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quarta-feira, 23 de julho de 2025

Paradoxo do preconceito

Ele é sempre ruim ou pode ajudar a construir conhecimento?

Preconceito é uma palavra que costuma carregar um peso negativo — e não à toa. Quando pensamos em preconceito, lembramos de injustiças, exclusões, julgamentos apressados. Mas e se a história for um pouco mais complexa? E se parte do preconceito for, paradoxalmente, necessária para que a gente entenda o mundo?

Esse é o paradoxo do preconceito: ele pode ser tanto um erro social perigoso, quanto uma ferramenta provisória do pensamento humano.

 

Preconceito como base do conhecimento

Vamos por partes. Antes de se tornar algo negativo, o preconceito é, em sua essência, um juízo antecipado — uma ideia formada antes da experiência direta. E isso é, em muitos casos, inevitável.

Por exemplo: você está caminhando no mato e vê algo se mexendo entre as folhas. Parece uma cobra. Você não espera para conferir se ela é venenosa ou inofensiva. Age com base num julgamento rápido, que pode salvar sua vida. Isso é um preconceito instintivo, e faz parte do nosso kit de sobrevivência.

Esse tipo de julgamento também aparece em situações mais sutis: desconfiamos de um beco escuro, ficamos atentos a alguém que fala com agressividade, temos receio de um alimento com cheiro estranho. Nosso cérebro está o tempo todo fazendo “atalhos” para economizar energia mental. Isso é natural.

O filósofo Hans-Georg Gadamer dizia que não começamos a entender nada do zero. Todo conhecimento novo parte de pré-compreensões que já temos. O problema é quando essas ideias prévias deixam de ser provisórias e viram certezas inflexíveis.

 

Preconceito como obstáculo social e moral

E é aí que o preconceito se torna um problema sério. Quando esse julgamento rápido vira uma convicção fechada sobre o outro — sem espaço para escuta, sem chance de revisão — ele não ajuda mais, ele atrapalha.

Imagine um professor que defende a inclusão e critica o racismo, mas na hora de selecionar candidatos para uma bolsa, exclui automaticamente quem tem sotaque do interior ou quem estudou em escola pública, porque “não se encaixa no perfil”. Sem perceber, ele está praticando exatamente o tipo de exclusão que diz combater.

Ou alguém que luta contra a homofobia, mas faz piadas com religiões. Ou a pessoa que se orgulha de ser “tolerante”, mas não aceita nenhuma opinião diferente da sua. É o paradoxo de combater o preconceito com preconceito.

Outro exemplo comum é a famosa frase: “Não sou preconceituoso, até tenho amigos [desse grupo].” Como se a exceção justificasse a regra. A pessoa não percebe que está tentando negar um sistema inteiro de discriminação com base em um caso isolado — o que, na verdade, reafirma o preconceito.

 

Reconhecer para transformar

O sociólogo Pierre Bourdieu explicava que os preconceitos mais perigosos são justamente os que não reconhecemos como preconceito — porque já estão naturalizados. Eles se escondem no “jeito certo de falar”, na “aparência profissional”, no “quem tem cara de liderança”. Ele chamava isso de violência simbólica: quando ideias arbitrárias parecem naturais, como se fossem parte da ordem do mundo.

Já o filósofo Immanuel Kant lembrava que nossa mente opera com estruturas que antecedem a experiência, mas que o verdadeiro conhecimento exige revisão constante dessas estruturas. Ou seja: preconceitos existem, mas precisam ser colocados à prova.

 

O ponto de partida não pode ser o ponto final

O preconceito pode ser um ponto de partida provisório do pensamento, uma forma de navegar rapidamente pelo desconhecido. Mas ele não pode ser o ponto final. Quando vira uma sentença definitiva sobre os outros, ele deixa de ser ferramenta e passa a ser prisão.

Por isso, o verdadeiro antídoto contra o preconceito não é só “não ter preconceito” — isso é impossível —, mas reconhecer os próprios vieses, questioná-los e estar disposto a mudá-los.

Como escreveu Albert Camus:

“Nomear um preconceito já é começar a se libertar dele.”


domingo, 29 de junho de 2025

Sem Escrúpulos

Estas são reflexões de muitos domingos! Parece até uma colcha de retalhos, mas pensamento é assim mesmo! Os retalhos das notícias do cotidiano vão sendo guardados no Palácio da Memória, lembrei de Santo Agostinho em sua jornada de reforma intima, sem deixar de olhar para o mundo em que vivia!

Então, vamos lá!

...quando a moral deixa a mesa de decisões!

Há governos que governam, e há governos que operam — friamente, como máquinas calculistas. A diferença entre um e outro não está apenas na eficiência ou no carisma dos líderes, mas, sobretudo, na presença ou ausência de escrúpulos. Um governo sem escrúpulos é aquele que já não sente o incômodo do erro, não hesita diante do injusto, não recua diante do sofrimento causado. É como se sua bússola moral estivesse desmagnetizada. O governo muda de mão, mas não muda.

No cotidiano, vemos sinais disso nos pequenos absurdos: filas intermináveis nos hospitais públicos, salários atrasados de professores, licitações misteriosas, orçamento secreto, fraudes na previdência. Mas a falta de escrúpulo se revela, sobretudo, na forma como o poder se blinda da dor alheia. A máquina segue funcionando, mesmo quando passa por cima de pessoas.

Há governos que se movem com base em ideias, e outros que se arrastam empurrados por interesses. Mas os mais perigosos são aqueles que já não sentem mais incômodo moral — governos sem escrúpulos, que perderam a capacidade de hesitar diante do erro, que naturalizaram o injusto, que blindaram a consciência. O problema não é só de política: é de alma.

A política cotidiana nos mostra isso nos detalhes: a escola que não tem teto, o hospital sem médico, a comida que não chega ao prato. E no entanto, os recursos existem — só estão presas em orçamentos secretos (se é secreto é imoral), verbas bilionárias a título de fundo partidário, direcionados por parlamentares que se comportam como donos do país. Essa prática é talvez o retrato mais cristalino de um governo sem escrúpulos: verbas públicas distribuídas longe dos olhos do povo, guiadas não pela necessidade social, mas por conveniências eleitorais e alianças silenciosas. O dinheiro, que deveria ir para o bem comum, é canalizado como moeda de poder. Sem falar na centralização de impostos nas mãos de governos corruptos e incompetentes.

