Há momentos em que nos tornamos estranhos para nós mesmos. Em que aquilo que chamamos de "eu" parece um conceito distante, algo que observamos, mas não habitamos. Os episódios dissociativos – essas experiências em que nos desconectamos da realidade ou de nós mesmos – são um mistério que desafia a nossa compreensão de identidade e consciência. Mas o que nos leva a essa ruptura? E o que ela revela sobre nossa relação com o mundo e conosco?
A Dissociação como Estratégia de Sobrevivência
Do ponto de vista psicológico, a dissociação é
frequentemente interpretada como um mecanismo de defesa. Quando a realidade se
torna insuportável, a mente, em um ato de autopreservação, constrói um muro
temporário entre o "eu" e a experiência dolorosa. É como se dissesse:
"Isso é demais para mim agora, então vou me distanciar". Esse
afastamento pode ser útil em situações extremas – traumas, estresse
avassalador, ou até mesmo a monotonia esmagadora do cotidiano.
Porém, ao mesmo tempo em que a dissociação protege,
ela nos priva de algo essencial: a continuidade do ser. Quando nos
desconectamos de nossas emoções, ações ou pensamentos, fragmentamos nossa
identidade. Nesse sentido, o episódio dissociativo não é apenas um sintoma; é
também uma pergunta: "Quem sou eu quando me vejo de fora?"
A Perspectiva Filosófica: Ser e Não-Ser
O filósofo Martin Heidegger, em Ser e Tempo,
explorou a ideia de que nossa existência é marcada pelo conflito entre o ser e
o nada. Para Heidegger, viver autenticamente exige enfrentar a angústia de
existir – o peso de sermos seres conscientes, finitos e lançados no mundo. Em
um episódio dissociativo, podemos identificar um eco dessa angústia: a mente,
diante da dificuldade de enfrentar uma realidade intolerável, escolhe o
"nada", um estado de desconexão.
Por outro lado, Jean-Paul Sartre, em seu
existencialismo, via o ser humano como condenado à liberdade. Essa liberdade
inclui a capacidade de se observar "de fora", o que ele chamou de
reflexividade. No entanto, quando essa reflexividade se torna extrema – quando
não mais habitamos o "eu", mas apenas o contemplamos – talvez
entremos no domínio da dissociação.
Nesse contexto, a dissociação pode ser entendida
como um limite da liberdade humana. É o ponto em que a consciência, ao tentar
se proteger, abdica de sua própria capacidade de escolha. O paradoxo é
evidente: ao tentar salvar o "eu", a mente o fragmenta.
Dissociação e o Tempo
A dissociação também nos leva a refletir sobre o
tempo. Em um episódio dissociativo, o presente perde sua intensidade; é como se
o "agora" fosse apenas uma imagem sem substância. O filósofo francês
Henri Bergson via o tempo como algo intrinsecamente ligado à experiência
subjetiva. Para ele, o tempo não é uma linha reta, mas uma corrente fluida de
memórias, percepções e expectativas. A dissociação, então, é uma ruptura nessa
corrente – um instante em que o tempo para, mas não de maneira libertadora, e
sim como um vazio.
O Valor da Dissociação
Mas será que os episódios dissociativos são apenas
patológicos? Talvez não. O filósofo japonês Keiji Nishitani, influenciado pelo
Zen budismo, argumentava que confrontar o vazio é uma oportunidade de
transformação. Em seu livro Religião e Nada, Nishitani sugere que o nada não é
ausência, mas um espaço onde podemos reconstruir nosso ser. Assim, um episódio
dissociativo pode ser visto como uma pausa involuntária, um convite para
repensarmos quem somos e como habitamos o mundo.
Reconectando-se com o Mundo
Voltar de um episódio dissociativo exige coragem e
cuidado. No retorno, somos forçados a enfrentar aquilo de que fugimos – o
trauma, o estresse, a banalidade do cotidiano. Esse processo, no entanto, pode
ser transformador. Talvez a dissociação nos force a olhar para a fragilidade de
nossa identidade e nos pergunte: "Como posso me tornar inteiro
novamente?"
Assim, episódios dissociativos não são apenas
falhas da mente, mas também manifestações de sua complexidade. Eles nos mostram
que habitar o "eu" é uma tarefa contínua, marcada por rupturas e
reconexões. Talvez a verdadeira lição da dissociação seja que, mesmo nos
momentos em que nos perdemos, há sempre a possibilidade de retorno – e, nesse
retorno, a chance de nos reinventarmos.