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domingo, 22 de junho de 2025

Sinestesia


O real quando perde a vergonha de se misturar.

Quem nunca pensou que segunda-feira tem cor? Ou que o nome de alguém "soa verde"? Há quem jure sentir o gosto do número cinco, ou ouvir o cheiro da chuva. Os neurologistas dão um nome bonito e técnico para isso: sinestesia. Um curto-circuito sensorial, dizem. Uma ponte cruzada no cérebro.

Mas talvez seja o contrário: não um defeito, mas uma relíquia. Um traço esquecido de quando o real era um só, antes que o pensamento humano começasse a podar e separar: visão aqui, som ali, cheiro acolá.

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty alertava: o corpo não sente o mundo em canais isolados. Ele vive uma presença global do real, uma "carne do mundo" onde tato, visão e audição ainda são faces da mesma moeda. Na criança pequena — e no artista — isso é evidente: tudo é tudo ao mesmo tempo. Só mais tarde, com a domesticação do olhar, a separação artificial começa.

O mundo dos sentidos embaralhados

O poeta sente isso de modo natural. Arthur Rimbaud, na juventude ousada do século XIX, escreveu o célebre soneto das "vogais coloridas": A é preto, E é branco, I é vermelho, U é verde, O é azul. Os sentidos, livres de função prática, se reencontram na festa do absurdo.

Mas é possível que isso vá além da poesia. Para Gilles Deleuze, toda experiência sensível carrega uma potência de conexão múltipla, rizomática, sem hierarquia. O som pode ser luz. O cheiro pode ser volume. O gosto pode ser tempo. O real é esse campo de intensidades que só o pensamento domesticado transformou em departamentos estanques.

Sinestesia cotidiana: a confusão que salva

Mesmo quem não tem "sinestesia clínica" sente isso de vez em quando. Quem nunca chamou uma voz de "aveludada"? Ou disse que um olhar "pesa"? E quando dizemos que uma lembrança tem "cheiro de infância"? Não são metáforas: são escorregamentos reais entre canais sensoriais, lampejos de sinestesia existencial que resistem no cotidiano.

Vilém Flusser, filósofo nascido em Praga e radicado no Brasil, dizia que nossa técnica moderna ampliou a separação dos sentidos. A fotografia só para o olho. O rádio só para o ouvido. O telefone, a tela, o texto — todos nos treinaram para dividir a experiência. Mas a arte quer o oposto: reunião, mistura, fusão. O cinema, a dança, a performance, o happening — tudo clama pela volta da sinestesia originária. O humano não quer aparelhos separados. Quer um mundo inteiro de novo.

E se o real fosse sinestésico desde sempre?

Aqui mora uma hipótese perigosa: e se o real nunca tivesse sido feito de sentidos separados? E se nossa divisão entre som, luz, sabor, tato for só uma construção útil, uma lente artificial?

O filósofo inglês Alfred North Whitehead já sugeria isso em sua "filosofia do processo": a realidade não é feita de "coisas" sólidas, mas de experiências fluídas — eventos vibratórios que podem ser percebidos de múltiplas maneiras ao mesmo tempo. A sinestesia não seria então um defeito neurológico, mas uma fresta por onde escapa o real em estado bruto.

Por isso o artista sinestésico (ou o místico, ou o poeta) não vê "mais" que os outros — vê o que todos veem antes da poda. Antes do corte. Antes do "organograma dos sentidos" ser imposto.

Conclusão aberta: para um mundo menos tímido

Talvez seja isso o que nos falta: um mundo menos tímido, onde o som aceite ser cheiro, a palavra aceite ter temperatura, a segunda-feira confesse sua cor.

Enquanto isso não acontece, pequenas sinestesias resistem. Na poesia, na infância, no sonho, na memória de um cheiro que ilumina uma paisagem perdida. Pequenos vazamentos do real verdadeiro.