O filósofo Immanuel Kant, em sua ética do dever, falava que devemos tratar os outros sempre como fins, nunca como meios. Um governo sem escrúpulos faz exatamente o contrário: transforma vidas em estatísticas, pessoas em obstáculos, comunidades em ruídos. O cálculo utilitário substitui o juízo moral. Há um descolamento entre o poder e o povo — como se governar fosse uma ciência fria, livre de dilemas.

Maquiavel, no O Príncipe, descreve uma política onde a virtude está na manutenção do poder, não na bondade. Mas mesmo ele, tão associado à frieza política, reconhecia que o governante deveria parecer virtuoso. O problema do governo sem escrúpulos é que ele não se dá mais ao trabalho de parecer justo — ele apenas exerce o poder como quem está acima de qualquer lei moral.

A ética da responsabilidade, defendida por Max Weber, desaparece quando não há transparência. Quando os joelhos que se dobram diante de Deus, o fazem apenas para rezar pelos próprios interesses, estamos diante de uma espiritualidade esvaziada. Uma encenação sagrada ao serviço do poder profano. Dobra-se o joelho, mas não o orgulho; faz-se o sinal da cruz, mas não se cruza com o outro.

Esse uso político de Deus, comum em governos sem escrúpulos, não é fé — é estratégia. É como se até a religião fosse incorporada ao orçamento secreto da consciência. A sacralidade vira cenário, a oração vira retórica, e a humildade dá lugar ao marketing. Tudo se torna instrumento.

Hannah Arendt, ao refletir sobre o mal burocrático, nos alerta sobre o “mal sem maldade” — aquele que age sem pensar, que cumpre ordens, que se esconde por trás de normas e processos. O governo sem escrúpulos se nutre dessa mesma lógica: tira o rosto do mal, apaga a assinatura das injustiças, e nos diz que “é assim mesmo”.

Talvez o mais preocupante seja o acostumar-se com esse tipo de governo. Quando a população começa a achar normal a injustiça, quando o cinismo toma o lugar da esperança, o escrúpulo vira fraqueza. A política vira espetáculo, e a moral, um incômodo a ser ridicularizado.

Mas é exatamente aí que a filosofia resiste. Escrúpulo não é fraqueza — é humanidade. Um governo sem escrúpulos pode até parecer eficiente por um tempo, mas constrói ruínas invisíveis: o medo, o silêncio, a indiferença. Governar com escrúpulos é ouvir as consequências antes de tomar a decisão. É lembrar que por trás de cada lei, há vidas.

Além do orçamento secreto, outro sintoma de um governo sem escrúpulos é o aumento constante de impostos sem qualquer esforço real para cortar despesas públicas. A conta recai, como sempre, sobre quem trabalha e produz, enquanto os privilégios permanecem intocados. Não há coragem para enfrentar os gastos inchados do Estado, nem vontade política para cortar na própria carne. Em vez disso, o Executivo se curva à lógica do "toma-lá-dá-cá" do Congresso, alimentando uma classe parlamentar viciada em emendas, cargos e favores. A máquina pública segue ineficiente, mas o cidadão é quem paga a conta — sem direito a indignação, como se financiar a inércia fosse um dever patriótico. A submissão do governo a esse sistema corrupto de trocas silenciosas revela não apenas fraqueza administrativa, mas uma renúncia ética: governar já não é enfrentar os interesses, mas servi-los em silêncio.

O suor do trabalhador é como água benta do sacrifício, vidas vem e vão, numa circularidade interminável e insuportável, até Sísifo não aguentaria tamanha crueldade desta cobrança interminável de impostos injustos. Quando ainda conseguimos empurrar a pedra montanha acima é porque ainda a suportamos, mas e quando o esforço estiver além de suas forças? Seremos atropelados pela pedra, esmagados pela insensibilidade, corrupção e incompetência daqueles (governos) que entregam as pedras para serem movidas montanha acima.

No fim das contas, o escrúpulo — esse pequeno desconforto da consciência — é o que ainda nos humaniza. Ele nos faz pensar duas vezes, recuar, questionar. Um governo que não tem escrúpulos não erra menos: erra mais, e com orgulho. E o mais perigoso: passa a ensinar que o erro é o caminho normal.

Talvez seja hora de lembrar que governar é, antes de tudo, um ato moral. E que joelho que se dobra apenas por conveniência jamais sustentará de pé uma nação justa.

E quando em meio à impopularidade crescente, os governos recorrem a esforços populistas pontuais, como reajustes de benefícios, programas emergenciais e discursos inflamados, tudo cuidadosamente cronometrado para melhorar os índices de aceitação às vésperas das eleições. Não se trata de política pública estruturada, mas de marketing disfarçado de sensibilidade social. O povo vira plateia de um teatro onde o foco não é o bem comum, mas a manutenção do poder a qualquer custo.

Muitas vezes penso no episódio dos 40 anos de caminhada do povo judeu no deserto após a saída do Egito, é um dos mais poderosos símbolos de renovação através do sacrifício. Deus não levou o povo diretamente à Terra Prometida; antes, permitiu que uma geração inteira morresse no deserto, para que apenas os nascidos na liberdade pudessem entrar na nova terra. Foi uma purificação histórica e espiritual: os que haviam sido formados na lógica da escravidão não estavam preparados para a responsabilidade da liberdade. Assim, o deserto se tornou metáfora da travessia dolorosa que separa o velho do novo, e o sacrifício, condição para que um povo inteiro se reconstruisse com valores diferentes dos que o oprimiam. É um lembrete de que mudanças verdadeiras muitas vezes exigem tempo, perdas e desapego do passado — inclusive daqueles que, embora libertos, ainda pensavam como servos. Será preciso todos irmos para o deserto?

Este texto nasceu de um desabafo diante do cansaço cívico — da sensação de estar preso em um ciclo repetitivo onde a injustiça se organiza, a corrupção se adapta e a moral se cala. Não é apenas indignação com um governo, mas com um sistema que normalizou o erro, premia a esperteza e pune a consciência. Falar sobre isso é uma tentativa de não adoecer em silêncio.

