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quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Episódios Dissociativos

Há momentos em que nos tornamos estranhos para nós mesmos. Em que aquilo que chamamos de "eu" parece um conceito distante, algo que observamos, mas não habitamos. Os episódios dissociativos – essas experiências em que nos desconectamos da realidade ou de nós mesmos – são um mistério que desafia a nossa compreensão de identidade e consciência. Mas o que nos leva a essa ruptura? E o que ela revela sobre nossa relação com o mundo e conosco?

A Dissociação como Estratégia de Sobrevivência

Do ponto de vista psicológico, a dissociação é frequentemente interpretada como um mecanismo de defesa. Quando a realidade se torna insuportável, a mente, em um ato de autopreservação, constrói um muro temporário entre o "eu" e a experiência dolorosa. É como se dissesse: "Isso é demais para mim agora, então vou me distanciar". Esse afastamento pode ser útil em situações extremas – traumas, estresse avassalador, ou até mesmo a monotonia esmagadora do cotidiano.

Porém, ao mesmo tempo em que a dissociação protege, ela nos priva de algo essencial: a continuidade do ser. Quando nos desconectamos de nossas emoções, ações ou pensamentos, fragmentamos nossa identidade. Nesse sentido, o episódio dissociativo não é apenas um sintoma; é também uma pergunta: "Quem sou eu quando me vejo de fora?"

A Perspectiva Filosófica: Ser e Não-Ser

O filósofo Martin Heidegger, em Ser e Tempo, explorou a ideia de que nossa existência é marcada pelo conflito entre o ser e o nada. Para Heidegger, viver autenticamente exige enfrentar a angústia de existir – o peso de sermos seres conscientes, finitos e lançados no mundo. Em um episódio dissociativo, podemos identificar um eco dessa angústia: a mente, diante da dificuldade de enfrentar uma realidade intolerável, escolhe o "nada", um estado de desconexão.

Por outro lado, Jean-Paul Sartre, em seu existencialismo, via o ser humano como condenado à liberdade. Essa liberdade inclui a capacidade de se observar "de fora", o que ele chamou de reflexividade. No entanto, quando essa reflexividade se torna extrema – quando não mais habitamos o "eu", mas apenas o contemplamos – talvez entremos no domínio da dissociação.

Nesse contexto, a dissociação pode ser entendida como um limite da liberdade humana. É o ponto em que a consciência, ao tentar se proteger, abdica de sua própria capacidade de escolha. O paradoxo é evidente: ao tentar salvar o "eu", a mente o fragmenta.

Dissociação e o Tempo

A dissociação também nos leva a refletir sobre o tempo. Em um episódio dissociativo, o presente perde sua intensidade; é como se o "agora" fosse apenas uma imagem sem substância. O filósofo francês Henri Bergson via o tempo como algo intrinsecamente ligado à experiência subjetiva. Para ele, o tempo não é uma linha reta, mas uma corrente fluida de memórias, percepções e expectativas. A dissociação, então, é uma ruptura nessa corrente – um instante em que o tempo para, mas não de maneira libertadora, e sim como um vazio.

O Valor da Dissociação

Mas será que os episódios dissociativos são apenas patológicos? Talvez não. O filósofo japonês Keiji Nishitani, influenciado pelo Zen budismo, argumentava que confrontar o vazio é uma oportunidade de transformação. Em seu livro Religião e Nada, Nishitani sugere que o nada não é ausência, mas um espaço onde podemos reconstruir nosso ser. Assim, um episódio dissociativo pode ser visto como uma pausa involuntária, um convite para repensarmos quem somos e como habitamos o mundo.

Reconectando-se com o Mundo

Voltar de um episódio dissociativo exige coragem e cuidado. No retorno, somos forçados a enfrentar aquilo de que fugimos – o trauma, o estresse, a banalidade do cotidiano. Esse processo, no entanto, pode ser transformador. Talvez a dissociação nos force a olhar para a fragilidade de nossa identidade e nos pergunte: "Como posso me tornar inteiro novamente?"

Assim, episódios dissociativos não são apenas falhas da mente, mas também manifestações de sua complexidade. Eles nos mostram que habitar o "eu" é uma tarefa contínua, marcada por rupturas e reconexões. Talvez a verdadeira lição da dissociação seja que, mesmo nos momentos em que nos perdemos, há sempre a possibilidade de retorno – e, nesse retorno, a chance de nos reinventarmos.