Ou, como dizia Merleau-Ponty, "o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo". E viver talvez seja — sempre — misturar.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Fala porque pensa

Vamos falar sobre a origem do dizer e o silêncio que pensa

Já reparou que, às vezes, ficamos em silêncio, mas estamos cheios de ideias? Uma conversa pode estar parada por fora, mas por dentro mil pensamentos correm. Não estamos sempre dizendo tudo o que passa. Na verdade, quase nunca dizemos. O que chamamos de fala é só a ponta do iceberg do que se passa na mente.

E se for isso mesmo? Se a fala vier depois do pensamento — como uma tentativa de tradução imperfeita do que já se formou antes? Nesse ensaio, a proposta é considerar o contrário do que se costuma afirmar em certos círculos neurolinguísticos contemporâneos: não pensamos porque falamos, mas falamos porque pensamos.

O pensamento silencioso

Muitas de nossas decisões mais profundas são tomadas sem palavras. Você acorda e sabe que está triste — antes mesmo de conseguir explicar por quê. Há uma camada pré-verbal da consciência, cheia de imagens, sensações, intuições. A linguagem, nesse cenário, não é a origem do pensamento, mas um instrumento para compartilhá-lo com o outro (e, às vezes, consigo mesmo).

Descartes, no famoso penso, logo existo, não disse falo, logo penso. O pensamento é a base da subjetividade. É anterior à fala, mais amplo e mais sutil. O filósofo Henri Bergson defendia que a consciência excede a linguagem — que pensar é como nadar em um mar interno, enquanto falar é escolher uma garrafinha para conter o oceano.

Linguagem como casca do pensamento

Quantas vezes já sentimos algo que não conseguimos dizer? Ou percebemos que, ao tentar explicar uma ideia, ela se esvazia? Isso revela que a linguagem é um instrumento limitado frente à riqueza do pensamento. Falamos, sim, mas porque algo já foi fermentado antes. O pensamento é o forno; a fala, o pão assado.

O psicólogo suíço Jean Piaget argumentava que a linguagem é uma consequência do desenvolvimento cognitivo, e não sua causa. Para ele, a criança pensa antes de falar — e vai aprendendo a colocar em palavras o que já está se formando como raciocínio interno.

Quando a fala atrapalha

Num mundo ruidoso, talvez falar demais atrapalhe o pensamento. Distrações verbais, conversas vazias, impulsos de dizer antes de refletir — tudo isso pode desfigurar a verdadeira linha do pensamento. Um tuíte mal pensado, uma resposta impensada: palavras saem, mas não vieram do pensar, vieram da pressa.

Se fosse verdade que a fala cria o pensamento, todo mundo que fala muito pensaria melhor. Mas não é o que se vê. Pensar exige silêncio. A fala boa vem depois. Como o escritor que reescreve mil vezes antes de publicar. Como o sábio que ouve mais do que fala.

Pensar é mais que dizer

A mente humana é capaz de pensar com imagens, sons, metáforas internas, simulações motoras. Quando antecipamos um futuro possível, quando lembramos de um cheiro da infância, ou quando visualizamos um projeto de vida — nada disso precisa, necessariamente, da linguagem articulada.

A neurociência apoia essa pluralidade de formas de pensar. Antes da ativação das áreas verbais, há estímulos em regiões ligadas à emoção (amígdala), ao planejamento (córtex pré-frontal), à imaginação (hipocampo). Ou seja, o pensamento vem primeiro. A linguagem é um filtro — útil, poderoso, mas um filtro.

Fala é ponte, não semente

No fim das contas, falar porque se pensa é reconhecer que a fala não é a fonte da consciência, mas seu veículo. Pensar é existir num espaço íntimo, onde a palavra é convidada, não dona da casa. Só falamos porque temos algo a dizer. E esse algo nasce antes da fala.

Filosoficamente, talvez a fala seja apenas o momento em que o pensamento se arrisca no mundo. Nem todo pensamento vira palavra — e talvez ainda bem. Porque o silêncio também pensa. E, às vezes, é nele que se encontram as ideias mais verdadeiras.

domingo, 8 de junho de 2025

Pensa Porque Fala

Vamos refletir sobre consciência e invenção de si

A gente costuma pensar que primeiro se pensa, depois se fala. Como se as palavras fossem meros mensageiros de um conteúdo pronto, esperando pacientemente para ser dito. Mas, e se for o contrário? E se a fala for, ela mesma, o que nos permite pensar? Aquela conversa no banho, o desabafo com um amigo, até mesmo o murmúrio no trânsito – seriam momentos em que a linguagem constrói a consciência, e não o contrário?