E como dizia Simone Weil:

“A atenção verdadeira é rara e é um ato de amor.”

Um governo escrupuloso é aquele que ainda presta atenção.

Afinal, O governo muda de mãos, mas ele não muda. Que país é esse?

Link no Youtube da música “Que país é esse” do lendário Legião Urbana:

https://www.youtube.com/watch?v=CqttYsSYA3k

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Estética Seletiva

O Belo Não Tem Cheiro (Ou Tem?)

Tem dias que a gente morde um pedaço de pão fresco e pensa: “Que delícia!” — mas dificilmente solta um: “Que coisa bela!”. Da mesma forma, um perfume pode nos fazer fechar os olhos de prazer, mas não costumamos dizer que ele é “belo” — dizemos que é “cheiroso”, “marcante”, “sedutor”. Engraçado: parece que, sem perceber, reservamos a palavra belo para certos sentidos e não para outros. Por quê?

Talvez porque, na cultura ocidental, o belo sempre foi coisa de olho e ouvido. Desde os gregos, passando por Kant, os sentidos da visão e da audição foram os eleitos para dar conta da experiência estética no sentido mais nobre: aquele que eleva, que organiza, que dá sentido e forma ao mundo. Os outros sentidos — olfato, paladar, tato — ficaram mais ligados ao prazer imediato, à satisfação física, à sensualidade ou ao conforto. O belo, dizia-se, é para a alma, não para o corpo.

O olho julga o belo

A visão é o grande juiz estético do nosso tempo. Um quadro de Klimt, a arquitetura limpa de Niemeyer, um campo de lavanda no interior da França, a estética minimalista de um celular novo: tudo isso passa pela lente do olho que busca harmonia, proporção, equilíbrio, forma, aquilo que Platão chamava de “o esplendor da ordem”. A visão nos permite admirar o distante, o intocável — por isso ela serve ao julgamento desinteressado que Kant descreveu como próprio do belo.

É na visão que o “belo” se solta do útil. Um vaso pode ser belo mesmo vazio. Uma cadeira pode ser bonita mesmo se desconfortável. Isso não acontece com o gosto ou o cheiro — um bolo bonito que tem gosto de sabão é uma decepção total.

O ouvido ouve beleza

A audição vem logo atrás. Música, voz, som do vento nas árvores, o silêncio tenso antes de um trovão. O som é invisível, mas cheio de forma: ritmo, melodia, cadência. O belo sonoro também é julgado pela mente — especialmente quando foge do trivial. Um coral de Palestrina, um solo de guitarra inesperado, a voz rouca de quem sabe falar ao microfone.

Mas aqui já começamos a ver um detalhe curioso: para chamar de belo um som, é preciso um pouco de cultura, de memória, de repertório. O mesmo som pode ser ruído ou beleza, conforme o ouvido que escuta.

E o gosto? O cheiro? O toque?

O paladar e o olfato são maravilhosos — mas na maioria das vezes nos limitamos a dizer que algo é “saboroso”, “cheiroso”, “apetitoso”. Por quê? Porque eles nos ligam diretamente ao desejo, à necessidade do corpo: comer, beber, sentir prazer. São sentidos que nos aproximam do objeto de forma íntima, pessoal — não desinteressada. Kant diria que eles não servem ao julgamento puro do belo porque nos lembram do nosso corpo, da nossa fome, da nossa carne.

Mas a modernidade (e os chefs de cozinha) tentam resgatar esses sentidos para a estética pura: um prato de alta gastronomia é montado como uma obra visual, perfumada como um jardim, texturizada como uma escultura — e só depois provada. Mesmo assim, no fim das contas, dizemos que ele é “incrível”, “delicioso”, “inesquecível” — mas quase nunca apenas “belo”.

O tato também não escapa dessa regra: podemos achar um tecido agradável, uma escultura suave, mas é raro alguém chamar de “belo” o toque em si. O tato serve de complemento ao olhar — nunca é o protagonista.

O movimento e o equilíbrio: beleza em ação

Curiosamente, o movimento do corpo, a dança, o gesto também podem ser julgados belos — mas aqui novamente entra a visão: o que é belo é o que vemos no movimento do outro. Uma bailarina é bela na leveza que o olho percebe, não no toque de sua pele.

Até o equilíbrio do corpo, aquela vertigem controlada numa pirueta ou num salto, torna-se estético porque é espetáculo para o olhar.

Por que "belo" é palavra de poucos sentidos?

No fundo, chamamos de belo aquilo que pode ser apreciado de longe, sem desejo imediato, sem posse, sem uso — aquilo que deixa espaço para o pensamento refletir, comparar, lembrar, julgar. Por isso, na história da cultura, o olho e o ouvido foram eleitos como os sentidos maiores da estética.

Os outros sentidos nos puxam para dentro do corpo — e o belo, diziam os antigos, quer nos puxar para fora, para o universal, para o desinteressado. Mesmo na modernidade, quando tentamos elevar o cheiro, o gosto e o toque à categoria de arte, ainda usamos outras palavras: gostoso, perfumado, delicioso, aconchegante.

Talvez porque beleza — essa palavra estranha, teimosa, filosófica — seja, acima de tudo, uma coisa da mente. E ela adora o que os olhos e os ouvidos lhe trazem para pensar.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

Espelho Lógico

“E se a máquina estivesse pensando em mim?” — sobre cafés, lógica e o nascimento da IA

Outro dia, sentei em um café, como quem só quer um intervalo entre dois e-mails urgentes. Na mesa ao lado, uma moça digitava freneticamente, provavelmente lutando com um chatbot do banco. O atendente se confundiu no pedido: café descafeinado com expresso extra. Vai entender. E foi nesse momento banal que a pergunta me cutucou:

Será que essa máquina está pensando em mim?

Não o robô do banco, claro. Mas o algoritmo do aplicativo, o sistema que ajusta a playlist, a IA que "adivinha" meu humor. E, mais do que isso: quando foi que demos à máquina esse tipo de poder? A resposta, por incrível que pareça, começa com filosofia.

A IA nasceu num berço de ideias, não de chips

Antes de qualquer computador acender uma luzinha, havia um punhado de filósofos quebrando a cabeça com perguntas estranhas. Aristóteles, por exemplo, já brincava com a ideia de raciocínio automático: “Se todos os homens são mortais e Sócrates é homem... então Sócrates é mortal.” Isso parece uma linha de código, não?

