Certa manhã, ao atravessar a cidade ainda despertando, vi um homem caminhando com o olhar perdido, como se estivesse preso em um sonho do qual não conseguia acordar. Não era um caso clínico de sonambulismo, mas algo mais sutil: uma forma de existir no mundo sem realmente estar nele. Era como se sua mente fosse uma folha em branco sobre a qual nunca escreveram nada, ou pior, um quadro que alguém insiste em apagar todos os dias.
A
metáfora da "tábula rasa" percorre a história da filosofia há
séculos. Da concepção aristotélica, passando por John Locke, até as críticas
contemporâneas, a ideia de que nascemos como uma página em branco sobre a qual
a experiência escreve é, ao mesmo tempo, libertadora e inquietante. Se somos
apenas o resultado das influências externas, então onde está nossa autonomia? E
se, ao invés de protagonistas, fôssemos apenas sonâmbulos perambulando por
narrativas que nunca escolhemos?
O
mundo moderno, saturado de informações, paradoxalmente não nos desperta, mas
nos mantém em um estado de sonambulismo existencial. Movemo-nos pelas ruas,
ocupamos funções, consumimos conteúdos, mas muitas vezes sem verdadeira
reflexão. A tábula rasa não é mais aquela superfície pura e receptiva, mas uma
lousa onde os algoritmos, a publicidade e as pressões sociais apagam e
reescrevem incessantemente o que acreditamos ser. Quem somos, afinal, quando
tudo ao redor dita o que devemos desejar, temer e amar?
A
teoria da tábula rasa foi frequentemente criticada por sugerir uma
maleabilidade extrema da mente humana, como se fôssemos meros recipientes
esperando ser preenchidos. Steven Pinker, por exemplo, argumenta que a
neurociência e a genética desmontam essa visão simplista: não somos apenas
moldados pelo ambiente, há predisposições inatas que influenciam nossa forma de
agir e pensar. Mas mesmo que admitamos essa mistura de biologia e experiência,
a questão persiste: o quanto de nossas vidas é vivido conscientemente e o
quanto é apenas repetição de padrões introjetados?
Talvez
o problema não seja apenas a tábula rasa, mas o estado sonâmbulo em que nos
encontramos. É fácil aceitar as estruturas impostas quando se está entorpecido,
quando não se faz perguntas. O filósofo Theodor Adorno criticava essa
passividade ao afirmar que a indústria cultural transforma indivíduos em
consumidores dóceis, incapazes de resistência crítica. E se nossa apatia não
fosse uma escolha, mas o efeito de uma programação constante, como um quadro
negro apagado antes que qualquer pensamento se torne permanente?
Despertar
desse estado exige esforço, exige perguntar-se sobre o que realmente se pensa e
por quê. Requer coragem para desafiar as histórias que nos contam sobre nós
mesmos e para reivindicar a autoria da própria existência. Talvez nunca sejamos
páginas totalmente em branco, mas também não precisamos aceitar que sejam
outros a escrever por nós. O desafio é sair desse sonambulismo e aprender a
empunhar a própria pena.
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