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quarta-feira, 26 de março de 2025

Falseando a Falseabilidade

Sempre que alguém aparece com uma teoria brilhante, um modelo explicativo do universo ou mesmo uma ideia revolucionária sobre como dobrar roupas sem amassar, há um espectro pairando sobre sua cabeça: Karl Popper. Não é exagero dizer que sua teoria da falseabilidade transformou a maneira como pensamos sobre ciência, conhecimento e até sobre a natureza da verdade. Mas, e se invertêssemos o jogo? E se, ao invés de seguir Popper como um farol infalível da racionalidade, nos perguntássemos: Popper pode ser refutado?

A questão não é meramente acadêmica. Se a ciência deve sempre se abrir à possibilidade de refutação, então a própria ideia de falseabilidade não pode ser um dogma absoluto. Popper insiste que uma teoria científica precisa ser refutável, ou seja, que haja a possibilidade de demonstrar sua falsidade. No entanto, esse critério levanta um problema curioso: se algo é refutável, não significa que está, por definição, fadado à refutação? E se não há possibilidade de refutação, isso significa que é inválido? Essa dicotomia gera uma armadilha epistemológica: ou aceitamos que há enunciados que nunca podem ser refutados e, portanto, não pertencem ao escopo da ciência (como certas teorias da física contemporânea), ou aceitamos que todo conhecimento é provisório, o que mina qualquer tentativa de estabelecer verdades científicas mais estáveis.

Além disso, há uma crítica estrutural à própria aplicabilidade da falseabilidade. Thomas Kuhn, por exemplo, argumentou que as grandes mudanças científicas não ocorrem por simples refutação de teorias anteriores, mas sim por deslocamentos paradigmáticos. Isso significa que, na prática, os cientistas nem sempre abandonam teorias assim que encontram anomalias; ao contrário, frequentemente tentam ajustá-las, reinterpretá-las ou até mesmo ignorar certos dados problemáticos até que um novo paradigma surja. Nesse sentido, o critério popperiano pode ser menos descritivo do que ele próprio imagina. A ciência real não é um tribunal onde teorias são descartadas ao primeiro sinal de contradição, mas um organismo vivo, onde resistências, adaptações e reinterpretações fazem parte do jogo.

Outra questão fundamental envolve a aplicabilidade do princípio da refutação a áreas como a metafísica e as ciências sociais. Se apenas o que pode ser refutado é científico, então teorias como o marxismo ou a psicanálise de Freud estariam fora do campo da ciência? Popper argumenta que sim, mas essa exclusão levanta um problema: o fato de uma teoria não ser falseável implica automaticamente que ela não tem valor explicativo? Se pensarmos na importância cultural, psicológica e até política dessas abordagens, percebemos que há um campo vasto de conhecimento que escapa à rígida exigência popperiana.

Por fim, há o paradoxo mais irônico de todos: o próprio critério de falseabilidade pode ser falseado? Se alguém demonstrasse que há enunciados científicos válidos que não são refutáveis, o princípio de Popper entraria em colapso. Alguns argumentam que a matemática e a lógica, por exemplo, não operam sob esse critério, mas ninguém ousaria dizer que não são disciplinas rigorosas.

No fim das contas, a grande lição de Popper talvez não esteja na infalibilidade de sua teoria, mas naquilo que ela nos obriga a fazer: questionar, desafiar e permanecer abertos à possibilidade de que, um dia, até mesmo o mais venerado dos critérios científicos possa ser refutado.