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sexta-feira, 13 de junho de 2025

Estética Seletiva

O Belo Não Tem Cheiro (Ou Tem?)

Tem dias que a gente morde um pedaço de pão fresco e pensa: “Que delícia!” — mas dificilmente solta um: “Que coisa bela!”. Da mesma forma, um perfume pode nos fazer fechar os olhos de prazer, mas não costumamos dizer que ele é “belo” — dizemos que é “cheiroso”, “marcante”, “sedutor”. Engraçado: parece que, sem perceber, reservamos a palavra belo para certos sentidos e não para outros. Por quê?

Talvez porque, na cultura ocidental, o belo sempre foi coisa de olho e ouvido. Desde os gregos, passando por Kant, os sentidos da visão e da audição foram os eleitos para dar conta da experiência estética no sentido mais nobre: aquele que eleva, que organiza, que dá sentido e forma ao mundo. Os outros sentidos — olfato, paladar, tato — ficaram mais ligados ao prazer imediato, à satisfação física, à sensualidade ou ao conforto. O belo, dizia-se, é para a alma, não para o corpo.

O olho julga o belo

A visão é o grande juiz estético do nosso tempo. Um quadro de Klimt, a arquitetura limpa de Niemeyer, um campo de lavanda no interior da França, a estética minimalista de um celular novo: tudo isso passa pela lente do olho que busca harmonia, proporção, equilíbrio, forma, aquilo que Platão chamava de “o esplendor da ordem”. A visão nos permite admirar o distante, o intocável — por isso ela serve ao julgamento desinteressado que Kant descreveu como próprio do belo.

É na visão que o “belo” se solta do útil. Um vaso pode ser belo mesmo vazio. Uma cadeira pode ser bonita mesmo se desconfortável. Isso não acontece com o gosto ou o cheiro — um bolo bonito que tem gosto de sabão é uma decepção total.

O ouvido ouve beleza

A audição vem logo atrás. Música, voz, som do vento nas árvores, o silêncio tenso antes de um trovão. O som é invisível, mas cheio de forma: ritmo, melodia, cadência. O belo sonoro também é julgado pela mente — especialmente quando foge do trivial. Um coral de Palestrina, um solo de guitarra inesperado, a voz rouca de quem sabe falar ao microfone.

Mas aqui já começamos a ver um detalhe curioso: para chamar de belo um som, é preciso um pouco de cultura, de memória, de repertório. O mesmo som pode ser ruído ou beleza, conforme o ouvido que escuta.

E o gosto? O cheiro? O toque?

O paladar e o olfato são maravilhosos — mas na maioria das vezes nos limitamos a dizer que algo é “saboroso”, “cheiroso”, “apetitoso”. Por quê? Porque eles nos ligam diretamente ao desejo, à necessidade do corpo: comer, beber, sentir prazer. São sentidos que nos aproximam do objeto de forma íntima, pessoal — não desinteressada. Kant diria que eles não servem ao julgamento puro do belo porque nos lembram do nosso corpo, da nossa fome, da nossa carne.

Mas a modernidade (e os chefs de cozinha) tentam resgatar esses sentidos para a estética pura: um prato de alta gastronomia é montado como uma obra visual, perfumada como um jardim, texturizada como uma escultura — e só depois provada. Mesmo assim, no fim das contas, dizemos que ele é “incrível”, “delicioso”, “inesquecível” — mas quase nunca apenas “belo”.

O tato também não escapa dessa regra: podemos achar um tecido agradável, uma escultura suave, mas é raro alguém chamar de “belo” o toque em si. O tato serve de complemento ao olhar — nunca é o protagonista.

O movimento e o equilíbrio: beleza em ação

Curiosamente, o movimento do corpo, a dança, o gesto também podem ser julgados belos — mas aqui novamente entra a visão: o que é belo é o que vemos no movimento do outro. Uma bailarina é bela na leveza que o olho percebe, não no toque de sua pele.

Até o equilíbrio do corpo, aquela vertigem controlada numa pirueta ou num salto, torna-se estético porque é espetáculo para o olhar.