Lá no século XIX, George Boole criou um sistema de lógica binária (sim, o mesmo 0 e 1 dos computadores) para expressar pensamentos humanos. Ele achava que o raciocínio podia ser uma equação. Veja só: ele não estava programando, mas filosofando com números.

E quando Alan Turing, em 1950, propôs que se uma máquina conseguisse conversar com um humano sem que ele percebesse a diferença... talvez ela estivesse pensando — ele estava mais próximo de Platão do que da IBM.

O barista da realidade

A vida cotidiana agora se mistura com isso tudo. O atendente do café anota meu pedido numa tela que já sabe, por estatística, o que um cara de camiseta preta vai querer numa segunda-feira. O GPS prevê que vou passar pela padaria só porque é sexta. A IA parece me conhecer mais do que eu.

Mas... quem programou essas previsões? Quem decidiu que eu sou previsível?

A resposta, de novo, é filosófica: somos nós que criamos modelos do pensamento humano para tentar duplicá-lo. Em outras palavras: filosofamos sobre como pensamos, transformamos isso em lógica, e a lógica virou software.

Um espelho de silício

O mais curioso é que, ao tentarmos fazer a máquina pensar, fomos forçados a refletir sobre o que significa “pensar” de verdade.

Se ela finge sentir, ela sente?

Se ela erra, ela decide?

Se ela me emociona... ela me entende?

John Searle, um filósofo, disse que uma IA pode simular entender chinês, sem saber chinês. Ou seja, pode parecer inteligente sem ser. Mas será que isso também não vale para alguns humanos em reuniões de Zoom?

E o pensamento continua

Enquanto a IA aprende a escrever poemas, responder mensagens e corrigir sua pontuação — ela carrega no peito um coração filosófico disfarçado de código. Todo algoritmo nasceu de um pensamento sobre o pensamento. Toda previsão foi antes uma pergunta.

No fim, talvez a pergunta mais filosófica seja esta:

“Será que, ao ensinar a máquina a pensar, não estamos apenas tentando nos entender melhor?”

“A máquina me respondeu, mas... e se fosse eu?” — sobre ética, algoritmos e culpas invisíveis

Outro dia, um amigo me contou que foi recusado para uma vaga de emprego por um “sistema automático de triagem”. Ele nem chegou a conversar com um ser humano. A IA olhou o currículo, julgou com olhos invisíveis e disse: “não.”

Ele não ficou bravo com a empresa. Nem com o computador. Só ficou quieto. E eu pensei: quem é o culpado quando ninguém está presente?

O novo dilema de Pilatos: lavar as mãos com um clique

Vivemos rodeados por decisões automatizadas: o banco nega crédito, o aplicativo te bloqueia, o vídeo que você postou some. Ninguém te explicou, ninguém assinou. A IA apenas “decidiu”. E isso muda tudo.

No passado, quando um porteiro barrava alguém, ele tinha um rosto. Agora, quem nega é um número. E você nem sabe se ele entendeu por que você veio.

É aqui que a filosofia grita:

“Não basta pensar como uma máquina. É preciso pensar sobre a máquina.”

Kant, cookies e responsabilidade

Se Immanuel Kant estivesse hoje no seu notebook, talvez surgisse um alerta:

“Você aceita que os algoritmos decidam sua vida com base em padrões de consumo?”

Kant defendia que a moral está em agir de acordo com um princípio que você aceitaria como universal. Em outras palavras: se eu crio uma IA que escolhe sem empatia, eu aceitaria ser tratado por ela?

Muita gente responde: “Não.”

Mas... assina os termos de uso mesmo assim.

Quando a IA erra, quem corrige?

Imagine: uma IA médica erra o diagnóstico. Um carro autônomo atropela. Um sistema de segurança identifica um rosto errado. Quem se levanta da cadeira para pedir desculpas?

A filosofia chama isso de lacuna moral: uma zona onde a responsabilidade desaparece, porque ninguém foi o autor direto da ação.

Mas os efeitos são reais. A dor é real. E mais assustador: as decisões invisíveis moldam nossas vidas reais.

A ética virou código

Hoje, engenheiros escrevem linhas de código que contêm, na prática, valores morais disfarçados:
– “Quem deve ser priorizado?”

– “O que deve ser censurado?”

– “O que é aceitável mostrar para uma criança?”

– “Como identificar um risco?”

Essas não são perguntas técnicas. São decisões éticas.

Como diria o filósofo brasileiro Marcos Nobre, vivemos um tempo em que os sistemas automatizados são tão potentes que se tornam estruturas invisíveis de poder. E onde há poder... precisa haver filosofia.

E o café segue quente

Volto ao café, dessa vez com o celular na mão. O algoritmo me recomenda uma nova música, um vídeo curto, um texto motivacional.

Mas recuso tudo.

Peço um expresso forte, abro um caderno e escrevo, como se fosse um desabafo silencioso:

“A máquina me respondeu... mas será que eu perguntei certo?”

Talvez o futuro dependa disso: ensinar a IA a pensar bem — mas ensinar a nós mesmos a perguntar melhor.

sábado, 24 de maio de 2025

De Outro Jeito

Lembrei de algo, coisa de bom tempo atrás, dentre lembranças que surgem, como disse Santo Agostinho coisas guardadas dentro do “palácio da memória”, lembrei que eu estava tentando aprender a fazer pão em casa, me peguei errando pela terceira vez a receita. O fermento não crescia, o miolo ficava cru. Eu seguia tudo direitinho, mas algo dava errado. Hoje a lembrança me fez perceber: saber a receita não é o mesmo que saber fazer. O conhecimento não entra inteiro, redondo, como uma cápsula de gel. Ele precisa de tempo, de prática, de falha. E também de alguma estrutura interna que organize tudo isso — seja ela filosófica ou cerebral.

Pensei, é aí que a conversa entre os pensadores antigos e as descobertas novas poderá ficar interessante. E por que não? Então, vamos dar uma volta entre a cozinha e o cérebro, passando por Kant, Aristóteles, entre outros antigos amigos, e um ou outro laboratório moderno.

Vamos lá caminhar entre conhecimentos milenares!

