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sexta-feira, 4 de junho de 2021

Objecto Quase – José Saramago


Sou fã de longa data do escritor português José Saramago, são muitos livros geniais, a primeira vez que li um livro dele me impressionou por sua criatividade e por seu modo singular de escrever. Ele conseguiu trazer para literatura um modo de singular oralidade e leitura, usando apenas a vírgula e o ponto, sinais de pausa, veja-se que isto ocorreu a partir de um determinado momento da vida dele, ele acabou reinventando a sua escrita e a escrita de certa forma, o presente livro “Objecto Quase”, traz seis contos breves (Cadeira, Embargo, Refluxo, Coisas, Centauro e Desforra), junto a ele  carrega também esta característica singular de oralidade, os parágrafos são corridos, como “um fluxo verbal que parecia música”, numa cadencia de tradição popular, ao “imprimir ao discurso escrito o ritmo do discurso oral”. A literatura de Saramago não é para preguiçosos, mesmo os contos curtos trazem a riqueza de palavras diferentes das do cotidiano, nos fazem pensar sobre o sentido ofertado pelo autor, requer do leitor a utilização da memória na busca do arcabouço de palavras que deixamos de usar e de outras que nunca ouvimos falar, é de fato uma fonte enriquecedora, nos faz pensar que parte de nosso vocabulário que esquecemos é devido a nossa pressa em viver nesta sociedade de inovações tecnológicas e exigências de árduo desempenho, muito também é devido a nossa permissão da intromissão de linguajar em sua maioria vulgares no sentido da invasão de palavras alienígenas a nossa bela língua, vamos trocando a boa palavra por uma ruim e mal escrita.

Penso que também neste sentido do bom hábito, a literatura de Saramago nos remete a boa leitura, ao bom exemplo de como as pessoas podem se expressar utilizando a riqueza nas descrições das ações mais mundanas, humanas e cotidianas, os contos do livro Objecto Quase são ótimos exemplos de como se pode descrever coisas e situações de maneira minuciosa, bela e inteligente, com um maravilhoso realismo e até neorrealismo.

Para falar na obra é preciso falar do autor, Saramago é um autor autodidata, desde cedo demonstrava interesse pelos estudos e pela cultura, por dificuldades económicas impediram José Saramago de fazer os estudos liceais, que o levariam a frequentar a universidade. Formou-se numa escola técnica e teve o seu primeiro emprego como serralheiro mecânico, a própria história de Saramago por si só é inspiradora.

Aos 25 anos, publica o primeiro romance Terra do Pecado (1947), galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. A 24 de Agosto de 1985 foi agraciado com o grau de Comendador da Antiga, Nobilíssima e Esclarecida Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, do Mérito Científico, Literário e Artístico e a 3 de Dezembro de 1998 foi elevado a Grande-Colar da mesma Ordem, uma honra geralmente reservada apenas a Chefes de Estado.

Sinopse do livro Objecto Quase

"O ditador caiu duma cadeira, os árabes deixaram de vender petróleo, o morto é o melhor amigo do vivo, as coisas nunca são o que parecem, quando vires um centauro acredita nos teus olhos, se uma rã escarnecer de ti atravessa o rio. Tudo são objectos. Quase." Do conto "Cadeira" Publicadas pela primeira vez em 1978, essas seis narrativas breves e tensas evidenciam as raízes do maravilhoso em Saramago. Absurdas, líricas, irônicas, elas traduzem um capitalismo em agonia, atmosfera de fim de linha, de sociedades em que os bens de consumo circulam às expensas da própria vida. Daí a escrita que se move em ciclos, emulando ritmos alternados de crise e prosperidade, parodiando a circulação também incessante, distanciada e sem sentido das mercadorias. E, apartada do mundo, a consciência elabora sua vingança. Talvez a maior de todas seja a linguagem, que se destina a ferir e referir as coisas a distância. Daí o permanente poder de crítica desses escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o poético, o político.

Dentre os seis contos preferi destacar o conto “Coisas”, o conto carrega dentro de si duas histórias, com uma ambiguidade cifrada dentro dos espaços da história, os mistérios aos poucos são revelados e alguns quase previsíveis, ficando para o final o mistério principal, podemos nos enxergar na história como os personagens do conto vivendo em nosso mundo contemporâneo. A leitura em sua magia consegue prender o leitor do início ao fim, talvez seja também porque Saramago esteja utilizando mensagens cifradas, nossos velhos conhecidos como alienação, reificação, individualismo.

