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domingo, 2 de fevereiro de 2025

Assédios

Quando a Linha Invisível é Ultrapassada

As cafeterias são mundos de vida vibrante e cheia de estórias. Outro dia, num café movimentado, vi uma cena que me fez refletir. Um homem insistia em puxar conversa com a atendente, mesmo depois dela ter dado sinais claros de que não queria papo. Sorrisos forçados, respostas monossilábicas, um olhar de socorro para a colega ao lado. O homem parecia alheio a tudo isso. Para ele, era só uma conversa amigável. Para ela, era um incômodo, talvez até medo.

A cena ilustra um problema antigo, mas que hoje ganha novas camadas de discussão: o assédio. Ele não está apenas no ambiente de trabalho, nem se limita ao aspecto sexual. O assédio pode ser psicológico, moral, digital. Ele ocorre quando alguém atravessa um limite que não deveria – e, pior, quando se recusa a enxergar que o ultrapassou.

O Poder na Dinâmica do Assédio

O filósofo francês Michel Foucault nos ajuda a entender o assédio ao analisar as relações de poder. Para ele, o poder não é uma estrutura fixa, mas algo que circula em redes, manifestando-se nos pequenos gestos do cotidiano. O assédio acontece, muitas vezes, porque existe uma assimetria nessa relação: um chefe que pressiona um funcionário, um professor que abusa da autoridade, um influenciador que expõe seguidores ao ridículo. O problema não é só a conduta em si, mas a incapacidade de resistência por parte da vítima, seja por medo, dependência ou insegurança.

A sutileza do assédio também complica sua identificação. Quantas vezes ouvimos frases como “era só uma brincadeira”, “você está exagerando”, “ele não fez por mal”? Essa minimização faz parte da engrenagem que mantém o problema funcionando. O filósofo Zygmunt Bauman diria que vivemos em uma sociedade líquida, onde os limites entre o aceitável e o inaceitável são constantemente negociados – e, muitas vezes, distorcidos para beneficiar quem tem mais poder.

A Cultura da Insistência

O assédio também se alimenta de um problema cultural: a romantização da insistência. Em filmes, novelas e músicas, o “não” é visto como um desafio a ser vencido. O problema é que essa mentalidade legitima abusos, tornando natural a ideia de que certas barreiras não precisam ser respeitadas. A filósofa brasileira Djamila Ribeiro critica essa normalização, mostrando como ela reforça desigualdades e perpetua opressões históricas.

E no ambiente profissional? Pierre Bourdieu falava de um “habitus” social que molda comportamentos e expectativas. Em muitos lugares, o assédio moral é um reflexo desse habitus, onde a hierarquia justifica abusos sob a máscara da “cobrança por resultados” ou do “jeito duro de liderar”.

Como Romper o Ciclo?

A primeira resposta parece óbvia: educação. Mas não basta ensinar regras, é preciso mudar mentalidades. Um “não” não precisa ser gritado para ser válido. Desconforto não precisa virar sofrimento para ser levado a sério.

A segunda resposta é estrutural: fortalecer canais de denúncia, dar segurança para que as vítimas falem e garantir que as consequências sejam reais. Se o assédio persiste, é porque muitas vezes ele não custa nada para quem o pratica.

Mas há também a responsabilidade individual. Todos nós, em algum momento, já fomos espectadores passivos de alguma forma de assédio. Quantas vezes deixamos passar uma piada agressiva, um comentário constrangedor, um abuso disfarçado de brincadeira? O silêncio é parte do problema.

No café onde tudo começou, a atendente foi salva pela colega, que entrou na conversa e, com um tom mais firme, fez o homem recuar. Uma pequena resistência, mas que fez diferença naquele momento. O problema do assédio não se resolve de uma vez, mas se enfraquece quando as pessoas param de fingir que ele não existe. Afinal, respeito não deveria ser uma concessão, mas uma regra básica de convivência.

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