1. Conhecer é organizar o mundo (Kant + neurociência)

Kant dizia: antes de experimentar o mundo, já temos formas a priori de organizá-lo — como tempo, espaço e causalidade. Hoje, a neurociência confirma que o cérebro não é uma tábua rasa, mas uma máquina de interpretar, preencher lacunas e prever padrões. Quando olho para uma cadeira, meu cérebro não recebe “cadeira”: ele reconstrói o que é uma cadeira a partir de pedaços visuais e categorias aprendidas.

Situação cotidiana:

Você está numa rua nova e vê um animal estranho. Mesmo sem nunca ter visto aquilo, seu cérebro tenta classificá-lo: "parece um cachorro... ou um javali?". Esse impulso de organizar já estava em Kant — e hoje está nos neurônios também.

2. Conhecimento vem da prática (Aristóteles + plasticidade neural)

Aristóteles dizia que a gente aprende fazendo. A virtude, o saber prático, nasce do hábito. E as neurociências modernas gritam em coro: sim, o cérebro se molda com a repetição. É a tal da plasticidade neural — as conexões vão se fortalecendo quanto mais você repete uma ação, uma palavra, um movimento.

Situação cotidiana:

Você tenta tocar violão. No começo, o dedo dói, o som sai feio. Duas semanas depois, os dedos “vão sozinhos”. A filosofia antiga chamava isso de hexis, um hábito que vira segunda natureza. O cérebro chama de neuroadaptação.

3. Sentimos antes de saber (Hume + Antônio Damásio)

David Hume desconfiava da razão: dizia que as paixões mandavam mais. Hoje, o neurocientista Antônio Damásio mostra que tomamos decisões com base em emoções antes de racionalizá-las. Não escolhemos só com lógica: escolhemos com medo, desejo, afeto.

Situação cotidiana:

Você está para mudar de emprego. Na planilha, tudo parece certo — mas algo te incomoda. Um desconforto, um arrepio. A razão diz "vai", o corpo diz "espera". Isso é mais antigo que Excel — e muito mais humano.

4. O conhecimento se dá em comunidade (Sócrates + Vygotsky)

Sócrates já dizia que ninguém aprende sozinho — a verdade nasce no diálogo. Vygotsky, psicólogo russo do século XX, confirma: o aprendizado acontece mediado por outros, pela cultura, pela linguagem. E hoje sabemos que a linguagem molda até a estrutura do cérebro. Ou seja, pensar é conversar — mesmo em silêncio.

Situação cotidiana:

Você entende melhor um conceito depois de explicá-lo a alguém. Ou quando ouve a dúvida de outra pessoa e pensa: “nunca tinha visto por esse ângulo”. Isso não é fraqueza do saber — é a própria força dele.

5. A consciência ainda é um mistério (Platão + neurofilosofia)

Platão achava que havia uma alma imortal ligada ao mundo das ideias. A neurociência moderna não fala de alma, mas ainda não sabe explicar plenamente a consciência. Sabemos quais áreas do cérebro se acendem quando você pensa em uma lembrança, mas ainda não sabemos como surge o "eu" que pensa. A ciência descreve, mas não esgota.

Situação cotidiana:

Você acorda de um sonho e se pergunta: “quem era aquela pessoa?” ou “sou mesmo eu que penso isso?”. A consciência não se deixa capturar tão fácil — nem pela filosofia, nem pelos scanners cerebrais.

As ideias antigas sobre o conhecimento não caíram de moda — elas mudaram de roupa. Hoje, falamos em sinapses em vez de categorias a priori, mas continuamos tentando entender como conhecemos, como sentimos, como escolhemos. A neurociência traz ferramentas; a filosofia, perguntas. E entre uma coisa e outra, seguimos aprendendo — com pão que não cresce, conversas de café e decisões que o coração já sabia antes da mente aceitar.

Então, vamos continuar essa conversa, expandindo o ensaio para contextos onde o conhecimento se mostra mais do que uma ideia: ele é prática vivida, conflito interno e resposta improvisada. A escola, o trabalho e as redes sociais são os palcos modernos onde as teorias de Kant, Aristóteles, Hume e os neurocientistas se encenam diariamente — mesmo sem que a gente perceba.

Na escola: saber não é repetir, é significar

Na escola, a tensão entre o que é ensinado e o que é aprendido mostra que conhecimento não é só conteúdo. Uma criança pode decorar a tabuada e ainda assim não saber dividir um pacote de figurinhas entre os amigos. Isso porque o cérebro precisa de contexto, emoção e prática para transformar dado em saber.

Hoje, com a neurociência, sabemos que aprender é como montar um quebra-cabeça com peças faltando: o aluno preenche o sentido com o que já viveu. E aqui, Kant sorri de novo: as estruturas internas organizam a experiência — por isso, duas crianças aprendem de formas completamente diferentes, mesmo ouvindo o mesmo professor.

Exemplo:
Um aluno aprende melhor ouvindo, outro desenhando, outro conversando. A escola tradicional que trata todos como tábua rasa ignora tanto Aristóteles quanto as neurociências.

No trabalho: conhecimento vira ação sob pressão

No trabalho, o conhecimento se transforma em decisão rápida, intuição treinada, ou mesmo em saber lidar com o imprevisível. Um gerente pode ter lido todos os manuais de liderança, mas na hora de acalmar uma equipe estressada, precisa mais de inteligência emocional do que de PowerPoint.

A neurociência mostra que decisões sob pressão ativam áreas ligadas ao medo, à memória emocional e à empatia. Hume, lá do século XVIII, teria dito: "Viu só? As paixões guiam a razão!"

Exemplo:
Você apresenta uma ideia numa reunião e ela é mal recebida. Seu corpo reage: coração acelera, voz falha. Depois, você pensa melhor e vê que podia ter explicado diferente. O saber racional só chega depois do tsunami emocional.

Nas redes sociais: informação não é conhecimento

Vivemos numa era em que informação é abundante, mas isso não quer dizer que sabemos mais. O cérebro, bombardeado por notificações, se adapta a ler superficialmente, mas perde a capacidade de reflexão profunda.

Platão dizia que o verdadeiro conhecimento exigia diálogo, tempo e introspecção. Nas redes, tudo é instantâneo, polarizado e performático. A neurociência já alerta: o uso excessivo de redes pode reduzir a atenção sustentada e o controle inibitório — ou seja, a capacidade de focar e de não reagir impulsivamente.

