O livro é uma obra prima de José Saramago,
é um dos livros mais lido e apreciado em Portugal, local de nascimento de
Saramago. Saramago é um autor autodidata, desde cedo demonstrava interesse
pelos estudos e pela cultura, por dificuldades econômicas impediram José
Saramago de fazer os estudos liceais, que o levariam a frequentar a
universidade. Formou-se numa escola técnica e teve o seu primeiro emprego como
serralheiro mecânico, a própria história de Saramago por si só é inspiradora.
Aqui no Brasil uma das obras mais
conhecidas escritas por Saramago foi o “Ensaio
Sobre a Cegueira”, adaptado para o cinema, talvez por seu viés distópico mais
a ver como nossa realidade brasileira, labiríntica, urbana, alienada, obrigando
as pessoas a viverem de formas fora do comum, diante da Sodoma e Gomorra que
viraram a política e a justiça brasileira, mas aí já é outra história.
Memorial do Convento é um romance
histórico de um realismo maravilhoso envolvendo a figura de uma mulher exótica
“Blimunda Sete Luas”, trata de uma história que se passa em Portugal, no começo
do século XVIII, reinado do rei D. João V, período em que Portugal conseguiu se
organizar graças a exploração das minas de ouro no Brasil, daqui foram levadas toneladas
de ouro, durante seu reinado a produção de ouro no Brasil atingiu seu ápice, o
rei português pensava que eram minas inesgotáveis, pensando assim gastou a
torto e a direito em muitas obras e edificações, o ouro que foi obtido na colônia não foi aproveitado de forma a fomentar um estado de facto próspero.
A riqueza proveniente do Brasil, foi muito
utilizada em construções de prédios e monumentos, tais como o Convento de Mafra
ou Palácio de Mafra localizado em Lisboa.
Foi lá que D. João V investiu muito da
riqueza explorada do Brasil colônia, o projeto incluía espaço para só casa para
freiras e padres, incluía um palácio nacional, hospital, biblioteca, basílica e
escritórios administrativos do império português.
João V teve os cognomes de “O Magnânimo” e
“O Rei-Sol Português”, e alguns historiadores recordam-no também como “O
Freirático”. “O Magnânimo”, dada a generosidade com que abriu mão de enormes
fortunas, tanto para engrandecer a coroa como para satisfazer os seus caprichos
pessoais. D. João V era tão esbanjador que um dia mandou fazer uma banheira em
Inglaterra para oferecer a uma das suas amantes. A banheira pesava 100 kg, era
dourada, tinha pés em forma de golfinhos e sereias, e um enorme Netuno com um
tridente na mão à cabeceira. Custou 3500 guinéus (equivalente a 4200 euros
atuais).
Diz a lenda e o livro que a construção do
Convento de Mafra se deu devido a uma promessa feita aos padres franciscanos, D.
João V construiria um grande convento caso sua esposa Mariana engravidasse,
tudo em agradecimento a Deus. Ciente que tal obra devido a sua magnitude
levaria muitos anos para ser edificada, então não poupou esforços nem recursos,
tinha pressa na execução, nem se preocupou se as reservas de ouro oriundas do
Brasil fossem acabar, e foi o que aconteceu, as reservas minguaram levando
Portugal a enfrentar dificuldades financeiras, então os portugueses entenderam
que D. João V desperdiçou recursos que de fato vieram a faltar.
Saramago que também era um crítico social
não poupou críticas a ideia megalomaníaca do rei português, a edificação consumiu
muito da riqueza portuguesas, utilizou mão de obra de milhares de pessoas, que
sofreram muito com as péssimas condições no período da obra, foi uma exploração
calcada na necessidade dos mais necessitados.
O personagem Padre Bartolomeu de Gusmão,
um brasileiro que nasceu em Santos, tinha espirito de cientista e inventor,
brilhante por sua memória e capacidade de raciocínio, foi estudar com bolsa na
Universidade Coimbra, impressionou o rei por suas habilidades, conseguindo
autorização para construir a ambiciosa máquina de voar, aeróstato ou como
chamamos balão, este personagem de fato existiu, Saramago de fato se aproveitou
de uma lenda que o próprio padre ajudou a explorar, uma lenda onde havia um
projeto da criação da máquina de voar chamada passarola, nada mais que uma
brincadeira criada pelo padre.
