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quinta-feira, 27 de março de 2025

Desconstrução Incomoda

Se há algo mais difícil do que entender Derrida, talvez seja explicar Derrida. A desconstrução, esse conceito que parece fugir por entre os dedos sempre que tentamos agarrá-lo, já foi interpretada de mil maneiras: como método, como crítica, como filosofia da linguagem, como um jogo interminável de diferenças e adiamentos. Mas, se há algo que Derrida nos ensinou, é que todo conceito que parece sólido está prestes a ruir – e, ironicamente, essa talvez seja a única certeza que ele nos permite ter.

A desconstrução, em seu cerne, não é uma destruição. Derrida nunca quis reduzir textos ou conceitos a ruínas, mas sim revelar as instabilidades que os constituem. Ele desafia a ideia de que há um centro fixo, uma verdade última, uma presença plena. Em seu lugar, propõe um jogo de diferenças e adiamentos, onde os significados nunca se estabilizam completamente. Isso nos leva ao conceito de "différance", um neologismo que combina "diferença" e "adiamento", sugerindo que o significado sempre escapa no próprio ato de significar.

No cotidiano, a desconstrução se manifesta sempre que percebemos que as palavras que usamos não são tão neutras quanto parecem. Pensemos em conceitos como "homem" e "mulher", "civilizado" e "bárbaro", "racional" e "emocional". Derrida nos ensina que esses pares binários não são apenas opostos neutros, mas carregam uma hierarquia implícita. Em cada dicotomia, um termo ocupa uma posição privilegiada enquanto o outro é subordinado. O que a desconstrução faz é abalar essa estrutura, revelando suas assimetrias e mostrando como os termos se definem mutuamente em uma relação instável.

Talvez o maior impacto da desconstrução esteja na filosofia ocidental como um todo. Desde Platão, a metafísica procurou estabelecer um fundamento sólido para o pensamento – seja a Ideia, a Substância, o Cogito. Derrida desafia essa busca ao demonstrar que qualquer tentativa de fixação conceitual está fadada a se contradizer. Assim, ele não propõe um novo fundamento, mas sim um pensamento que opera no limiar, no intervalo, na diferença.

Isso significa que tudo se torna relativo? Derrida jamais defendeu um relativismo puro, pois isso seria simplesmente substituir um dogma por outro. O que ele sugere é uma atenção radical à linguagem e à forma como os conceitos se constroem e se desconstroem continuamente. O mundo não se dissolve no caos, mas se revela muito mais complexo e fluido do que gostaríamos de acreditar.

Se a desconstrução incomoda, é porque ela nos força a abandonar certezas reconfortantes. Ela nos obriga a perguntar: e se aquilo que consideramos natural ou evidente for apenas um efeito de linguagem? E se a verdade que buscamos for sempre adiada, sempre deslocada? Essa angústia, porém, não deve ser vista como um problema, mas como um convite: um convite para pensar sem redes de segurança, para aceitar a instabilidade como parte fundamental do próprio ato de compreender. Derrida não nos dá respostas fáceis – e talvez seja exatamente por isso que ele continua sendo tão essencial.


quarta-feira, 26 de março de 2025

Falseando a Falseabilidade

Sempre que alguém aparece com uma teoria brilhante, um modelo explicativo do universo ou mesmo uma ideia revolucionária sobre como dobrar roupas sem amassar, há um espectro pairando sobre sua cabeça: Karl Popper. Não é exagero dizer que sua teoria da falseabilidade transformou a maneira como pensamos sobre ciência, conhecimento e até sobre a natureza da verdade. Mas, e se invertêssemos o jogo? E se, ao invés de seguir Popper como um farol infalível da racionalidade, nos perguntássemos: Popper pode ser refutado?

A questão não é meramente acadêmica. Se a ciência deve sempre se abrir à possibilidade de refutação, então a própria ideia de falseabilidade não pode ser um dogma absoluto. Popper insiste que uma teoria científica precisa ser refutável, ou seja, que haja a possibilidade de demonstrar sua falsidade. No entanto, esse critério levanta um problema curioso: se algo é refutável, não significa que está, por definição, fadado à refutação? E se não há possibilidade de refutação, isso significa que é inválido? Essa dicotomia gera uma armadilha epistemológica: ou aceitamos que há enunciados que nunca podem ser refutados e, portanto, não pertencem ao escopo da ciência (como certas teorias da física contemporânea), ou aceitamos que todo conhecimento é provisório, o que mina qualquer tentativa de estabelecer verdades científicas mais estáveis.

Além disso, há uma crítica estrutural à própria aplicabilidade da falseabilidade. Thomas Kuhn, por exemplo, argumentou que as grandes mudanças científicas não ocorrem por simples refutação de teorias anteriores, mas sim por deslocamentos paradigmáticos. Isso significa que, na prática, os cientistas nem sempre abandonam teorias assim que encontram anomalias; ao contrário, frequentemente tentam ajustá-las, reinterpretá-las ou até mesmo ignorar certos dados problemáticos até que um novo paradigma surja. Nesse sentido, o critério popperiano pode ser menos descritivo do que ele próprio imagina. A ciência real não é um tribunal onde teorias são descartadas ao primeiro sinal de contradição, mas um organismo vivo, onde resistências, adaptações e reinterpretações fazem parte do jogo.