O conto Coisas descreve um funcionário público, solteiro vivendo sozinho em um apartamento, neste ponto Saramago apropriadamente inicia sua narrativa fantástica reforçando desde seu início a solidão com seu caráter sombrio das presenças insólitas, contribuindo para o descrédito das situações que serão vivenciadas pelo protagonista. Seu apartamento localiza-se em uma cidade cujos objetos (de todos os tipos, incluindo o apartamento) começam a desaparecer misteriosamente, as pessoas que vivem nesse local são divididas em castas (hierarquia demarcada por letras em ordem alfabética) e algumas confiam firmemente no governo e na solução que ele dará ao problema que assola o local.

 

...- Não me foi possível. Lembro-lhe que sou um cidadão utente das primeiras precedências. Ao mesmo tempo que dizia estas palavras, o utente abriu a mão direita, com a palma para cima, mostrando um C verde tatuado na pele. O funcionário olhou a letra, depois o mostrador que conservava ainda os sinais verificados e acenou a cabeça afirmativamente... (SARAMAGO, 1994, p.70).

 

Tempo houve em que o processo de fabrico tinha atingido um tal grau de perfeição, que os defeitos vieram a tornar-se raríssimos, a ponto de o governo (g) compreender que não era conveniente retirar aos cidadãos utentes (pelo menos aos das precedências A, B e C) o gosto cívico e o prazer da reclamação. (SARAMAGO, 1994, p.73).

Contemporaneamente estamos nos desinteressando por muitas coisas por pensarmos que elas não têm mais conserto, coisas que não tem mais jeito nem recuperação, sabemos que agindo desta forma, com desinteresse e acomodação, iniciamos um processo de alienação, deixamos nas mãos de outros a decisão dos nossos destinos, coisa que aos poucos e com o passar do tempo causa nossa perda de identidade, a manipulação torna-se fácil, nos tornamos presas fáceis, no trecho da leitura encontramos:

As pessoas pareciam caminhar ao acaso, sem destino, limitavam-se a estender os braços e a mostrar a mão direita. Visto de cima, naquele silêncio, o espectáculo daria vontade de rir: os braços subiam e desciam, as mãos, brancas, com as manchas verdes das letras, faziam um aceno rápido e logo caíam, para alguns passos adiante se repetir todo o movimento. Eram como doentes de ideia fixa na alameda de um manicómio. (SARAMAGO, 1994, p.92).

Além do processo de alienação das pessoas, encontramos também e principalmente aquilo o que as pessoas se tornam ao se deixarem alienar, uma vez que tendo se perdido a identidade, a manipulação deste ser alienado tornou-se fácil, é quando inicia outro processo que é o processo de reificação humana, a coisificação humana, a metamorfose de seres para coisas, como mercadorias, cadeiras, mesas, pás, enxadas, martelos, cabos, botões e teclas, necessário seu uso com pouca inteligência, a manipulação das coisas denominadas trabalhadores, colaboradores, servidores, ou em seus ramos e nichos de exploração agora denominados contribuintes, eleitores, massa, rebanhos, fiéis.


Trechos do conto deixam explícitos que se trata de uma reificação humana, que lá existe um demasiado controle do governo sobre a sociedade e que no final possivelmente haverá algo próximo a uma rebelião desses Objcetos quase contra os homens, cujo final devera ser desastroso.

Porem, ao final somos surpreendidos com a forma que é construído e com as indagações que ficam, fica espaço para indagações e nossa criatividade, talvez para alguns um final que deveria existir evitando terem de pensar, afinal a alienação funciona assim mesmo.

A reificação está presente no conto como já seria previsto, com a alienação é a reificação que se cristaliza, ou seja, a transformação do trabalhador em mercadoria, é quando ele passa pelo processo de coisificação, sendo visto como uma coisa, como parte de sua produção. Esse processo é um reflexo do fato de que tudo no mundo moderno tem se tornado mercadoria: valores, status e sentimentos são agora produtos comercializáveis.

Agora é preciso reconstruir tudo. E uma mulher disse: —Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas. (SARAMAGO, 1994, p.103).

Ao final Saramago alegoricamente dentro de sua ficção mostra que o recomeço é possível a cada dia, mesmo para a nossa sociedade tecnológica, alienada e reificada. Ele conseguiu trabalhar em seu conto aspectos como autoritarismo, poder social do povo, reificação de seres humanos e a consequente humanização dos objetos, ou seja, a antropomorfização dos objectos. Como de praxe Saramago fez a inserção do discurso fantástico, ampliando o referencial de leitura abrindo um leque de sentidos implícitos em um conto que problematiza a vida do homem na sociedade contemporânea.

Fonte:

Saramago, José. Objecto Quase: contos. São Paulo. Companhia das Letras, 1994

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