Sempre que alguém aparece com uma teoria brilhante, um modelo explicativo do universo ou mesmo uma ideia revolucionária sobre como dobrar roupas sem amassar, há um espectro pairando sobre sua cabeça: Karl Popper. Não é exagero dizer que sua teoria da falseabilidade transformou a maneira como pensamos sobre ciência, conhecimento e até sobre a natureza da verdade. Mas, e se invertêssemos o jogo? E se, ao invés de seguir Popper como um farol infalível da racionalidade, nos perguntássemos: Popper pode ser refutado?
A
questão não é meramente acadêmica. Se a ciência deve sempre se abrir à
possibilidade de refutação, então a própria ideia de falseabilidade não pode
ser um dogma absoluto. Popper insiste que uma teoria científica precisa ser
refutável, ou seja, que haja a possibilidade de demonstrar sua falsidade. No
entanto, esse critério levanta um problema curioso: se algo é refutável, não
significa que está, por definição, fadado à refutação? E se não há
possibilidade de refutação, isso significa que é inválido? Essa dicotomia gera
uma armadilha epistemológica: ou aceitamos que há enunciados que nunca podem
ser refutados e, portanto, não pertencem ao escopo da ciência (como certas
teorias da física contemporânea), ou aceitamos que todo conhecimento é
provisório, o que mina qualquer tentativa de estabelecer verdades científicas
mais estáveis.
Além
disso, há uma crítica estrutural à própria aplicabilidade da falseabilidade.
Thomas Kuhn, por exemplo, argumentou que as grandes mudanças científicas não
ocorrem por simples refutação de teorias anteriores, mas sim por deslocamentos
paradigmáticos. Isso significa que, na prática, os cientistas nem sempre
abandonam teorias assim que encontram anomalias; ao contrário, frequentemente
tentam ajustá-las, reinterpretá-las ou até mesmo ignorar certos dados
problemáticos até que um novo paradigma surja. Nesse sentido, o critério
popperiano pode ser menos descritivo do que ele próprio imagina. A ciência real
não é um tribunal onde teorias são descartadas ao primeiro sinal de
contradição, mas um organismo vivo, onde resistências, adaptações e
reinterpretações fazem parte do jogo.
Outra
questão fundamental envolve a aplicabilidade do princípio da refutação a áreas
como a metafísica e as ciências sociais. Se apenas o que pode ser refutado é
científico, então teorias como o marxismo ou a psicanálise de Freud estariam
fora do campo da ciência? Popper argumenta que sim, mas essa exclusão levanta
um problema: o fato de uma teoria não ser falseável implica automaticamente que
ela não tem valor explicativo? Se pensarmos na importância cultural,
psicológica e até política dessas abordagens, percebemos que há um campo vasto
de conhecimento que escapa à rígida exigência popperiana.
Por
fim, há o paradoxo mais irônico de todos: o próprio critério de falseabilidade
pode ser falseado? Se alguém demonstrasse que há enunciados científicos válidos
que não são refutáveis, o princípio de Popper entraria em colapso. Alguns
argumentam que a matemática e a lógica, por exemplo, não operam sob esse
critério, mas ninguém ousaria dizer que não são disciplinas rigorosas.
No
fim das contas, a grande lição de Popper talvez não esteja na infalibilidade de
sua teoria, mas naquilo que ela nos obriga a fazer: questionar, desafiar e
permanecer abertos à possibilidade de que, um dia, até mesmo o mais venerado
dos critérios científicos possa ser refutado.
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