Essa ideia, embora pareça surpreendente, já vinha sendo intuída por alguns pensadores e hoje é retomada por estudos contemporâneos de neurociência e linguística. Neste ensaio, vamos explorar essa inversão provocadora: o sujeito pensa porque fala. A fala não apenas expressa o pensamento – ela o inventa, o organiza, o edita. E mais: ao falar, criamos a nós mesmos.

O pensamento nu não existe

Imagine um bebê que ainda não fala. Seus gestos e emoções são vivos, intensos, mas sua capacidade de pensar sobre o que sente é limitada. É só quando ele começa a adquirir palavras que consegue distinguir o medo da fome, o desejo da dor. O filósofo Vygotsky já dizia que o pensamento e a linguagem se desenvolvem em um entrelaçamento mútuo. O pensamento é uma névoa até que a palavra o condense.

A neurociência contemporânea reforça essa visão: regiões do cérebro relacionadas à linguagem (como a área de Broca e de Wernicke) estão intimamente conectadas com redes de atenção, memória e planejamento. Falar é como esculpir o que estava apenas esboçado em sensação. Pensamos melhor quando escrevemos, quando conversamos, quando argumentamos. O silêncio pode ser fértil, mas é quase sempre a palavra que transforma intuição em ideia.

Falar como forma de se tornar

Cada vez que contamos algo de nós mesmos a alguém, organizamos a narrativa da nossa identidade. Não se trata apenas de informar. Estamos, ali, construindo sentido. “Naquela época eu era muito impulsivo” – ao dizer isso, estamos não só refletindo sobre o passado, mas nos diferenciando dele, assumindo um novo lugar no tempo. A linguagem verbaliza a mudança interior.

A filósofa Hannah Arendt dizia que a ação só se torna política quando é acompanhada da fala. O ser humano se revela ao mundo pelo que diz, mais do que pelo que pensa. Assim, o dizer é um ato de criação subjetiva. Falando, nos tornamos visíveis – e, ao nos ouvirmos falar, também nos vemos.

Linguagem como ferramenta inventiva

A estrutura da linguagem molda a estrutura do pensamento. Idiomas diferentes oferecem visões de mundo distintas. Para os esquimós, existem muitas palavras para “neve”. Para alguns povos indígenas da Amazônia, o tempo não é dividido em passado, presente e futuro. A forma como se fala determina o que se pode pensar.

No cotidiano, isso aparece quando buscamos uma palavra exata para nomear o que sentimos – e, só quando a encontramos, conseguimos agir. O mal-estar vira “ciúme”, ou “angústia”, ou “pressentimento”. Dar nome é mapear o território interno. Wittgenstein já dizia: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”

Pensar com a boca

Existe uma sabedoria na fala espontânea. Às vezes, a gente só entende o que pensa quando começa a explicar. Isso é comum em sessões de terapia, aulas, ou mesmo numa conversa de bar. O pensamento se desdobra conforme a fala se articula. Como se a mente esperasse a boca para ter coragem de se revelar.

Numa perspectiva neurolinguística, esse processo envolve uma retroalimentação entre as zonas cerebrais responsáveis pela formulação verbal e aquelas que coordenam emoções, memória e juízo. O que dizemos influencia o que sentimos, e o que sentimos influencia o que conseguimos dizer. Um circuito vivo.

A fala é o útero do pensamento

Ao contrário do que se pensa, a fala não é filha do pensamento – é sua mãe. Sem linguagem, o pensamento se esvai em intuições fugidias. Com a linguagem, ele ganha corpo, história, direção. Pensamos porque falamos, e falamos para nos tornar.