Por que "belo" é palavra de poucos sentidos?

No fundo, chamamos de belo aquilo que pode ser apreciado de longe, sem desejo imediato, sem posse, sem uso — aquilo que deixa espaço para o pensamento refletir, comparar, lembrar, julgar. Por isso, na história da cultura, o olho e o ouvido foram eleitos como os sentidos maiores da estética.

Os outros sentidos nos puxam para dentro do corpo — e o belo, diziam os antigos, quer nos puxar para fora, para o universal, para o desinteressado. Mesmo na modernidade, quando tentamos elevar o cheiro, o gosto e o toque à categoria de arte, ainda usamos outras palavras: gostoso, perfumado, delicioso, aconchegante.

Talvez porque beleza — essa palavra estranha, teimosa, filosófica — seja, acima de tudo, uma coisa da mente. E ela adora o que os olhos e os ouvidos lhe trazem para pensar.


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Em hibernação

 

Hoje acordei com aquela sensação de não ter acordado. O corpo já estava de pé, o café já estava feito, os compromissos chamavam pelo nome, mas alguma parte de mim permanecia deitada — num lugar sem tempo, onde nada acontece e tudo apenas espera. Foi aí que me ocorreu: será que a alma também hiberna?

Hibernar não é dormir. É algo mais profundo, mais existencial. É como se uma parte da vida entrasse em modo de espera, enquanto o resto continua fingindo movimento. Vemos isso em animais — ursos, sapos, marmotas — que se enterram no silêncio frio para economizar energia e atravessar o inverno. Mas e nós? O que fazemos quando o inverno não está do lado de fora, mas dentro da gente?

Em muitos momentos da vida, entramos num tipo de hibernação psíquica. Quando perdemos alguém, quando o mundo pesa demais, quando o entusiasmo que nos movia parece ter sumido por motivos que nem conseguimos nomear. Continuamos indo ao trabalho, postando nas redes, respondendo mensagens — mas algo essencial entrou em pausa. A filosofia tradicional chamaria isso de acídia, os existencialistas talvez falassem em angústia. Mas talvez seja mais simples (e mais honesto) admitir: estamos apenas hibernando.

O filósofo romeno Emil Cioran, mestre em sentir a paralisia do espírito, escreveu que “o fato de existir é uma indiscrição imperdoável”. Ele percebia o fardo de estar acordado demais, consciente demais. Talvez hibernar seja, então, uma forma de proteção contra esse excesso — um jeito de salvar algo em nós do desgaste permanente do estar no mundo.

Mas o curioso da hibernação é que ela não é um fim. É uma suspensão, sim, mas que guarda em si a possibilidade do retorno. A semente que não germinou no outono não está morta. Está esperando o momento certo. E talvez essa seja a sabedoria secreta de hibernar: entender que parar não é fracassar, que se recolher não é se render.

Hoje, mais do que nunca, somos pressionados a estar sempre ativos, sempre visíveis, sempre produtivos. Hibernar vira quase um pecado capital. Mas talvez seja uma forma de resistência. De cuidado. De escuta interior. Quando tudo diz “acelere”, hibernar pode ser uma maneira de ouvir o que ainda não está pronto para ser dito.

Então, se você sentir que está num tempo estranho, em que nada floresce e tudo parece em suspensão, não se desespere. Não tente forçar o desabrochar. Pode ser que seu inverno seja justamente o tempo mais precioso — aquele em que a alma se refaz, em silêncio, preparando-se para um novo ciclo.

Talvez hibernar seja, no fim, uma das formas mais elegantes de sabedoria: saber quando parar, confiar no invisível, e permitir que a vida nos transforme no escuro.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Argumento Socrático

 

Sabe aquele momento em que você começa uma conversa sem muita expectativa, mas logo está imerso em um turbilhão de ideias, questionamentos e, talvez, um pouco de desconforto? Isso, de certa forma, é o "Argumento Socrático". Imagine que você está na Grécia Antiga, em pleno Ágora, cercado de pensadores e, claro, Sócrates. Ele não era exatamente o tipo de filósofo que apresentava respostas definitivas. Em vez disso, ele se interessava por algo muito mais intrigante: o processo de questionar e descobrir as próprias respostas.

