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terça-feira, 10 de junho de 2025

Os Eleitos

Quando o Sagrado ri de si mesmo: um olhar filosófico sobre Os Eleitos de Thomas Mann

Quem nunca foi atraído por uma história que parece brincar com o próprio peso da vida? Aquele tipo de narrativa que fala de culpa, pureza, vocação — mas que faz isso sem carregar um semblante sisudo, sem fingir que o destino é um fardo absoluto? Thomas Mann fez essa mágica em Os Eleitos (1951), um pequeno e ousado romance que atravessa as fronteiras do sagrado e do grotesco, sem nunca perder o humor sutil, quase cúmplice, que só os grandes ironistas dominam.

O romance é uma releitura de uma velha lenda medieval, a história de Gregorius — uma espécie de Édipo cristão que comete incesto com a própria mãe sem saber, abandona o mundo em penitência por longos anos e retorna para ser aclamado papa. Eis o paradoxo inicial: o homem mais pecador é também o mais santo. O pecado torna-se condição da graça.

Mas Thomas Mann não conta essa história para nos pregar uma lição moral qualquer. O que interessa ao escritor — e o que nos permite fazer aqui um ensaio filosófico inovador — é a própria arquitetura da escolha. Quem são, afinal, “os eleitos”? Por que certos homens parecem destinados a atravessar o abismo da queda e da vergonha só para, depois, serem erguidos a uma altura impossível? E se o destino, o Fado (ou Deus, para os crentes), fosse um dramaturgo brincalhão, que constrói heróis a partir de ruínas?

O acaso como instrumento do divino

Em Os Eleitos, nada é limpo ou direto. O sagrado se mistura ao obsceno, o puro ao impuro. O leitor percebe que a própria Providência parece usar o erro como ferramenta. Deus, segundo o narrador da história, escreve certo por linhas tortíssimas — e o faz de propósito. Como diz o monge que recolhe o pequeno Gregorius nas margens do rio: "O homem é instrumento do desígnio celeste, ainda quando não o sabe; e quanto menos o sabe, mais fiel é à sua função."

Aqui nasce um pensamento desconcertante: e se a nossa ignorância, os nossos erros, os nossos deslizes — aquilo que supomos ser desvio — fossem precisamente o caminho necessário da vida? Seria a culpa apenas um disfarce para a preparação do destino?

Essa ideia ecoa o conceito de felix culpa, a "culpa feliz" medieval: o pecado de Adão não foi um acidente infeliz, mas uma condição necessária para que a Redenção viesse ao mundo. Sem queda, sem salvação. Sem erro, sem transformação.

A construção do herói a partir da vergonha

Em Gregorius, Thomas Mann vê um modelo de homem moderno: alguém que, para encontrar sentido, precisa atravessar a experiência do absurdo. O protagonista abandona o mundo por 17 anos, preso a uma rocha — não porque deseja glória, mas porque se vê esmagado pela vergonha. E é justamente por essa “inutilidade” radical, por esse tempo desperdiçado e estéril, que ele se torna grande.

O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard escreveu que o desespero é o caminho da verdadeira fé: quem não experimenta o vazio não pode alcançar o salto para o divino. Gregorius, o "papa incestuoso", realiza exatamente esse itinerário: o pecado o lança no fundo do nada — e é dali que ele emerge purificado.

A ironia suprema de Mann é que o destino escolhe o mais culpado para ser o mais puro. O mal absoluto é matéria-prima do bem supremo. O leitor moderno, inquieto, não sabe se ri ou se chora. E talvez essa seja a intenção do autor: mostrar que a vida é, no fundo, uma farsa sagrada — ou uma liturgia farsesca.

O divino rindo de si mesmo

Talvez a maior inovação de Thomas Mann em Os Eleitos seja justamente essa: fazer do divino um personagem ambíguo, quase risível. O Deus de Mann não é o juiz terrível do Velho Testamento; é um demiurgo que joga com peças tortas, um artista que sabe extrair beleza de fragmentos partidos.

O homem eleito é, antes de tudo, um equívoco divino — mas um equívoco necessário. Ele é grande porque falhou; é santo porque caiu. Como escreveu o filósofo alemão Walter Benjamin, "não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie". O mesmo vale para a alma humana: não há virtude sem sombra; não há eleição sem ruína.