Exemplo:
Você lê um comentário agressivo e responde no impulso. Depois se arrepende. O conhecimento, aqui, teria sido a pausa, o tempo de Kant, o equilíbrio de Aristóteles. Mas o botão "responder" está mais perto do que o botão "refletir".

O conhecimento como experiência encarnada

No fundo, a lição é antiga e ainda válida: conhecimento não é só saber sobre algo — é ser transformado por esse saber. Não basta entender o que é empatia; é preciso senti-la. Não adianta saber que dormir ajuda a consolidar a memória se você nunca dorme direito.

Exemplo:
Você sabe que precisa dizer não a um convite para manter sua saúde mental. Mas aceita. Depois se sente exausto. No dia seguinte, diz não — com firmeza e leveza. Esse é o conhecimento vivido, que une razão, emoção e corpo. Aristóteles chamaria isso de phronesis — sabedoria prática.

Entre sinapses e sabedoria

O conhecimento continua sendo um mistério em evolução. Com a ajuda da neurociência, entendemos melhor o como; com a filosofia, perguntamos o porquê. Nas escolas, no trabalho, nas redes — o saber que realmente importa é aquele que muda o jeito como nos movemos no mundo.

Talvez, no fim, aprender seja isso: não apenas saber mais, mas ser diferente depois de saber.

Prosseguindo...

Agora vamos caminhar por dois territórios pouco falados, mas essenciais para entender como o conhecimento acontece: o corpo e o silêncio. Sim, aquele corpo que sente frio antes da prova, que se emociona com uma música, que sua na entrevista de emprego. E aquele silêncio que parece improdutivo, mas guarda em si um saber que ainda não encontrou palavras.

O corpo também pensa

Por muito tempo, tratamos o conhecimento como uma questão da cabeça. Mas o corpo — este companheiro silencioso — também sabe. Ele sabe quando algo vai dar errado, antes que você consiga explicar. Sabe que não está bem, mesmo quando você diz “tá tudo certo”. Esse saber corporal é anterior à linguagem, e os filósofos mais atentos sempre o intuíram.

Merleau-Ponty, por exemplo, defendia que percebemos o mundo com o corpo. O corpo não é um instrumento do eu: ele é o eu. Ele não acompanha a consciência — ele é uma forma de consciência.

Situação cotidiana:

Você entra em uma sala e sente algo estranho. As pessoas estão rindo, mas o ambiente está tenso. O corpo percebe antes da razão. E, muitas vezes, age antes de você entender por quê.

A neurociência chama isso de cognição incorporada (embodied cognition). Ela mostra que o aprendizado não acontece só no cérebro, mas também na relação entre o cérebro e o corpo. Movimentos, gestos, expressões — tudo isso participa do saber.

Exemplo:
Uma criança aprende a somar melhor pulando casas no chão do que ouvindo um cálculo no quadro. O corpo ajuda o conceito a se fixar. O movimento cria sentido.

O silêncio como campo fértil

A cultura da produtividade nos ensinou que o silêncio é perda de tempo. Mas ele é, muitas vezes, o espaço onde o saber se acomoda. É no silêncio que uma ideia mastigada encontra forma, que uma memória esquecida reaparece. O silêncio é como o sono do conhecimento: parece inatividade, mas é digestão mental.

Platão já desconfiava do excesso de fala: dizia que a alma amadurece em silêncio. Os monges do deserto sabiam que ficar calado era escutar mais fundo. E hoje, os estudos sobre criatividade confirmam: grandes soluções surgem em momentos de pausa — no banho, na caminhada, no cochilo.

Situação cotidiana:

Você escuta um problema complicado. Alguém te pergunta o que acha. Você sente vontade de responder logo, mas se cala. Um minuto depois, uma imagem aparece na mente. E você diz algo que nem sabia que sabia.

A filosofia oriental também nos lembra: o silêncio é uma forma de sabedoria. A palavra pode explicar. O silêncio pode revelar.

Entre o saber e o ser

No fim das contas, talvez a maior ilusão sobre o conhecimento seja pensar que ele é posse. Como se fosse uma moeda que se acumula. Mas o saber verdadeiro é transformação. A gente não o guarda — a gente se torna o que sabe.

Um violinista não “tem” o conhecimento da música — ele é música quando toca. Um jardineiro não “possui” saber sobre plantas — ele floresce junto com elas. Um professor não “transmite” ideias — ele convida o outro a pensar.

E às vezes, o que mais aprendemos é o que esquecemos de propósito: uma dor antiga que já não nos define. Uma certeza que largamos para viver com mais leveza.

Saber é viver de outro jeito

O conhecimento se forma como pão: precisa de farinha (conteúdo), água (emoção), fermento (tempo), calor (experiência) e paciência (silêncio). O corpo sente, o cérebro organiza, a alma intui. Às vezes é um clarão; outras vezes, um eco lento. Mas sempre que é verdadeiro, o saber nos muda.

Portanto, quando algo não fizer sentido de imediato, talvez seja o corpo aprendendo antes da mente. Ou talvez seja o silêncio preparando o terreno. De todo modo, vale confiar: o conhecimento, quando é real, age mesmo quando não se nota.


domingo, 11 de maio de 2025

Abstração e Subjetividade

Outro dia, na fila da padaria aqui pertinho de casa, fiquei pensando em como a gente consegue falar de coisas que ninguém nunca viu. Tipo “justiça”, “tempo”, “felicidade”. Ninguém pega essas coisas com a mão, mas todo mundo parece saber do que se trata. E o mais curioso: cada um entende de um jeito. O que é justo pra mim pode ser absurdo pra você. O que é liberdade pra mim pode ser prisão pra outro. É aí que entram dois personagens curiosos do pensamento: a abstração e a subjetividade. Juntas, elas fazem a gente viver num mundo onde o invisível pesa mais do que o que está diante dos olhos.

Abstração e subjetividade são como dois amigos inseparáveis numa conversa sobre o mundo — sempre que um aparece, o outro dá um jeito de estar por perto. A abstração é aquilo que fazemos quando deixamos de lado os detalhes concretos para captar a essência de algo. Já a subjetividade é o filtro por onde tudo isso passa, com suas lentes pessoais, emocionais e culturais.