Talvez por isso conversar seja tão essencial à saúde mental. Ou por isso, quando estamos confusos, dizemos: “preciso botar pra fora.” Ao falar, damos forma ao informe. Ao ouvir a nós mesmos, nos compreendemos melhor. A linguagem é, no fundo, um espelho falante – e talvez seja nela que finalmente nos encontramos.


terça-feira, 22 de abril de 2025

Hedonistas

 

Hoje o papo é sobre os arquitetos do prazer!

Outro dia, esbarrei numa dessas frases estampadas em canecas de livraria: “Viva o agora”. E enquanto tomava meu café meio frio, fiquei pensando: esse “agora” que todo mundo quer tanto viver… será que é mesmo o agora que a gente vive, ou só uma desculpa para fugir do tédio, do compromisso, do peso do depois? Foi aí que me dei conta — estamos rodeados de hedonistas. E, para ser bem honesto, às vezes eu sou um deles.

Mas afinal, o que é ser hedonista hoje em dia? Comer um doce escondido da dieta? Maratonar uma série em plena segunda? Postar uma selfie com filtro e caption filosófico? Talvez sim. Talvez seja também um grito sutil contra um mundo que nos cobra produtividade como religião. O hedonista moderno não é só aquele que busca prazer — ele também se defende do cansaço, da culpa e do controle.

O hedonismo como resistência

Na Grécia Antiga, os hedonistas não eram influencers com drinks coloridos na mão, mas pensadores sérios. Epicuro, por exemplo, acreditava que o prazer era o bem supremo, mas o prazer inteligente — aquele que evita a dor, que cultiva amizades, que vive com simplicidade. Ele provavelmente rejeitaria boa parte do hedonismo pop de hoje, baseado em excesso, consumo e dopamina de curto prazo. Mas não dá pra negar: ainda é tudo uma grande tentativa de escapar da dor.

Há algo de profundamente humano nisso. O hedonista, em última análise, é alguém que entende que a vida é breve e quer sugar dela o néctar antes que azede. Mas eis o dilema: quanto mais a gente corre atrás do prazer, mais ele escapa entre os dedos. Viramos construtores de uma casa que se dissolve à medida que é erguida.

Hedonismo de tela e toque

Hoje, o hedonismo é digital, embalado em algoritmos que nos conhecem melhor do que nós mesmos. Não escolhemos mais o prazer — ele nos escolhe. O vídeo que aparece, o anúncio que pisca, o desejo que não sabíamos que tínhamos. É um hedonismo passivo, quase hipnótico. Estamos sempre prestes a satisfazer algo, mas quase nunca satisfeitos de fato.

E aí surge uma pergunta incômoda: será que ainda sabemos o que realmente nos dá prazer? Ou estamos apenas reagindo a estímulos, como ratinhos em laboratório emocional?

Quando o prazer deixa de ser liberdade

O hedonista consciente é raro. A maioria de nós vive num ciclo de busca e frustração. Comer por ansiedade. Comprar para preencher o vazio. Exigir dos momentos uma intensidade que nem sempre eles têm. Somos acumuladores de experiências, como quem coleciona medalhas que não se pode usar.

O prazer, que era para ser alívio, vira cobrança. “Você precisa aproveitar a vida”, dizem. Mas às vezes tudo que queremos é o silêncio de uma tarde chuvosa, sem ninguém exigindo que sejamos felizes o tempo todo.

Comentário de filósofo

O filósofo francês Michel Onfray, autor de A escultura do prazer, defende um hedonismo ético, ligado ao corpo, à estética e à autonomia. Para ele, o verdadeiro prazer é aquele que dá forma à existência — que não nos escraviza, mas nos liberta. É preciso cultivar o prazer como quem cuida de um jardim: com paciência, sensibilidade e consciência dos limites. Onfray convida a pensar o hedonismo não como fuga, mas como arte de viver.

Em vez de um vício, um estilo de vida

Talvez o segredo esteja em reinventar o hedonismo. Trocar o prazer compulsivo pelo prazer contemplativo. Descobrir que ouvir uma música com atenção pode ser tão prazeroso quanto viajar. Que um abraço, um pão quente, um olhar sincero têm valor — e que isso não se posta, não se monetiza, não se mede.