O absurdo como via para o sentido

Os Eleitos é uma obra estranha porque nos força a aceitar o absurdo não como inimigo da razão, mas como sua consumação. Gregorius se torna papa justamente porque pecou — e não apesar disso. Ele é escolhido não por sua força, mas pela fragilidade.

A lição é amarga e luminosa ao mesmo tempo: ninguém escapa do erro; mas o erro pode ser o fio da trama que nos conduz à graça. O universo, sugere Thomas Mann, é governado por um princípio irônico, que se diverte em esconder o ouro na lama, a virtude na vergonha, o sagrado no grotesco.

E talvez nós também sejamos eleitos, sem saber. Não por nossas virtudes — mas por nossos tropeços.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Silêncio Sagrado

Enquanto sorvia meu mate, apreciava o silêncio que me envolvia, era uma mistura de prazeres, o silêncio sagrado e o mate, eventualmente ouvia o suspiro do gato filósofo que também me fazia companhia em seu sono profundo, o silêncio e o mate, ambos me convidando a penetrar neste mundo silencioso um tanto estranho devido aos barulhos constantes do dia a dia. O silêncio sagrado é aquele tipo de quietude que ultrapassa a ausência de sons. Ele representa uma pausa profunda, um respiro da alma. É um momento em que o barulho do mundo se apaga, e o silêncio se transforma em um território de encontro consigo mesmo. Não é apenas a ausência de palavras ou de ruídos, mas a presença de algo maior – uma espécie de sacralidade que envolve e acolhe.

Imagine, por exemplo, acordar numa manhã de domingo e, ao abrir a janela, perceber que o mundo ainda não despertou completamente. Não há carros passando, não há vozes na rua, apenas o som distante do vento nas árvores. Esse silêncio é diferente. Ele tem peso, densidade. É quase como se fosse possível tocá-lo. Esse momento nos conecta com algo além do cotidiano agitado, criando um espaço para a reflexão e o reconhecimento do que é essencial.

Muitas tradições espirituais valorizam o silêncio como um portal para a transcendência. No budismo, o silêncio é um convite à meditação, ao encontro com a mente em seu estado mais puro. Para os cristãos, ele pode ser o momento em que a voz de Deus se faz ouvir. Seja qual for a abordagem, o silêncio sagrado sempre carrega consigo a ideia de que algo profundo está prestes a acontecer – seja uma revelação espiritual, uma compreensão interna, ou simplesmente uma conexão maior com o presente.

No nosso dia a dia, porém, estamos constantemente rodeados por barulho: o trânsito, as conversas, as notificações de celulares, o trabalho incessante. Parece que a modernidade nos desafia a evitar o silêncio, como se estivéssemos com medo dele. E, de certa forma, talvez estejamos. O silêncio sagrado exige que confrontemos a nós mesmos, que paremos de fugir através de distrações e encaremos a vida como ela é, sem filtros.

Na filosofia, o silêncio também tem seu espaço. O filósofo francês Blaise Pascal, por exemplo, escreveu que "todo o problema da humanidade é a incapacidade do homem de ficar em silêncio, sozinho, em seu quarto." Esse silêncio íntimo pode ser perturbador porque nele nos deparamos com nossas dúvidas, nossos medos e, talvez, com a verdade que temos evitado. Contudo, ele também é o caminho para uma maior compreensão de quem somos.

Em um contexto mais mundano, pense naquelas pausas desconfortáveis em uma conversa. O silêncio entre palavras pode, para alguns, parecer estranho ou embaraçoso, como se fosse um espaço a ser rapidamente preenchido. Mas o silêncio também pode ser eloquente. Ele pode ser o momento em que permitimos que o outro realmente se faça presente, sem a necessidade de respostas imediatas. É nesse espaço que a verdadeira escuta acontece, onde as palavras tomam seu devido lugar e se tornam significativas.

No fim das contas, o silêncio sagrado é um convite. É um chamado para parar, ouvir e sentir. Um chamado para deixar o mundo externo em suspenso e voltar-se para dentro. É um momento de reequilíbrio, em que o barulho da mente começa a se dissolver, e o que resta é a serenidade pura de estar em harmonia com o que nos rodeia. Talvez, no silêncio, descubramos que o sagrado não está em algum lugar distante, mas sim, sempre presente, à espera de que nos permitamos escutá-lo.