Por exemplo: se eu digo “liberdade”, essa palavra parece clara, mas cada um a entende de um jeito. Para um adolescente, pode ser sair da casa dos pais. Para um preso, pode ser o fim da pena. Para um artista, pode ser pintar sem limites. Essa é a subjetividade entrando em cena: um mesmo conceito abstrato ganha vida diferente em cada mente.

No cotidiano, abstração é quando entendemos o “amor” sem precisar de um manual. Quando dizemos que alguém tem “peso na consciência”, estamos usando uma abstração para descrever algo invisível, mas profundamente real — e subjetivo.

O filósofo alemão Immanuel Kant dizia que não conhecemos as coisas como são, mas como elas aparecem para nós. Ou seja: toda abstração já nasce moldada pela nossa forma de perceber. Subjetividade, portanto, não é defeito do pensamento — é a sua condição de existência.

Se abstração fosse uma estrada que nos leva ao sentido profundo das coisas, a subjetividade seria o carro que cada um dirige por ela. Uns aceleram, outros freiam, alguns se perdem, outros inventam atalhos. E todos acreditam estar indo na direção certa.


quinta-feira, 1 de maio de 2025

Subjetivo e Universal

Vamos falar de quando a beleza bate à porta e a gente não sabe se convida para entrar, vamos falar sobre o Juízo de Gosto.

Outro dia, caminhando pela rua, vi um senhor parar diante de um muro grafitado e soltar um “que horror!”. Logo atrás vinha um jovem, talvez um estudante de artes, que parou no mesmo ponto e murmurou: “genial!” (isto ocorreu quando grafitaram a parede do lado de fora do cemitério local, eu achei “tri” a arte estava dando leveza ao lugar). Em menos de dez segundos, ali estavam dois mundos diferentes, duas formas de sentir o mesmo objeto — e talvez duas maneiras de viver. E me peguei pensando: o que é esse tal de juízo de gosto que decide por nós o que é belo ou feio, encantador ou tosco, digno ou vulgar?

Esse pequeno teatro cotidiano me levou a um dilema filosófico que Kant enfrentou com seriedade no século XVIII e que ainda nos pega desprevenidos quando damos like ou passamos reto numa imagem, num texto, num rosto: como julgamos aquilo que não é útil nem moral, mas que nos toca diretamente? O juízo de gosto é esse julgamento estranho que não se baseia em regras fixas, mas parece pedir aprovação universal — como se disséssemos “isso é bonito” querendo, no fundo, que todos concordem. Mas será que há mesmo um “belo em si”, ou tudo não passa de gosto pessoal?

Entre o subjetivo e o universal

Immanuel Kant, no Crítica da Faculdade do Juízo, propõe que o juízo de gosto é subjetivo — ele parte do sentimento de prazer ou desprazer de quem julga — mas, ao mesmo tempo, ele carrega uma pretensão de universalidade. Quando digo que uma pintura é bela, não estou apenas dizendo “eu gosto dela”, mas que “qualquer um deveria gostar”. É aí que começa o impasse: como posso esperar consenso sobre algo que parte da minha sensibilidade individual?

Ora, isso soa familiar: no almoço de domingo, alguém elogia a sobremesa, outro torce o nariz. Uma música toca e provoca lágrimas em uma pessoa, enquanto causa tédio em outra. E, mesmo assim, tentamos justificar: “Mas como você não gosta disso? É lindo!”. O juízo de gosto parece querer escapar do puramente pessoal e subir alguns degraus em direção a algo mais “elevado”, mais próximo da razão. Kant chama isso de “senso comum estético” — um tipo de sensibilidade compartilhada, uma comunidade invisível de gosto.

Gosto: instinto, cultura ou poder?

Mas será que o gosto é mesmo tão puro assim? Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX, vai cutucar a ferida. Para ele, o juízo de gosto está longe de ser neutro. Ele é condicionado pelas classes sociais, pelas práticas culturais e pelo capital simbólico. Quando alguém diz “isso é de mau gosto”, pode estar, na verdade, delimitando fronteiras sociais, afirmando pertencimentos e exclusões.

A estética, nesse sentido, vira um campo de batalha silencioso. Um grafite pode ser lido como arte urbana por uns e como vandalismo por outros, não apenas por diferenças subjetivas, mas por trajetórias de vida diferentes, por códigos culturais que se chocam. O juízo de gosto, então, não seria só uma questão de sensibilidade, mas de poder — de quem pode dizer o que é bom, bonito, certo.

O inesperado como convite

Mas talvez o mais interessante do juízo de gosto seja seu caráter de surpresa. Não escolhemos o que nos encanta — somos pegos de jeito. Um dia você ouve uma música que achava brega e chora. Vê um filme de que jamais esperava gostar e se emociona. O juízo de gosto nos expõe, nos vulnerabiliza. É uma forma de reconhecer que, apesar de todas as certezas, o mundo ainda pode nos tocar de formas novas.

É nesse ponto que a filósofa brasileira Marcia Tiburi propõe algo radical: “o gosto pode ser educado, mas só se for também deseducado”. Ou seja, só nos tornamos verdadeiramente sensíveis ao belo quando desaprendemos parte dos condicionamentos que nos foram impostos — seja pela cultura de massa, seja pela erudição elitista. O gosto, então, pode ser um campo de liberdade: o lugar onde reaprendemos a sentir.

O gosto é um espelho rachado

No fim das contas, o juízo de gosto é como um espelho rachado — reflete tanto quem somos quanto aquilo que desejamos ser. Ele nos conecta aos outros (quando concordamos) e nos separa (quando discordamos), mas sobretudo revela a fragilidade e a beleza de sermos humanos: capazes de sentir, julgar e, às vezes, mudar de ideia.