O "Argumento Socrático" é, na sua essência, uma metodologia de investigação que desafia as certezas estabelecidas. Ao invés de buscar uma verdade absoluta ou imposta, Sócrates preferia desmontar as ideias dos outros, questionando suas premissas até que eles mesmos chegassem a conclusões mais profundas ou, frequentemente, à constatação de que não sabiam tanto quanto pensavam.

Vamos dar um passo atrás e refletir sobre o papel que essa abordagem ainda tem na nossa vida cotidiana. Vivemos em um mundo que valoriza a resposta pronta. Se você perguntar algo a alguém, muitas vezes a expectativa é de que você receba uma resposta rápida, uma solução definitiva. No entanto, o que Sócrates nos ensina é que o verdadeiro aprendizado não vem das respostas, mas dos questionamentos. O que acontece quando paramos de procurar certezas e começamos a aceitar a dúvida como um caminho para o conhecimento?

No ambiente moderno, com todas as suas incertezas, redes sociais e a constante pressão por opiniões rápidas, o "Argumento Socrático" se faz ainda mais relevante. A prática de questionar sem medo de não ter todas as respostas pode ser libertadora. E, mais importante, ela nos permite aceitar a complexidade das questões da vida sem tentar simplificá-las a ponto de perder o valor do processo.

A dialética socrática: Vamos entender isso melhor com um exemplo simples do cotidiano. Suponha que você está em uma discussão sobre o que significa ser “feliz”. Em vez de afirmar que a felicidade é uma questão de dinheiro, sucesso ou status social, o socrático teceria perguntas como: “O que você quer dizer com felicidade? Como sabemos que estamos de fato felizes? A felicidade é um estado ou um momento?”, e assim por diante. Ele não quer impor uma visão sobre você, mas, através da troca de ideias, fazer você refletir sobre o que realmente acredita.

Agora, esse processo de questionamento pode ser desconfortável. Quem gosta de ver suas certezas desmoronando? Ninguém, certo? Mas esse é o ponto central do Argumento Socrático: o desconforto é um sinal de crescimento. À medida que nossas ideias são confrontadas, podemos chegar a um entendimento mais profundo. Esse processo de autodescoberta, onde as respostas não vêm de fora, mas de uma introspecção catalisada pelo questionamento, é o que nos leva a uma verdade mais autêntica.

A verdade, sempre em construção: Uma das lições mais inovadoras do Argumento Socrático é que a verdade não é algo fixo. Ela é, talvez, mais uma construção contínua. Quando Sócrates diz "só sei que nada sei", ele não está se colocando em uma posição de humildade falsa, mas apontando para a ideia de que o conhecimento é sempre provisório, uma busca constante. Essa filosofia pode ser vista hoje, em um mundo em que a ciência e a cultura evoluem o tempo todo, onde novas descobertas nos forçam a revisar o que antes acreditávamos ser verdade absoluta.

E essa revisão constante, que vem com os questionamentos, não é um fracasso. Pelo contrário, ela nos aproxima mais da complexidade das realidades. Em um mundo onde as certezas são cada vez mais disputadas, o Argumento Socrático nos convida a ser mais humildes em nossa busca por entendimento. Afinal, as melhores respostas não são aquelas que fecham um ciclo de debate, mas aquelas que abrem novos horizontes de reflexão.

Portanto, o "Argumento Socrático" não é só uma ferramenta filosófica antiga, mas uma prática vital para a vida moderna. Em vez de buscar a resposta imediata, ele nos desafia a mergulhar no processo de questionamento constante, entendendo que, como a vida, o conhecimento também está em movimento. E talvez essa seja a verdadeira sabedoria: saber que nunca sabemos tudo, mas que podemos sempre aprender mais, se estivermos dispostos a perguntar.