A lucidez, esse brilho fugaz que atravessa o véu do cotidiano, aparece quase como um relâmpago: breve, intenso e, às vezes, perturbador. Há momentos em que, no fluxo incessante de preocupações e distrações, somos tomados por um clarão de compreensão, um instante em que tudo parece fazer sentido – ou ao menos, um sentido que escapa à lógica ordinária. Esses “rasgos” não são apenas vislumbres do real, mas também momentos em que somos arrancados de nossas ilusões, confrontados com verdades que preferiríamos ignorar.
A Lucidez como Ruptura
Albert Camus, em O Mito de Sísifo, descreve a
lucidez como o reconhecimento do absurdo da existência. Para ele, esse instante
de clareza não oferece consolo, mas uma espécie de liberdade. Ao percebermos
que a vida não tem sentido intrínseco, podemos finalmente criar nosso próprio
significado. Nesse sentido, os rasgos de lucidez muitas vezes surgem como uma
ruptura: um corte no tecido confortável da vida cotidiana que nos força a
enxergar além.
Imagine alguém preso em um ciclo repetitivo de
trabalho e consumo. De repente, enquanto espera o ônibus, um pensamento invade
sua mente: “Para quê tudo isso?” Esse momento de lucidez não traz respostas
prontas, mas provoca um mal-estar criativo. É a rachadura que permite à luz
entrar, parafraseando Leonard Cohen.
O Cotidiano e a Névoa
A lucidez, entretanto, não é o estado natural do
ser humano. Na maior parte do tempo, vivemos mergulhados em uma espécie de
névoa. Essa névoa é feita de rotinas, preocupações triviais e distrações
tecnológicas. Gastamos horas rolando telas, discutindo banalidades ou evitando
o silêncio – tudo para escapar do confronto com questões fundamentais.
Mas essa névoa tem uma função: protege-nos da
angústia de pensar demais. Nietzsche, em A Gaia Ciência, sugere que o ser
humano precisa de ilusões para viver. A verdade nua e crua, sem adornos, seria
insuportável. No entanto, é precisamente por isso que os rasgos de lucidez são
tão importantes: eles nos relembram que há algo além do ordinário, que nossa
existência pode – e deve – ser interrogada.
O Peso da Lucidez
Há, contudo, um preço a pagar pela lucidez. Ao
percebermos a fragilidade das certezas que nos sustentam, podemos sentir o peso
esmagador da responsabilidade. É mais fácil viver no automático, deixar-se
levar pela correnteza da vida, do que assumir o controle do barco. O filósofo
brasileiro Vilém Flusser argumenta que a lucidez exige coragem, pois implica
sair de um estado de “programação” e encarar a liberdade com suas
consequências.
Pense no artesão que, após anos produzindo peças
iguais, percebe que sua criação perdeu o sentido para ele. Esse rasgo de
lucidez pode levá-lo a abandonar seu ofício ou a redescobrir sua paixão por
criar algo novo. Em ambos os casos, há um custo: o conforto da familiaridade é
substituído pelo risco do desconhecido.
Lucidez e Transformação
Apesar do desconforto que provoca, a lucidez
carrega um potencial transformador. Ela nos faz questionar hábitos, valores e
até mesmo as estruturas sociais em que estamos inseridos. Ao percebermos a
arbitrariedade de certas convenções, ganhamos a oportunidade de escolher
conscientemente como queremos viver.
Por exemplo, um jovem que, após uma conversa
profunda com amigos, percebe que está seguindo uma carreira apenas para agradar
à família. Esse momento de lucidez pode levá-lo a tomar decisões difíceis, mas
necessárias, para alinhar sua vida com seus desejos autênticos.
Os rasgos de lucidez são, portanto, momentos em que
deixamos de ser apenas espectadores passivos de nossas vidas para nos tornarmos
agentes conscientes.
O Preço e a Beleza da Lucidez
Os rasgos de lucidez não são constantes, nem
deveriam ser. Se vivêssemos em um estado permanente de lucidez, talvez fôssemos
consumidos pela angústia. Mas esses momentos de clareza, ainda que breves, são
o que nos mantém humanos. Eles nos lembram de nossa capacidade de reflexão, de
nossa liberdade e do poder que temos para transformar o mundo – começando por
nós mesmos.
Como disse o poeta Olavo Bilac: "Há, na alma
humana, recantos a que só se chega por essa luz violenta do desespero ou da
lucidez." Os rasgos de lucidez são essa luz violenta que ilumina, ainda
que por um instante, os recantos mais profundos de quem somos. E, por mais
dolorosa que seja, é nela que reside a possibilidade de renovação.