Ser hedonista, no melhor sentido, talvez seja isso: saber quando dizer sim ao prazer, quando dizer não ao excesso, e quando apenas estar — inteiro, presente, desperto.

No fim das contas, viver o agora não é correr atrás de tudo que brilha. É aprender a sentir o que já está aceso dentro da gente. Mesmo que ninguém veja. Mesmo que não dê curtidas.

sábado, 29 de março de 2025

Entender a Vida

Outro dia, enquanto observava uma folha caída girando ao sabor do vento, me peguei perguntando: "Será que isso aqui tem algum sentido ou estamos todos improvisando?" A vida, afinal, é um espetáculo estranho, sem roteiro fixo e sem garantia de aplausos no final. Mas insistimos em querer entendê-la, como se houvesse um manual escondido em algum canto do universo. Será que entender a vida é uma questão de lógica, de experiência ou de pura rendição ao mistério?

A tradição filosófica nos oferece um cardápio variado de respostas. Os racionalistas apostaram na razão como bússola, os existencialistas abraçaram a angústia da liberdade e os niilistas jogaram a toalha, decretando que tudo não passa de um grande nada. O que há em comum entre eles? A tentativa de dar conta do caos.

No entanto, uma visão que pode mudar radicalmente nossa perspectiva vem do pensamento budista. A ideia de impermanência (Anicca), central no budismo, sugere que nada na vida é fixo ou permanente. O que entendemos como “vida” está em constante fluxo, e, se tentarmos aprisioná-la em conceitos fixos, acabamos negando sua verdadeira natureza. A vida, para o budismo, não é algo a ser entendido em termos de certo ou errado, mas algo a ser vivenciado plenamente em sua transitoriedade. Como o mestre zen Thich Nhat Hanh dizia: "Viver é simplesmente estar presente, perceber o instante e aceitar o movimento constante da existência."

Por um tempo, eu pensava que entender a vida dependia de grandes momentos, como uma grande revelação ou uma descoberta profunda. Mas então, em uma tarde comum, quando estava no mercado, percebi algo simples, mas profundo: vi um homem comprando frutas, sorrindo para o caixa e trocando palavras gentis com a atendente. Aquela troca tão simples me fez perceber que talvez a vida não precise de grandes gestos ou respostas complexas. O sorriso daquele homem, a gentileza nas palavras, mostraram-me que viver com atenção ao momento e com empatia pelos outros é uma forma poderosa de entender a vida. Ele estava, sem saber, praticando o que os budistas chamam de "atenção plena" (mindfulness), e isso me tocou profundamente. Não se trata de encontrar o sentido da vida em teorias abstratas, mas em viver com simplicidade e profundidade no cotidiano.

Talvez o erro esteja em buscar um entendimento definitivo. Schopenhauer dizia que a vida é sofrimento, mas quem nunca riu até a barriga doer? Sartre afirmava que estamos condenados a ser livres, mas por que então nos sentimos tão presos a compromissos e expectativas? O fato é que, ao tentar capturar a essência da vida, acabamos percebendo que ela escapa por entre os dedos, como areia fina.

E se entender a vida for menos sobre encontrar respostas e mais sobre fazer boas perguntas? Viver é um processo em aberto, um texto que escrevemos a cada dia sem saber o final. A compreensão pode não estar no destino, mas no próprio ato de caminhar. Como diria N. Sri Ram, "a mente deve estar sempre aberta ao mistério, pois é nele que o entendimento verdadeiro começa a surgir."

E, no caminho budista, essa entrega ao mistério é vista como a essência da iluminação. Não se trata de entender a vida com a mente racional, mas de viver sem apego, de compreender o vazio (Shunyata) que permeia todas as coisas. Quando aceitamos o vazio como parte do processo, as questões tornam-se menos importantes que a experiência de estar verdadeiramente presente.

