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sábado, 7 de junho de 2025

Discrepância Prometeica

 

Vou falar de quando a tecnologia vai além da nossa imaginação (e responsabilidade)...

Sabe aquela sensação de que a tecnologia está correndo na sua frente, e você fica meio perdido, sem entender direito tudo o que está acontecendo? Pois é, o filósofo alemão Günther Anders (1902-1992) tinha uma ideia que explica bem essa angústia moderna. Ele chamou isso de “discrepância prometeica” — um jeito chique de dizer que somos capazes de criar coisas incríveis, mas não estamos prontos para imaginar todas as consequências que isso traz nem para lidar com elas de forma responsável.

A metáfora vem do mito de Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dar aos humanos. Esse fogo simboliza o poder, o conhecimento, a tecnologia — algo que nos deu enorme capacidade, mas também trouxe grandes riscos. Anders percebeu que hoje, diferente de antes, a diferença entre o que conseguimos produzir e o que conseguimos compreender (ou imaginar) está enorme — é essa “discrepância prometeica”.

Exemplos do nosso dia a dia

  • Celular na mão: Temos um supercomputador no bolso capaz de acessar o mundo inteiro, mas mal imaginamos o impacto que o uso excessivo das redes sociais pode ter na nossa saúde mental, nas fake news ou na privacidade. Quem fica muito tempo olhando para a tela dá até a impressão de estar em transe — quando a chamamos de volta, parece alguém sob efeito de algum sedativo, com olhar perdido e fora de foco, desconectado do que acontece ao redor. Além disso, às vezes parece até que o aparelho está sugando a sua energia psíquica, deixando a pessoa esgotada, como se a mente fosse drenada lentamente.
  • Inteligência artificial: Criamos máquinas que aprendem sozinhas e tomam decisões, mas não sabemos bem como garantir que elas tomem decisões justas ou seguras — e ainda não imaginamos tudo que isso pode significar para empregos, segurança e até para nossa liberdade.
  • Mudanças climáticas: Sabemos que nossas escolhas diárias, como usar carro ou consumir energia, afetam o planeta. Mas, na prática, parece difícil imaginar a extensão real do problema, o que atrapalha agir com urgência.

O alerta de Günther Anders

Para Anders, essa discrepância é um problema fundamental da nossa época. Estamos “desatualizados” em relação às nossas próprias criações. Criamos armas nucleares capazes de destruir a humanidade, mas somos incapazes de imaginar concretamente o que isso significaria — e, assim, não conseguimos agir como deveríamos para evitar um desastre.

Essa distância entre o poder que temos e a consciência do que ele implica pode ser a maior ameaça que enfrentamos. E ele não quer só assustar, mas também acordar a gente para a responsabilidade de fechar essa distância.

Pensadores que conversam com Anders

Outros filósofos também abordaram temas próximos a essa discrepância prometeica. Hans Jonas, por exemplo, em O Princípio Responsabilidade, defende que nossa capacidade tecnológica superou nossa responsabilidade moral — é urgente desenvolver uma ética para a técnica. Assim como Anders, Jonas acredita que precisamos imaginar as consequências a longo prazo para preservar a humanidade.

Martin Heidegger, professor de Anders, refletiu sobre a técnica como uma forma de “desvelamento” da realidade, mas alertou para o risco de que a técnica nos domine, reduzindo o mundo e os seres humanos a recursos — o que amplia o problema da falta de controle.

Mais recentemente, pensadores como Byung-Chul Han falam da exaustão e da sobrecarga psíquica da era digital, algo que conecta com a sensação de esgotamento e “sugação de energia” que vemos no uso do celular.

Como lidar com a discrepância prometeica no dia a dia?

  1. Praticar a consciência digital: Ao usar o celular ou redes sociais, dê pausas regulares. Observe seu estado mental e físico. Se sentir o olhar perdido ou cansado, permita-se desconectar e respirar. Essa pausa ajuda a não se deixar levar pelo “transe” digital.
  2. Educar-se sobre tecnologia: Busque entender o básico das tecnologias que usa — como algoritmos, inteligência artificial e coleta de dados. Assim, fica mais fácil imaginar suas consequências e tomar decisões mais conscientes.
  3. Questionar o consumo e o impacto: Ao fazer escolhas diárias, como consumir energia ou usar transporte, pergunte-se qual o impacto real no planeta. Pequenas mudanças, somadas, podem ajudar a diminuir o ritmo da “máquina” que nos ultrapassa.
  4. Fomentar o diálogo e a ética: Participe de debates, grupos ou comunidades que discutem os efeitos da tecnologia na sociedade. Incentive políticas públicas que priorizem o controle ético da inovação.
  5. Valorizar o contato humano e a experiência direta: Em meio à digitalização, cultive momentos presenciais, contato com a natureza e experiências que conectem corpo e mente, ajudando a equilibrar o descompasso com a tecnologia.

Pensar e agir além da tecnologia

A discrepância prometeica nos chama a olhar com mais atenção para o que fazemos, para não deixar que a tecnologia vire uma caixa preta cheia de consequências invisíveis. Ela é um convite a aprender a imaginar melhor, sentir o impacto do que criamos e assumir responsabilidade — não só técnica, mas ética.

Porque, no fim das contas, não basta ter o fogo. É preciso saber como usá-lo sem queimar tudo ao redor.