

O sociólogo brasileiro Laymert Garcia dos Santos comenta que essa mercantilização faz parte de um processo maior de alienação social, onde as pessoas consomem cultura sem refletir sobre o que estão recebendo. Para ele, o problema está na ausência de uma perspectiva crítica sobre o que é consumido. O que a indústria cultural faz é criar um sistema onde o consumo acontece de forma automática, quase sem questionamento. E assim, as pessoas se entretêm, mas não necessariamente se enriquecem culturalmente.

Isso não quer dizer que não haja resistências. Artistas independentes, movimentos culturais marginais e formas de arte alternativa tentam fugir dessa lógica, buscando novas maneiras de expressão. No entanto, a força da indústria cultural é avassaladora. As obras que escapam desse molde mercadológico muitas vezes encontram dificuldades em atingir grandes audiências, justamente por não se encaixarem no formato estabelecido.

O desafio é grande: como recuperar o poder da cultura e da arte em um mundo onde tudo é mercadoria? Talvez a resposta esteja em resgatar a arte como forma de questionamento e de desconstrução da realidade. Afinal, a arte deveria nos desestabilizar, e não nos confortar sempre da mesma forma.


domingo, 13 de outubro de 2024

Maktub

Há uma palavra de origem árabe que carrega em si uma profunda carga filosófica: maktub. Ela pode ser traduzida como "está escrito", mas seu significado vai muito além da simplicidade literal. Quando alguém diz "maktub", o que realmente se sugere é que certas coisas estão destinadas a acontecer, como se o destino já estivesse traçado de antemão, mesmo antes de tomarmos qualquer decisão. A expressão tem um tom de aceitação, uma rendição diante da grandiosidade do universo e do inevitável.

Link da música “Maktub II” de Marcus Viana:

https://www.youtube.com/watch?v=pfi17PzXVQo&list=RDMMZ3AJFx6-vUA&index=34

O Destino e a Autonomia

Está escrito — mas o que isso significa para nossas vidas cotidianas? Parece um conceito que desafia a ideia de autonomia, algo que nós, modernos, tanto prezamos. No mundo contemporâneo, falamos muito sobre fazer escolhas, sobre trilhar o próprio caminho e moldar nosso destino. Afinal, não é essa a premissa da meritocracia, das metas pessoais, dos sonhos que corremos atrás? E, no entanto, maktub nos convida a pensar: há uma ordem oculta que já definiu certos encontros, desencontros e reviravoltas da nossa trajetória?

Imagine que você saiu de casa atrasado e, por acaso, encontrou alguém que não via há muito tempo. Aquele breve atraso, que parecia ser um revés, na verdade levou você a um momento único. Ou, quem sabe, ao perder um emprego que parecia ser o alicerce da sua carreira, você tenha sido forçado a redescobrir talentos que estavam adormecidos. Será que esses acontecimentos fortuitos são apenas acasos, ou existe uma "escrita" invisível nas entrelinhas do tempo?

O Desconforto da Imprevisibilidade

É curioso como a ideia de maktub tanto nos reconforta quanto nos inquieta. Reconforta porque, diante dos fracassos e perdas, podemos nos consolar com a noção de que está escrito. Talvez, afinal, aquilo não fosse para ser. Mas também nos inquieta, porque, se tudo está de alguma forma predestinado, onde fica o livre-arbítrio? Somos, então, apenas passageiros em um trem cuja rota já está definida?

Há um certo alívio em pensar que não estamos no controle de tudo, mas também um desconforto. Pense naquelas vezes em que você sentiu que fez "tudo certo", seguiu o caminho esperado e, ainda assim, as coisas não saíram como planejado. Nesses momentos, a sensação é de impotência. É como se o universo nos dissesse: "Você pode lutar, mas o que está escrito, está escrito."

Paulo Coelho e o Alquimista

Esse conceito de maktub ficou bastante popular no Brasil através de Paulo Coelho e sua obra O Alquimista. Na história, o jovem Santiago busca incessantemente por um tesouro e encontra várias figuras que o ajudam ou testam durante a jornada. Coelho enfatiza que o universo conspira a favor daqueles que seguem seus sonhos, mas ao mesmo tempo sugere que certos encontros e experiências estão, de certa forma, predestinados. Ao longo da trama, os personagens frequentemente repetem: "Maktub." O que tinha de acontecer, aconteceu. E tudo isso contribui para um propósito maior, ainda que incompreendido em certos momentos.

A Perspectiva Filosófica

Na filosofia, muitos pensadores refletiram sobre o papel do destino e do livre-arbítrio. O filósofo grego Heráclito, por exemplo, dizia que o caráter de uma pessoa é seu destino — ethos anthrôpos daimôn. Em outras palavras, aquilo que somos internamente molda o caminho que seguimos. Mas e quando o caminho parece alheio a quem somos ou ao que planejamos? Talvez a resposta esteja em aceitar que há uma dança constante entre a vontade pessoal e as circunstâncias que nos são impostas pela vida.

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos aborda o tema do destino de forma profunda. Para ele, o destino não é algo imutável, como uma linha reta que seguimos sem desvios, mas sim um conjunto de possibilidades dentro de um grande jogo cósmico. Em seu livro Filosofia Concreta, ele sugere que somos co-criadores de nosso destino, não seus escravos. Há uma ordem, sim, mas ela é flexível o bastante para que nossas escolhas possam, de algum modo, interferir.

O Papel da Aceitação

Em última instância, talvez o que maktub nos ensine seja a arte da aceitação. Não uma aceitação passiva, mas uma aceitação que nos permita continuar seguindo em frente, mesmo quando o caminho parece estranho ou inesperado. Não se trata de desistir ou de não lutar por aquilo que queremos, mas de reconhecer que algumas forças estão além de nosso controle. E que, ainda assim, podemos fazer o melhor com o que temos.

No fim das contas, o conceito de maktub nos lembra que, mesmo que tudo pareça incerto, as coisas têm uma ordem subjacente. Às vezes, essa ordem só se revela com o tempo. O que hoje parece uma perda ou um desvio inesperado pode, amanhã, revelar-se como parte essencial da nossa jornada. Afinal, como diz o ditado popular, “Deus escreve certo por linhas tortas.”

Maktub. Está escrito. Mas também cabe a nós decifrar as palavras ocultas desse texto que é a vida.