No fim das contas, talvez entender a vida seja como aprender uma dança. No início, tropeçamos nos próprios pés, buscamos padrões e tentamos prever os movimentos. Mas, quando finalmente nos entregamos à música, percebemos que o segredo não está em decifrá-la, mas em senti-la. E quem sabe, girando com ela, não descubramos que a folha caída também faz parte da coreografia?


terça-feira, 8 de outubro de 2024

Silêncio Sagrado

Enquanto sorvia meu mate, apreciava o silêncio que me envolvia, era uma mistura de prazeres, o silêncio sagrado e o mate, eventualmente ouvia o suspiro do gato filósofo que também me fazia companhia em seu sono profundo, o silêncio e o mate, ambos me convidando a penetrar neste mundo silencioso um tanto estranho devido aos barulhos constantes do dia a dia. O silêncio sagrado é aquele tipo de quietude que ultrapassa a ausência de sons. Ele representa uma pausa profunda, um respiro da alma. É um momento em que o barulho do mundo se apaga, e o silêncio se transforma em um território de encontro consigo mesmo. Não é apenas a ausência de palavras ou de ruídos, mas a presença de algo maior – uma espécie de sacralidade que envolve e acolhe.

Imagine, por exemplo, acordar numa manhã de domingo e, ao abrir a janela, perceber que o mundo ainda não despertou completamente. Não há carros passando, não há vozes na rua, apenas o som distante do vento nas árvores. Esse silêncio é diferente. Ele tem peso, densidade. É quase como se fosse possível tocá-lo. Esse momento nos conecta com algo além do cotidiano agitado, criando um espaço para a reflexão e o reconhecimento do que é essencial.

Muitas tradições espirituais valorizam o silêncio como um portal para a transcendência. No budismo, o silêncio é um convite à meditação, ao encontro com a mente em seu estado mais puro. Para os cristãos, ele pode ser o momento em que a voz de Deus se faz ouvir. Seja qual for a abordagem, o silêncio sagrado sempre carrega consigo a ideia de que algo profundo está prestes a acontecer – seja uma revelação espiritual, uma compreensão interna, ou simplesmente uma conexão maior com o presente.

No nosso dia a dia, porém, estamos constantemente rodeados por barulho: o trânsito, as conversas, as notificações de celulares, o trabalho incessante. Parece que a modernidade nos desafia a evitar o silêncio, como se estivéssemos com medo dele. E, de certa forma, talvez estejamos. O silêncio sagrado exige que confrontemos a nós mesmos, que paremos de fugir através de distrações e encaremos a vida como ela é, sem filtros.

Na filosofia, o silêncio também tem seu espaço. O filósofo francês Blaise Pascal, por exemplo, escreveu que "todo o problema da humanidade é a incapacidade do homem de ficar em silêncio, sozinho, em seu quarto." Esse silêncio íntimo pode ser perturbador porque nele nos deparamos com nossas dúvidas, nossos medos e, talvez, com a verdade que temos evitado. Contudo, ele também é o caminho para uma maior compreensão de quem somos.

Em um contexto mais mundano, pense naquelas pausas desconfortáveis em uma conversa. O silêncio entre palavras pode, para alguns, parecer estranho ou embaraçoso, como se fosse um espaço a ser rapidamente preenchido. Mas o silêncio também pode ser eloquente. Ele pode ser o momento em que permitimos que o outro realmente se faça presente, sem a necessidade de respostas imediatas. É nesse espaço que a verdadeira escuta acontece, onde as palavras tomam seu devido lugar e se tornam significativas.

