O Belo Não Tem Cheiro (Ou Tem?)
Tem
dias que a gente morde um pedaço de pão fresco e pensa: “Que delícia!” — mas
dificilmente solta um: “Que coisa bela!”. Da mesma forma, um perfume pode nos
fazer fechar os olhos de prazer, mas não costumamos dizer que ele é “belo” —
dizemos que é “cheiroso”, “marcante”, “sedutor”. Engraçado: parece que, sem
perceber, reservamos a palavra belo para certos sentidos e não para
outros. Por quê?
Talvez
porque, na cultura ocidental, o belo sempre foi coisa de olho e ouvido. Desde
os gregos, passando por Kant, os sentidos da visão e da audição
foram os eleitos para dar conta da experiência estética no sentido mais nobre:
aquele que eleva, que organiza, que dá sentido e forma ao mundo. Os outros
sentidos — olfato, paladar, tato — ficaram mais ligados ao prazer imediato, à
satisfação física, à sensualidade ou ao conforto. O belo, dizia-se, é para a
alma, não para o corpo.
O
olho julga o belo
A
visão é o grande juiz estético do nosso tempo. Um quadro de Klimt, a
arquitetura limpa de Niemeyer, um campo de lavanda no interior da França, a
estética minimalista de um celular novo: tudo isso passa pela lente do olho que
busca harmonia, proporção, equilíbrio, forma, aquilo que Platão chamava
de “o esplendor da ordem”. A visão nos permite admirar o distante, o intocável
— por isso ela serve ao julgamento desinteressado que Kant descreveu como
próprio do belo.
É
na visão que o “belo” se solta do útil. Um vaso pode ser belo mesmo vazio. Uma
cadeira pode ser bonita mesmo se desconfortável. Isso não acontece com o gosto
ou o cheiro — um bolo bonito que tem gosto de sabão é uma decepção total.
O
ouvido ouve beleza
A
audição vem logo atrás. Música, voz, som do vento nas árvores, o silêncio tenso
antes de um trovão. O som é invisível, mas cheio de forma: ritmo, melodia,
cadência. O belo sonoro também é julgado pela mente — especialmente quando foge
do trivial. Um coral de Palestrina, um solo de guitarra inesperado, a voz rouca
de quem sabe falar ao microfone.
Mas
aqui já começamos a ver um detalhe curioso: para chamar de belo um som, é
preciso um pouco de cultura, de memória, de repertório. O mesmo som pode ser
ruído ou beleza, conforme o ouvido que escuta.
E
o gosto? O cheiro? O toque?
O
paladar e o olfato são maravilhosos — mas na maioria das vezes nos limitamos a
dizer que algo é “saboroso”, “cheiroso”, “apetitoso”. Por quê? Porque eles nos
ligam diretamente ao desejo, à necessidade do corpo: comer, beber, sentir
prazer. São sentidos que nos aproximam do objeto de forma íntima, pessoal — não
desinteressada. Kant diria que eles não servem ao julgamento puro do belo
porque nos lembram do nosso corpo, da nossa fome, da nossa carne.
Mas
a modernidade (e os chefs de cozinha) tentam resgatar esses sentidos para a
estética pura: um prato de alta gastronomia é montado como uma obra visual,
perfumada como um jardim, texturizada como uma escultura — e só depois provada.
Mesmo assim, no fim das contas, dizemos que ele é “incrível”, “delicioso”,
“inesquecível” — mas quase nunca apenas “belo”.
O
tato também não escapa dessa regra: podemos achar um tecido agradável, uma
escultura suave, mas é raro alguém chamar de “belo” o toque em si. O tato serve
de complemento ao olhar — nunca é o protagonista.
O
movimento e o equilíbrio: beleza em ação
Curiosamente,
o movimento do corpo, a dança, o gesto também podem ser julgados belos — mas
aqui novamente entra a visão: o que é belo é o que vemos no movimento do
outro. Uma bailarina é bela na leveza que o olho percebe, não no toque de sua
pele.
Até
o equilíbrio do corpo, aquela vertigem controlada numa pirueta ou num salto,
torna-se estético porque é espetáculo para o olhar.
Por
que "belo" é palavra de poucos sentidos?
No
fundo, chamamos de belo aquilo que pode ser apreciado de longe, sem
desejo imediato, sem posse, sem uso — aquilo que deixa espaço para o pensamento
refletir, comparar, lembrar, julgar. Por isso, na história da cultura, o olho
e o ouvido foram eleitos como os sentidos maiores da estética.
Os
outros sentidos nos puxam para dentro do corpo — e o belo, diziam os antigos,
quer nos puxar para fora, para o universal, para o desinteressado. Mesmo na
modernidade, quando tentamos elevar o cheiro, o gosto e o toque à categoria de
arte, ainda usamos outras palavras: gostoso, perfumado, delicioso,
aconchegante.
Talvez
porque beleza — essa palavra estranha, teimosa, filosófica — seja, acima de
tudo, uma coisa da mente. E ela adora o que os olhos e os ouvidos lhe trazem
para pensar.