Outra questão fundamental envolve a aplicabilidade do princípio da refutação a áreas como a metafísica e as ciências sociais. Se apenas o que pode ser refutado é científico, então teorias como o marxismo ou a psicanálise de Freud estariam fora do campo da ciência? Popper argumenta que sim, mas essa exclusão levanta um problema: o fato de uma teoria não ser falseável implica automaticamente que ela não tem valor explicativo? Se pensarmos na importância cultural, psicológica e até política dessas abordagens, percebemos que há um campo vasto de conhecimento que escapa à rígida exigência popperiana.

Por fim, há o paradoxo mais irônico de todos: o próprio critério de falseabilidade pode ser falseado? Se alguém demonstrasse que há enunciados científicos válidos que não são refutáveis, o princípio de Popper entraria em colapso. Alguns argumentam que a matemática e a lógica, por exemplo, não operam sob esse critério, mas ninguém ousaria dizer que não são disciplinas rigorosas.

No fim das contas, a grande lição de Popper talvez não esteja na infalibilidade de sua teoria, mas naquilo que ela nos obriga a fazer: questionar, desafiar e permanecer abertos à possibilidade de que, um dia, até mesmo o mais venerado dos critérios científicos possa ser refutado.


segunda-feira, 24 de março de 2025

Letargia do Pensamento

A preguiça do pensamento e o conforto do mesmo

Lá estamos nós, mais uma vez, sentados no sofá confortável da cultura, assistindo a reprise das mesmas ideias, rindo das mesmas piadas, ouvindo as mesmas músicas e mastigando as mesmas opiniões mornas servidas em bandejas já desgastadas pelo tempo. Nada de novo, nada de incômodo. Apenas o acolhimento morno da repetição. Se há algo que caracteriza bem a nossa época, talvez seja essa mistura de displicência e acomodação cultural: a sensação de que nada precisa ser questionado porque tudo já foi debatido até a exaustão.

Essa letargia do pensamento não é um fenômeno novo. Desde Platão, já se falava da necessidade de romper com as sombras da caverna e encarar a luz do conhecimento, mesmo que ela fosse ofuscante e desagradável. No entanto, há algo de particularmente sofisticado na acomodação contemporânea: não é um simples comodismo, mas um estado de espírito que se veste de engajamento superficial.

Vivemos em tempos onde a cultura de massa se apresenta como um grande bufê de opções, mas a sensação é de que todos servem os mesmos pratos. O entretenimento, a política, a arte e até as formas de contestação parecem estar presas a fórmulas repetidas, limitadas por um roteiro invisível que ninguém ousa reescrever. Em nome da conveniência, aceita-se a estética do reciclado, o pensamento pré-moldado e a indignação previsível. A própria crítica tornou-se um produto de fácil digestão, embalado para consumo rápido e descartável.

O pensador brasileiro Milton Santos já nos alertava sobre os perigos da globalização perversa, onde a diversidade se vê reduzida a um espetáculo homogêneo. Para ele, a verdadeira liberdade cultural não está na mera aceitação do que nos é oferecido, mas na capacidade de recriação e reinvenção contínuas. A grande armadilha da nossa era é confundir consumo com participação, e assim nos tornamos espectadores do nosso próprio empobrecimento cultural.

A displicência cultural é também um reflexo da preguiça de assumir riscos. Qualquer nova ideia, antes mesmo de ser explorada, já é filtrada pelos critérios do que é aceitável, do que é rentável, do que não incomoda demais. Acomodação não significa simplesmente se contentar com pouco, mas aceitar passivamente que o mundo se mova sem a nossa interferência. Enquanto isso, a inovação verdadeira, o pensamento crítico genuíno e a arte que realmente transforma permanecem à margem, soterrados pelo excesso de repetição.

É preciso coragem para abandonar o sofá cultural e buscar algo que não esteja pronto, que não venha empacotado e testado para agradar a maioria. Significa abrir espaço para o incômodo, para o erro, para o desconhecido. Se há uma revolução necessária hoje, talvez ela não seja tecnológica nem política, mas uma revolução do pensamento: um convite para que deixemos de lado a displicência e assumamos, enfim, a responsabilidade de criar, questionar e, principalmente, reinventar o que chamamos de cultura.

Dentro de alguns dias teremos a 14ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre/RS, será realizada entre os dias 27/03/2025 a 01/06/2025, já visitei algumas exposições e sempre me surpreenderam. Porque lembrei da Bienal, ora porque a exposição nos tira da mesmice, e sempre me pergunto se a Bienal não seria uma oportunidade de vivenciamentos decoloniais.

