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quarta-feira, 30 de julho de 2025

Cegueira ou Denegações

Quando não ver é escolher não saber

Tem horas em que a gente finge que não viu. Passa batido por uma cena injusta, uma palavra atravessada, um silêncio que grita. “Deixa quieto”, dizemos, como se a quietude não fosse, muitas vezes, o berço da violência. Há uma diferença entre não ver e não querer ver — e é nessa fresta que se instala um tipo de cegueira escolhida, uma negação da realidade que, com o tempo, se torna hábito.

Chamemos isso de denegação, como propôs Freud: o sujeito reconhece o que é, mas recusa-se a aceitá-lo como verdadeiro. Vê, mas diz a si mesmo que não é bem assim. Não é ignorância pura, é um mecanismo de defesa, uma forma de manter intacta a imagem que temos de nós mesmos, do mundo, das pessoas próximas. A denegação protege — mas também anestesia, torna o real um borrão onde o incômodo é suavizado até se dissolver.

O filósofo francês Jacques Rancière, ao refletir sobre o partilhamento do sensível, nos ajuda a pensar esse fenômeno. Segundo ele, aquilo que percebemos como real, visível ou audível está condicionado por uma partilha — uma divisão do que pode ser dito, visto, sentido. A cegueira, nesse contexto, não é ausência de visão, mas resultado de um regime de percepção. Não vemos o que não fomos ensinados a ver. Ou pior: escolhemos não ver o que ameaça nossa ordem interna, emocional ou política.

No cotidiano, isso aparece nas pequenas covardias: a piada preconceituosa que deixamos passar, a solidão do colega de trabalho que ignoramos, o comportamento autoritário que justificamos como “jeito dele”. A denegação permite que continuemos a funcionar, a produzir, a sorrir. Mas ela cobra seu preço: a realidade volta, quase sempre, pelo lado do sintoma.

Talvez o maior gesto de coragem hoje seja reaprender a ver — e aceitar o que se vê. Porque a lucidez, ainda que dolorosa, pode ser libertadora. Como diz a escritora portuguesa Lídia Jorge: “a cegueira é a maneira como o mundo escolheu não ver a sua própria desordem”.

Então, diante de cada escolha de ignorar, vale perguntar: isso é cegueira — ou apenas mais uma denegação disfarçada de paz?


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Tabula Rasa - Inquietante

Certa manhã, ao atravessar a cidade ainda despertando, vi um homem caminhando com o olhar perdido, como se estivesse preso em um sonho do qual não conseguia acordar. Não era um caso clínico de sonambulismo, mas algo mais sutil: uma forma de existir no mundo sem realmente estar nele. Era como se sua mente fosse uma folha em branco sobre a qual nunca escreveram nada, ou pior, um quadro que alguém insiste em apagar todos os dias.

A metáfora da "tábula rasa" percorre a história da filosofia há séculos. Da concepção aristotélica, passando por John Locke, até as críticas contemporâneas, a ideia de que nascemos como uma página em branco sobre a qual a experiência escreve é, ao mesmo tempo, libertadora e inquietante. Se somos apenas o resultado das influências externas, então onde está nossa autonomia? E se, ao invés de protagonistas, fôssemos apenas sonâmbulos perambulando por narrativas que nunca escolhemos?

O mundo moderno, saturado de informações, paradoxalmente não nos desperta, mas nos mantém em um estado de sonambulismo existencial. Movemo-nos pelas ruas, ocupamos funções, consumimos conteúdos, mas muitas vezes sem verdadeira reflexão. A tábula rasa não é mais aquela superfície pura e receptiva, mas uma lousa onde os algoritmos, a publicidade e as pressões sociais apagam e reescrevem incessantemente o que acreditamos ser. Quem somos, afinal, quando tudo ao redor dita o que devemos desejar, temer e amar?

A teoria da tábula rasa foi frequentemente criticada por sugerir uma maleabilidade extrema da mente humana, como se fôssemos meros recipientes esperando ser preenchidos. Steven Pinker, por exemplo, argumenta que a neurociência e a genética desmontam essa visão simplista: não somos apenas moldados pelo ambiente, há predisposições inatas que influenciam nossa forma de agir e pensar. Mas mesmo que admitamos essa mistura de biologia e experiência, a questão persiste: o quanto de nossas vidas é vivido conscientemente e o quanto é apenas repetição de padrões introjetados?

Talvez o problema não seja apenas a tábula rasa, mas o estado sonâmbulo em que nos encontramos. É fácil aceitar as estruturas impostas quando se está entorpecido, quando não se faz perguntas. O filósofo Theodor Adorno criticava essa passividade ao afirmar que a indústria cultural transforma indivíduos em consumidores dóceis, incapazes de resistência crítica. E se nossa apatia não fosse uma escolha, mas o efeito de uma programação constante, como um quadro negro apagado antes que qualquer pensamento se torne permanente?

Despertar desse estado exige esforço, exige perguntar-se sobre o que realmente se pensa e por quê. Requer coragem para desafiar as histórias que nos contam sobre nós mesmos e para reivindicar a autoria da própria existência. Talvez nunca sejamos páginas totalmente em branco, mas também não precisamos aceitar que sejam outros a escrever por nós. O desafio é sair desse sonambulismo e aprender a empunhar a própria pena.