O padre voador contrata o casal Baltazar
Sete sois e Blimunda Sete Luas, são desafiados e provocados, na quinta do duque
de Aveiro, em S. Sebastião da Pedreira, o ajudar a construir a sua passarola, Baltazar
tido como “o braço direito do Voador”, revela-se de fundamental importância não
apenas para a consecução do projeto, porque “há coisas que um gancho faz melhor
do que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame
ou um ferro, nem se corta, nem se queima”.
Baltasar Mateus, ou Sete-Sóis, conhecido
como o maneta, ele que participou da Guerra da Sucessão Espanhola retornou para
casa sem o braço esquerdo, que substitui por um gancho e/ou por um espigão. É
na capital portuguesa que Baltazar conhece o padre Bartolomeu Lourenço de
Gusmão e a sua companheira, Blimunda Sete-Luas, no auto-de-fé em que a mãe
desta, Sebastiana Maria de Jesus, é condenada por feitiçaria e degredada para
Angola.
Blimunda sete luas (foi uma personagem
criada por Saramago inspirado numa vidente e descrita por historiadores e
viajantes do sec. XVIII, uma mulher que tinha poderes extraordinários, tinha a
capacidade de enxergar através das vontades das pessoas e dos objetos), o casal
ajuda o padre na construção da passarola e ao mesmo tempo vivem uma história
amorosa que faz do jogo afetivo que vivem uma das mais belas e encantadoras
histórias de amor da literatura em língua portuguesa, é uma história de amor,
liberdade de amor, intelectual, e critica a tirania a arbitrariedades num
período mais absolutista no século da inquisição.
O livro é fantástico, tem possibilidade a uma
infinidade de interpretações, é de fato uma obra prima de Saramago, com seu
olhar crítico e criatividade ele consegue preencher brechas que foram deixadas
pela história, Blimunda é uma das personagens femininas pertencente a linhagem
caprichosa saramaguiana, Saramago estabelece um tipo de dialética na figura da
mulher, ela através do diálogo estabelece um contato entre o sagrado e o
profano, em sua ficção aquela figura da mulher profana tem papel de destaque
exercendo liderança sobre o sagrado, alguns até criticaram esta ascendência
como uma heresia, no entanto a literatura como a sexta arte é mais uma vez
iluminada pela riqueza das ideias da mente genial de Saramago.
Trechos:
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está
calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele
sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram,
claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o
pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos
brilhantes como lascado carvão de pedra. (SARAMAGO, 2013: 57)
Aceitas para a tua boca a colher de
que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a
ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu,
e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos
casados. O padre Bartolomeu Lourenço esperou que Blimunda acabasse de comer da
panela as sopas que sobejavam, deitou-lhe a benção, com ela cobrindo a pessoa,
a comida e a colher, o regaço, o lume na lareira, a candeia, a esteira no chão,
o punho cortado de Baltasar. Depois saiu. (SARAMAGO, 2013: 58)
Vão
as formigas ao mel, ao açúcar derramado, ao maná que cai do céu, são quê,
quantas, talvez umas vinte mil, todas para o mesmo lado viradas, como certas
aves marinhas que às centenas se reúnem nas praias para adorar o sol, tanto faz
que o vento lhes dê de rabo, ao arrepio das penas, o que lhes importa é seguir
o olho viajante do céu, e em carreirinhas curtas vão passando à frente umas das
outras, até que se acaba a praia ou o sol se esconde, amanhã voltaremos a este
mesmo lugar, se não viermos nós, nossos filhos virão. Dos vinte mil, quase
todos são homens, as poucas mulheres ficam na periferia do ajuntamento, não
tanto por causa do costume de se separarem os sexos na missa, mas porque,
perdendo-se elas no meio da multidão, vivas, sim, talvez saíssem, mas violadas,
como hoje diríamos, não tentarás o Senhor teu Deus, e se o tentares não venhas
depois queixar-te de que ficaste grávida. (SARAMAGO, 2013: 254)
Fontes:
Saramago, José. Memorial do convento: romance.
1ªed – São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
https://www.vortexmag.net/historia-insolita-de-portugal-o-rei-que-morreu-por-excesso-de-afrodisiacos/