Aí me ocorre, depende de como a bienal é vivenciada. Em teoria, uma bienal de arte ou literatura pode ser uma excelente forma de sair da comodidade, pois expõe o público a novas ideias, estéticas e narrativas que desafiam o pensamento e ampliam a visão de mundo. Se alguém chega aberto ao inesperado, disposto a explorar obras que saem do circuito comercial e a refletir sobre conceitos que incomodam, então a bienal pode ser uma verdadeira sacudida na acomodação cultural.

Por outro lado, se a experiência for reduzida a um passeio previsível, onde as interações seguem roteiros prontos e o público busca apenas confirmar o que já gosta e conhece, então a bienal pode acabar sendo mais uma vitrine da mesmice. Muitas vezes, até as exposições mais ousadas são suavizadas para atender ao gosto do público, tornando-se menos um desafio e mais um evento confortável.

O segredo está na atitude: se entramos numa bienal dispostos a sermos provocados e a repensarmos nossas certezas, ela pode, sim, ser uma saída da comodidade. Caso contrário, será só mais um programa cultural que reforça o conforto do já estabelecido.

Fica aí o link da 14 Bienal: https://www.bienalmercosul.art.br/


sábado, 29 de junho de 2024

Café com Žižek

Imagine uma tarde ensolarada em um café charmoso no centro da cidade. Estou sentado em uma mesa na calçada, esperando por alguém. De repente, ele aparece: Slavoj Žižek, o filósofo esloveno com seu jeito despojado e olhar inquisitivo. Com uma xícara de café na mão, ele se senta e começa a falar, trazendo suas ideias filosóficas para temas atuais e situações do cotidiano.

O Início da Conversa: Política e Memes

Antes mesmo de dar o primeiro gole no café, Žižek já está falando sobre política. "Vivemos em uma era de superficialidade", ele diz. "A política se transformou em um espetáculo, onde memes têm mais impacto do que discursos bem elaborados." Ele menciona como os memes sobre figuras políticas moldam opiniões de forma rápida e eficaz, muitas vezes distorcendo a realidade.

Lembro de uma discussão recente no trabalho, onde um meme sobre um político gerou uma grande polêmica. "Isso mostra como o humor pode ser uma arma poderosa", comento. "Mas também nos deixa vulneráveis à manipulação."

Cotidiano Digital e Ansiedade

O café chega, e a conversa se volta para o impacto da tecnologia no dia a dia. Žižek fala sobre como as redes sociais criam uma ilusão de conexão, mas, na verdade, intensificam a sensação de isolamento. "Estamos sempre online, mas muitas vezes nos sentimos mais sozinhos do que nunca", ele observa.

Compartilhei minha experiência de ficar rolando o feed do Instagram antes de dormir, o que só aumenta minha ansiedade. Žižek concorda: "A busca constante por validação nas redes sociais é exaustiva e, muitas vezes, contraproducente. Precisamos encontrar maneiras de desconectar e nos reconectar com o mundo real."

A Cultura do Cancelamento

Outro tema quente na mesa é a cultura do cancelamento. Žižek tem uma visão crítica sobre isso. "Embora seja importante responsabilizar as pessoas por suas ações, a cultura do cancelamento pode se tornar um tipo de tribunal público sem direito a defesa", ele argumenta. "Isso pode sufocar o diálogo e a possibilidade de redenção."

Lembrei de um amigo que foi 'cancelado' por um comentário insensível no Twitter. "Ele mudou de emprego e teve que começar do zero", digo. "Exatamente", responde Žižek. "Precisamos de um equilíbrio entre responsabilização e a possibilidade de aprender e crescer."

O Futuro do Trabalho

Enquanto o café esfria, a conversa se volta para o futuro do trabalho. "A automação e a inteligência artificial estão mudando a paisagem do emprego", diz Žižek. "Isso pode ser uma oportunidade para repensarmos o que significa trabalhar e viver."

Mencionei como o trabalho remoto se tornou uma realidade para muitos, trazendo tanto liberdade quanto novos desafios. "A linha entre vida pessoal e profissional está cada vez mais tênue", observo. Žižek sorri e diz: "Talvez seja hora de repensarmos nosso valor como seres humanos, além de nossas funções produtivas. A vida deve ser mais do que apenas trabalhar."

O Encerramento de nosso bate papo: Esperança e Reflexão

Com o café quase no fim, a conversa se torna mais introspectiva. Žižek fala sobre a importância de manter a esperança e a curiosidade. "Mesmo em tempos turbulentos, a filosofia nos ajuda a fazer perguntas importantes e buscar respostas significativas."

Despedi-me de Žižek com a mente cheia de novas ideias e uma sensação renovada de curiosidade sobre o mundo ao meu redor. Ao sair do café, percebo que essa conversa não foi apenas um encontro com um grande pensador, mas um convite para olhar mais profundamente para as questões do dia a dia com uma perspectiva filosófica. E assim, uma tarde comum se transforma em um momento de reflexão e inspiração, graças à companhia de um filósofo que consegue transformar até mesmo uma xícara de café em um banquete para a mente.