Quando o Sagrado ri de si mesmo: um olhar filosófico sobre Os Eleitos de Thomas Mann
Quem
nunca foi atraído por uma história que parece brincar com o próprio peso da
vida? Aquele tipo de narrativa que fala de culpa, pureza, vocação — mas que faz
isso sem carregar um semblante sisudo, sem fingir que o destino é um fardo
absoluto? Thomas Mann fez essa mágica em Os Eleitos (1951), um pequeno e
ousado romance que atravessa as fronteiras do sagrado e do grotesco, sem nunca
perder o humor sutil, quase cúmplice, que só os grandes ironistas dominam.
O
romance é uma releitura de uma velha lenda medieval, a história de Gregorius —
uma espécie de Édipo cristão que comete incesto com a própria mãe sem saber,
abandona o mundo em penitência por longos anos e retorna para ser aclamado
papa. Eis o paradoxo inicial: o homem mais pecador é também o mais santo. O
pecado torna-se condição da graça.
Mas
Thomas Mann não conta essa história para nos pregar uma lição moral qualquer. O
que interessa ao escritor — e o que nos permite fazer aqui um ensaio filosófico
inovador — é a própria arquitetura da escolha. Quem são, afinal, “os eleitos”?
Por que certos homens parecem destinados a atravessar o abismo da queda e da
vergonha só para, depois, serem erguidos a uma altura impossível? E se o
destino, o Fado (ou Deus, para os crentes), fosse um dramaturgo brincalhão, que
constrói heróis a partir de ruínas?
O
acaso como instrumento do divino
Em
Os Eleitos, nada é limpo ou direto. O sagrado se mistura ao obsceno, o
puro ao impuro. O leitor percebe que a própria Providência parece usar o erro
como ferramenta. Deus, segundo o narrador da história, escreve certo por linhas
tortíssimas — e o faz de propósito. Como diz o monge que recolhe o pequeno
Gregorius nas margens do rio: "O homem é instrumento do desígnio celeste,
ainda quando não o sabe; e quanto menos o sabe, mais fiel é à sua função."
Aqui
nasce um pensamento desconcertante: e se a nossa ignorância, os nossos erros,
os nossos deslizes — aquilo que supomos ser desvio — fossem precisamente o
caminho necessário da vida? Seria a culpa apenas um disfarce para a preparação
do destino?
Essa
ideia ecoa o conceito de felix culpa, a "culpa feliz"
medieval: o pecado de Adão não foi um acidente infeliz, mas uma condição
necessária para que a Redenção viesse ao mundo. Sem queda, sem salvação. Sem
erro, sem transformação.
A
construção do herói a partir da vergonha
Em
Gregorius, Thomas Mann vê um modelo de homem moderno: alguém que, para
encontrar sentido, precisa atravessar a experiência do absurdo. O protagonista
abandona o mundo por 17 anos, preso a uma rocha — não porque deseja glória, mas
porque se vê esmagado pela vergonha. E é justamente por essa “inutilidade”
radical, por esse tempo desperdiçado e estéril, que ele se torna grande.
O
filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard escreveu que o desespero é o caminho da
verdadeira fé: quem não experimenta o vazio não pode alcançar o salto para o
divino. Gregorius, o "papa incestuoso", realiza exatamente esse
itinerário: o pecado o lança no fundo do nada — e é dali que ele emerge
purificado.
A
ironia suprema de Mann é que o destino escolhe o mais culpado para ser o mais
puro. O mal absoluto é matéria-prima do bem supremo. O leitor moderno,
inquieto, não sabe se ri ou se chora. E talvez essa seja a intenção do autor:
mostrar que a vida é, no fundo, uma farsa sagrada — ou uma liturgia farsesca.
O
divino rindo de si mesmo
Talvez
a maior inovação de Thomas Mann em Os Eleitos seja justamente essa:
fazer do divino um personagem ambíguo, quase risível. O Deus de Mann não é o
juiz terrível do Velho Testamento; é um demiurgo que joga com peças tortas, um
artista que sabe extrair beleza de fragmentos partidos.
O
homem eleito é, antes de tudo, um equívoco divino — mas um equívoco necessário.
Ele é grande porque falhou; é santo porque caiu. Como escreveu o filósofo
alemão Walter Benjamin, "não há documento de cultura que não seja também
documento de barbárie". O mesmo vale para a alma humana: não há virtude
sem sombra; não há eleição sem ruína.
O absurdo como via para o sentido
Os
Eleitos é uma obra estranha porque nos força a aceitar o
absurdo não como inimigo da razão, mas como sua consumação. Gregorius se torna
papa justamente porque pecou — e não apesar disso. Ele é escolhido não por sua
força, mas pela fragilidade.
A
lição é amarga e luminosa ao mesmo tempo: ninguém escapa do erro; mas o erro
pode ser o fio da trama que nos conduz à graça. O universo, sugere Thomas Mann,
é governado por um princípio irônico, que se diverte em esconder o ouro na
lama, a virtude na vergonha, o sagrado no grotesco.
E
talvez nós também sejamos eleitos, sem saber. Não por nossas virtudes —
mas por nossos tropeços.