Talvez o mais sábio seja reconhecer que o gosto, longe de ser apenas um capricho pessoal, é uma ponte entre nós e o mundo — uma ponte instável, mas ainda assim uma ponte. E da próxima vez que ouvirmos alguém dizer “que horror!” diante de algo que achamos lindo, talvez possamos apenas sorrir e pensar: o juízo de gosto ainda é o melhor convite ao diálogo que temos.

domingo, 30 de março de 2025

Teoria da Incongruência


A incongruência está por toda parte. Sentimos isso quando rimos de uma piada sem saber exatamente o porquê, quando encontramos um amigo de infância e percebemos que ele mudou sem mudar, ou quando nos olhamos no espelho e notamos que algo em nós não se encaixa mais com quem fomos ontem. A vida, em sua essência, é um jogo de desencontros entre expectativa e realidade. Daí surge a Teoria da Incongruência.

A Incongruência como Fundamento da Experiência

A experiência humana se constrói na tensão entre o previsível e o inesperado. Quando tudo ocorre exatamente como esperamos, o mundo se torna monótono. Mas quando uma diferença sutil emerge entre o que imaginamos e o que acontece, nasce o sentido, a reflexão e até mesmo o humor. Kant, em sua Crítica da Faculdade do Juízo, já apontava que o riso decorre do contraste inesperado entre o que prevemos e o que ocorre.

A incongruência, então, não é um erro do sistema. Ela é o próprio sistema. O que chamamos de identidade pessoal, por exemplo, é um mosaico de incongruências costuradas pelo tempo. Somos, ao mesmo tempo, as memórias do passado e a promessa do futuro, e entre esses dois pontos, uma infinidade de pequenas incoerências que dão sabor à existência.

O Riso, o Estranhamento e o Sentido da Vida

A filosofia e a comédia sempre andaram lado a lado, e não por acaso. O humor, como explica Henri Bergson, surge justamente da incongruência: um padre que escorrega na rua, um aristocrata que fala como um proletário, uma palavra usada fora de seu contexto habitual. A piada funciona porque desafia nossas expectativas e nos força a reconhecer a fragilidade da lógica cotidiana.

Da mesma forma, a existência se revela paradoxal. Quanto mais tentamos nos definir, mais percebemos que somos um fluxo inconstante. O que acreditamos hoje pode se tornar ridículo amanhã, e o que rejeitamos pode se transformar em verdade. A incoerência não é um defeito da vida, mas seu motor.

Incongruência e Liberdade

Se tudo fosse previsível, seríamos robôs seguindo um script. A incongruência nos liberta dessa ditadura da coerência absoluta. Ela nos dá a possibilidade de mudar de opinião, de nos reinventarmos, de explorarmos caminhos que antes pareciam absurdos. Sartre diria que somos condenados à liberdade, mas talvez fosse mais apropriado dizer que somos condenados à incongruência. E é exatamente aí que mora a beleza da vida.

Em resumo, a Teoria da Incongruência não propõe que abracemos o caos sem critério, mas que reconheçamos a incongruência como parte essencial da existência. Às vezes, o que parece erro é apenas um desvio que nos leva a um lugar inesperado e melhor. Assim, se algo em sua vida parecer incongruente, talvez seja um sinal de que você está, de fato, vivendo.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Além da Subjetividade

Eu estava caminhando pela praça quando me dei conta de uma cena banal: um cachorro cheirando uma árvore com total concentração, como se decifrasse um livro invisível. Parei para observar. Ali, naquele instante, percebi algo desconcertante: aquele animal não precisava de linguagem, símbolos ou conceitos para existir plenamente naquele momento. Sua experiência não era mediada por interpretações, desejos ocultos ou dilemas existenciais. Apenas estava. E então me perguntei: o que existe além da subjetividade humana?

A subjetividade sempre foi o epicentro da filosofia moderna. Descartes inaugurou uma tradição que coloca o "eu penso" como fundamento de toda certeza, e Kant nos trancou em uma estrutura cognitiva que molda nossa experiência do mundo. Tudo o que conhecemos parece passar por essa mediação subjetiva. Mas será que essa perspectiva esgota todas as formas de existência e de conhecimento?

Ao longo da história, algumas tradições filosóficas buscaram escapar da bolha da subjetividade. O zen-budismo, por exemplo, propõe um estado de consciência não dualista, onde a separação entre sujeito e objeto se dissolve. A fenomenologia de Merleau-Ponty também questiona essa divisão rígida, apontando para um entrelaçamento entre corpo e mundo, onde a percepção não é um ato puramente interno, mas uma abertura para a alteridade.

No campo da ciência, neurocientistas e biólogos investigam formas de cognição não humanas. Polvos, por exemplo, possuem um sistema nervoso distribuído, onde a inteligência não está centralizada em um "eu" pensante, mas espalhada pelo corpo. Isso desafia nossa concepção tradicional de consciência e nos força a reconsiderar se o humano é, de fato, o modelo universal de percepção e compreensão.

E se, em vez de nos limitarmos ao nosso próprio esquema mental, tentássemos acessar outras formas de ser? E se o real não precisasse ser sempre filtrado pela interpretação humana? Talvez haja uma realidade vibrante que escapa ao nosso olhar subjetivo, uma riqueza de presenças que não precisam ser nomeadas para existirem plenamente. A experiência direta, sem as camadas de mediação conceitual, pode ser um caminho para vislumbrar esse "além".

Uma possível experiência humana que poderia transcender a subjetividade é o estado de fluxo absoluto, onde a consciência se dissolve na própria ação. Um exemplo disso pode ser encontrado em dançarinos, músicos ou atletas que atingem um momento de pura imersão, onde não há mais distinção entre aquele que age e a ação em si. O corpo se move sem uma intenção consciente, sem um "eu" que comanda cada gesto. É uma entrega total ao presente, onde a experiência se torna um fluxo contínuo, livre das amarras da interpretação pessoal.

Houve um instante, enquanto pescava solitário, frente à imensidão do mar, em que tudo desapareceu: o tempo, os pensamentos, até mesmo a consciência de estar ali. O movimento das ondas parecia me integrar a algo maior, como se eu já não fosse um observador, mas parte da própria respiração do oceano. O fio da linha era uma extensão de mim, e a espera pelo peixe deixou de ser espera – era apenas um instante sem começo nem fim. Quando senti o puxão e recobrei a percepção de mim mesmo, foi como emergir de um mundo sem palavras, onde a existência era pura e indissolúvel.

No fim das contas, talvez a subjetividade humana seja menos uma prisão e mais um convite: um convite para sair de si e perceber que há um mundo pulsante que nunca dependeu de nossa interpretação para existir.