No fim das contas, o silêncio sagrado é um convite. É um chamado para parar, ouvir e sentir. Um chamado para deixar o mundo externo em suspenso e voltar-se para dentro. É um momento de reequilíbrio, em que o barulho da mente começa a se dissolver, e o que resta é a serenidade pura de estar em harmonia com o que nos rodeia. Talvez, no silêncio, descubramos que o sagrado não está em algum lugar distante, mas sim, sempre presente, à espera de que nos permitamos escutá-lo. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Filosofia da Tecnologia





Pensamento: “Máquina Pensa, Humano Pensa e Sente”

Acordo pela manhã e, antes de qualquer coisa, a minha mão já busca o celular. Não é tanto a vontade de ver as notificações, mas um hábito enraizado que se tornou quase automático. O despertador que me acorda já é uma criação tecnológica, mas ele é apenas o início. O meu dia é permeado por interações com tecnologia: o café da manhã muitas vezes esquentado no micro-ondas, a música que toca enquanto preparo o pão, e o carro que me leva ao trabalho com um GPS me guiando pelas ruas da cidade procurando escapar das tranqueiras do trânsito. A tecnologia se infiltra na minha rotina de forma tão natural que quase não percebo. Mas será que ela também está moldando a forma como penso e sinto?

Essa reflexão nos leva ao campo da Filosofia da Tecnologia, um ramo da filosofia que busca entender o impacto das ferramentas tecnológicas na vida humana. Desde a invenção da roda até a inteligência artificial, o ser humano sempre buscou criar instrumentos que facilitassem a vida. Mas o que acontece quando essas ferramentas começam a moldar nossas escolhas, nossa maneira de viver e até nossa identidade?

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos filósofos que mergulhou nessa questão, fala sobre a ideia de "enquadramento" (Ge-stell). Para ele, a tecnologia moderna não é apenas um conjunto de ferramentas, mas uma forma de ver o mundo, um paradigma que enxerga tudo — inclusive o ser humano — como um recurso a ser utilizado. Em seu ensaio "A Questão da Técnica", Heidegger alerta que essa visão tecnicista pode nos afastar de uma compreensão mais autêntica do ser. Quando tudo se torna uma questão de eficiência e funcionalidade, perdemos a conexão com o que é verdadeiramente significativo.

Vamos pensar na forma como interagimos nas redes sociais. Aplicativos projetados para maximizar nosso tempo de uso fazem com que sejamos atraídos por notificações e curtidas, enquanto o tempo de uma conversa face a face, ou até mesmo de uma pausa para contemplação, se torna cada vez mais raro. A nossa identidade, em certo sentido, é moldada por algoritmos que definem o que devemos ver, comprar ou desejar.

Em situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode parecer trivial, mas o filósofo italiano, contemporâneo Luciano Floridi, em sua obra "A Revolução da Informação" (publicada em português), argumenta que estamos nos tornando "informacionalmente dependentes", onde o fluxo de informações e a interação digital começam a dominar as nossas vidas a tal ponto que a linha entre o real e o virtual se confunde.

Porém, há um contraponto importante. A tecnologia também nos oferece novas formas de expressão, de conexão e até de autoconhecimento. Ela não precisa ser vista apenas como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio Heidegger, apesar de suas críticas, não condenava a tecnologia em si, mas sim o uso desmedido e acrítico dela.

Albert Borgmann (1937-2023), estadunidense, é outro filósofo contemporâneo conhecido por suas reflexões sobre tecnologia, oferece uma perspectiva instigante sobre essa questão. Em sua obra "Technology and the Character of Contemporary Life" (em tradução livre, "A Tecnologia e o Caráter da Vida Contemporânea"), Borgmann introduz a ideia de "paradigma do dispositivo". Segundo ele, a tecnologia moderna transforma o mundo em uma coleção de dispositivos que prometem conforto e conveniência, mas que, ao mesmo tempo, nos distanciam das experiências mais autênticas e significativas da vida.

Borgmann argumenta que, ao substituir o engajamento direto com o mundo por interações mediadas por dispositivos, estamos perdendo a conexão com o que ele chama de "focal things" (coisas focais) — atividades que exigem nossa atenção plena e que, em troca, nos oferecem uma experiência de realização genuína.

Em situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode parecer trivial, mas Borgmann alerta que ela contribui para um empobrecimento da vida. O simples ato de cozinhar uma refeição caseira, em vez de pedir comida por um aplicativo, pode ser visto como uma forma de resistir ao paradigma do dispositivo e reengajar-se com as atividades que dão sentido à nossa existência.

