Outro dia, enquanto observava um amigo lutando com um novo celular, fiquei pensando: por que ainda insistimos na ideia de que mente e corpo são entidades separadas? Meu amigo praguejava contra a tecnologia, mas ao mesmo tempo parecia quase esperar que o aparelho entendesse seu desespero. Ali, naquele embate entre homem e máquina, vi um reflexo do que Gilbert Ryle chamaria de "o erro categorial" – a velha crença no fantasma na máquina.
Ryle,
em sua crítica ao dualismo cartesiano, nos alerta contra a ilusão de que a
mente seja uma substância distinta do corpo, um fantasma controlando uma
engrenagem. Para ele, essa separação é um mal-entendido filosófico, uma
confusão semelhante a tentar encontrar a "universidade" ao olhar
apenas para os edifícios, salas e corredores de um campus. A mente não é um
lugar escondido dentro do corpo; ela se manifesta nas próprias ações e
comportamentos de um indivíduo.
Tomemos,
por exemplo, o caso de alguém jogando xadrez. Para um dualista, há um
"pensador" interno elaborando as jogadas e depois ordenando as mãos a
moverem as peças. Para Ryle, isso é um absurdo: a inteligência não está dentro
da cabeça como um pequeno ser estrategista, mas sim na própria prática do jogo,
nas habilidades demonstradas ao longo das partidas. A mente é comportamento,
não uma substância invisível manipulando cordas.
Isso
tem implicações profundas para como encaramos a consciência, a identidade e até
a inteligência artificial. Quando falamos em "mentes" de robôs ou
"consciência" de inteligências artificiais, talvez estejamos apenas
projetando a velha crença dualista. Um algoritmo pode exibir comportamento
inteligente, mas isso significa que pensa? Ou estamos, mais uma vez, vendo
fantasmas onde há apenas engrenagens simbólicas?
A
beleza da proposta de Ryle é que ela nos convida a repensar a forma como
descrevemos a experiência humana. Em vez de nos preocuparmos em localizar a
mente em algum "lugar secreto", talvez devamos prestar mais atenção
às expressões, gestos e atitudes que fazem de cada um de nós quem somos. E, se
olharmos bem, veremos que nunca houve um fantasma na máquina – apenas a própria
máquina, vivendo e se expressando de forma incrivelmente complexa.