O Ar-Condicionado, o Professor e Montesquieu falam sobre o Poder no Cotidiano
No
verão, no Brasil, há um dilema silencioso que se repete em escritórios, escolas
e repartições públicas: quem decide a temperatura do ar-condicionado? Parece
banal, mas esse pequeno conflito revela um problema milenar: como dividir o
poder para que ninguém sofra demais? Uns querem 18 graus para congelar o
stress; outros sonham com 25, para não virar pinguim no trabalho. E o que isso
tem a ver com Montesquieu? Tudo.
Montesquieu
acreditava que o segredo de uma sociedade justa não está em grandes revoluções
ou utopias distantes, mas em algo muito simples: separar o poder,
impedir que ele se concentre numa só mão, porque quem tem todo o poder tende a
usá-lo contra os outros — mesmo sem querer. No caso do ar-condicionado, é o
chefe que decide sozinho? O professor na sala de aula? O motorista do ônibus? A
maioria dos passageiros? Se não houver divisão de decisão (ou regras
combinadas), alguém vai sofrer em silêncio — de frio ou calor — e o
"despotismo" do ar gelado se instala.
Montesquieu,
um grande pensador do iluminismo viveu entre 1689 e 1755, numa França
marcada pelo brilho e pelo peso do absolutismo monárquico de Luís XIV, o
chamado Rei Sol, e depois sob o governo menos imponente, mas ainda
centralizador, de Luís XV. Era uma época em que o poder do rei parecia sem
limites — ele decidia sobre as leis, as guerras, a religião e até a vida
privada dos súditos. A Igreja Católica ainda dominava o pensamento oficial, e
as ideias de liberdade circulavam em voz baixa, nos salões e nos livros
discretamente publicados. Montesquieu, jurista e pensador atento, percebeu que o
problema central de seu tempo era a concentração de poder, e sua resposta
genial foi defender a separação dos poderes (Executivo, Legislativo e
Judiciário), a liberdade garantida por leis moderadas e adaptadas aos costumes
de cada povo, e o cuidado com o despotismo, regime em que o medo governa e
paralisa a sociedade. Sua grande obra, O Espírito das Leis, refletiu
essa preocupação: para ele, não existe uma lei universal válida para todos
os tempos e lugares, pois as regras de um país precisam brotar de sua
cultura, geografia, economia e tradições. A liberdade só nasce onde o poder se
freia a si mesmo — um princípio que mudaria o futuro das democracias modernas,
mesmo que seu autor não as tenha visto florescer em vida.
O
exemplo acima serve para muita coisa da vida. Em casa, quem decide a comida do
domingo: a mãe? O pai? A avó? Se ninguém for ouvido, vem a insatisfação. No
trabalho, quem determina as tarefas? O líder sozinho ou uma equipe que debate?
A lição de Montesquieu ecoa sem parar: o poder precisa ser dividido, vigiado
e equilibrado — até nas pequenas coisas.
Mas
ele foi além: percebeu que as leis de uma sociedade não podem ser cópias de
modelos estrangeiros ou ideias abstratas. Elas têm que ter o
"espírito" do povo, do lugar, do clima, da tradição. Ou seja: numa
cidade quente do Nordeste, o conflito do ar-condicionado é diferente do de uma
escola na serra gaúcha. A lei, a decisão, a regra — precisam fazer sentido para
aquele espaço e para aquela gente. Um modelo europeu pode falhar no Brasil; uma
regra paulista pode não servir para o interior do Piauí. Montesquieu avisou: as
leis nascem do solo onde pisamos, não de teorias importadas.
Ele
também falou sobre os tipos de governo — e esses também vemos na vida comum. Há
casas que funcionam como repúblicas (todo mundo opina), outras como monarquias
(o pai ou a mãe decidem com honra) e outras ainda como pequenos despotismos (o
avô manda e ninguém contesta). No trabalho, há líderes democráticos, outros
"reis" benevolentes, e outros temidos chefes absolutistas. Tudo isso
espelha o que Montesquieu desenhou no século XVIII.
Por
fim, o grande medo do pensador francês era o despotismo — um regime onde
o medo reina e ninguém ousa falar. Isso também aparece no cotidiano: em
famílias onde ninguém ousa questionar; em empresas onde se teme o chefe; em
escolas onde o aluno jamais pergunta. Quando o medo entra, o pensamento some —
e a liberdade evapora.
Montesquieu
continua atual porque nos lembra que liberdade não é fazer o que se quer — mas ter
regras justas que nos protegem de quem manda demais, até no controle do
ar-condicionado. Liberdade é quando ninguém congela no escritório, ninguém
passa calor no ônibus, ninguém engole o almoço errado sem ter voz no cardápio.
Esse
é o segredo silencioso de uma vida bem vivida: poder compartilhado, voz
ouvida, lei ajustada ao lugar — e a tirania banida até dos detalhes do
dia-a-dia.
Por
isso Montesquieu permanece um pensador necessário — porque entendeu o que
muitos ainda esquecem: o poder sem limite se torna perigoso, mesmo quando
nasce de boas intenções. Não é à toa que ele escreveu em O Espírito das
Leis:
“Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais,
exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções
públicas e o de julgar os crimes ou as querelas dos particulares”.
Esse
alerta simples mudou a política moderna — e, discretamente, também nos alerta
para os pequenos despotismos da vida cotidiana. Na casa, na escola, no
trabalho, no ônibus ou no ar-condicionado do escritório, há sempre o risco de
alguém decidir tudo sozinho, sufocando o resto.
Montesquieu
nos lembra, com a paciência dos grandes mestres, que a liberdade não é grito,
nem desordem, nem ausência de regra — mas sim o equilíbrio silencioso entre
forças que se limitam e se respeitam. Quando o poder se reparte, até o verão na
repartição pública fica menos cruel. E assim, no detalhe banal da temperatura
ambiente, brilha a lição discreta do filósofo francês.