O contraponto importante aqui é que a tecnologia não precisa ser vista apenas como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio Borgmann também não condena a tecnologia em si, mas sim o uso desmedido e acrítico dela. Ele sugere que devemos cultivar uma relação equilibrada com a tecnologia, utilizando-a como uma ferramenta que complementa, em vez de substituir, as experiências focais que enriquecem nossas vidas. Percebemos que os filósofos parecem se manifestar de maneira parecida quanto ao dilema, e em alguns pontos são até repetitivos, noutros trazem a tona reflexões muito oportunas.

Então, o que fazer diante desse dilema? Talvez a chave esteja em encontrar um equilíbrio, em usar a tecnologia como uma extensão das nossas capacidades, sem permitir que ela nos defina. Isso requer uma vigilância constante, uma reflexão sobre como e por que usamos as ferramentas tecnológicas no dia a dia. O simples ato de decidir passar menos tempo nas redes sociais ou de optar por caminhar sem o auxílio do GPS pode ser um passo pequeno, mas significativo, na direção de uma vida mais consciente.

A Filosofia da Tecnologia, portanto, nos convida a pensar sobre nossa relação com as máquinas e como essa relação está moldando o que significa ser humano. Como Albert Borgmann nos lembra, a verdadeira realização vem de engajamentos que exigem nossa presença total, e não de interações superficiais mediadas por dispositivos. Não se trata de evitar a tecnologia, mas de integrá-la de forma que ela enriqueça, e não empobreça, nossa experiência de vida. 







sexta-feira, 26 de julho de 2024

Ridicularidade Estética

Às vezes, nos pegamos parados em frente ao espelho, questionando se aquela roupa nos cai bem. Ficamos imaginando se o corte do tecido, a cor ou o estilo vão atrair olhares críticos ou, pior ainda, comentários alheios. A verdade é que muitos de nós já deixamos de usar algo que gostamos ou de fazer algo que nos trazia prazer simplesmente porque nos preocupamos demais com o que os outros poderiam pensar. Essa preocupação excessiva com a opinião alheia pode se transformar em um fardo que impede nossa liberdade de expressão e felicidade.

Imagine uma manhã comum, você acorda se sentindo animado para usar aquela camisa amarela vibrante que comprou recentemente. No entanto, logo vem a dúvida: "E se acharem exagerada demais?" A preocupação com os olhares críticos faz com que a camisa volte para o fundo do armário, substituída por algo mais discreto. Mas, será que esse receio realmente vale a pena?

Viver bem com nós mesmos é uma arte que muitos ainda estão aprendendo. Isso significa aceitar nossas escolhas, gostos e peculiaridades, independentemente do que os outros possam pensar. Afinal, como diria o filósofo Friedrich Nietzsche, “Torna-te quem tu és.” Ou seja, devemos abraçar nossa individualidade e viver de acordo com nossos próprios valores e desejos, sem nos submeter aos julgamentos externos.

Ridículo não é quem escolhe usar uma roupa diferente ou adotar um estilo de vida peculiar. Ridículo é aquele que se acha no direito de criticar e tentar moldar a vida dos outros conforme suas próprias percepções limitadas. Julgar os outros é uma maneira pobre de se afirmar, pois demonstra uma falta de compreensão e respeito pela diversidade humana.

No final das contas, a vida é curta demais para ser vivida na sombra das opiniões alheias. Cada momento que passamos nos preocupando com o que os outros vão pensar é um momento que deixamos de aproveitar plenamente. Então, que tal resgatar aquela camisa amarela do fundo do armário e usá-la com orgulho? Que tal fazer aquela dança esquisita que você adora, mesmo que alguém possa achar estranho?

O segredo para uma vida mais feliz e autêntica é simples: viva para você. Faça escolhas que te façam sorrir, que te tragam paz e que reflitam quem você realmente é. E da próxima vez que alguém quiser dar uma opinião não solicitada sobre suas escolhas, lembre-se de que a verdadeira ridicularidade está em quem tenta impor suas próprias inseguranças sobre os outros. Seja você mesmo, sempre.