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quarta-feira, 11 de junho de 2025

Apego e Aversão

 

Os fios que nos puxam...

Há dias em que tudo parece querer nos segurar. A velha caneca de café, o casaco preferido gasto nos cotovelos, o lugar certo à mesa do almoço. E há dias em que tudo irrita: o barulho da rua, o aviso do celular, a mesma pergunta repetida no trabalho. Apego e aversão são como dois fios invisíveis que nos puxam, sem que percebamos, para cá e para lá — como marionetes gentis da nossa própria mente.

No mercado, a senhora que resmunga porque mudaram de lugar o pacote de arroz talvez nem saiba, mas ali está o apego disfarçado de costume. No ônibus, o rapaz que enfia fones de ouvido para fugir da conversa do lado pratica uma pequena aversão, querendo sumir do mundo em miniatura. Apego e aversão são esses gestos miúdos, diários, quase sem peso — e que, somados, fazem a alma perder leveza.

No amor, por exemplo, o apego se disfarça de zelo. É o ciúme que não deixa o outro respirar, a expectativa de que o parceiro complete nossos vazios. Queremos segurar o amor, garantir que não acabe, como quem segura água nas mãos. E quando o outro se afasta um pouco — um olhar distraído, uma resposta seca — surge a aversão: raiva disfarçada de mágoa, desejo de punição. Para Simone Weil, esse é o momento em que deveríamos aceitar o vazio — não exigir do outro a felicidade que só a graça pode dar.

Na amizade, o apego é querer que o amigo continue sempre o mesmo, preserve as mesmas opiniões, os mesmos gostos. E a aversão surge quando ele muda: novas ideias, novos interesses — como se fosse uma traição. Mas a verdadeira amizade, como lembrava N. Sri Ram, reconhece o movimento da vida e permite que o outro cresça, mesmo que vá para longe de nós.

No trabalho, o apego aparece como medo de perder o cargo, a rotina, o status. Tornamo-nos escravos do desempenho — cada e-mail respondido, cada tarefa cumprida para manter o lugar conquistado. E nasce a aversão a tudo que ameaça esse equilíbrio: mudanças, novos chefes, jovens colegas criativos. Para Byung-Chul Han, essa lógica de produtividade incessante nos esgota porque não há espaço para a pausa, para o não-fazer — nos tornamos máquinas de nós mesmos, com aversão ao simples descanso.

N. Sri Ram, no livro O Interesse Humano e outros discursos e ensaios curtos, me lembra que esse apego à forma — seja do amor, da amizade ou do trabalho — impede a verdadeira abertura ao real. Queremos que as coisas fiquem como estão porque tememos o desconhecido. Mas a vida não para: nem o parceiro amoroso, nem o amigo de infância, nem o emprego perfeito. Tudo flui. E a alma livre é a que aprende a acompanhar esse movimento sem agarrar nem repelir.

No fundo, como diz a sabedoria zen, apego e aversão são dois nomes para o mesmo medo: o de perder o controle. E o controle é sempre uma ilusão.

Talvez o segredo esteja mesmo em tocar o mundo com mãos abertas — sem fechar o punho sobre o que se ama, sem empurrar com raiva o que desagrada. Ver, sentir, deixar passar. Como quem atravessa um campo e deixa a relva voltar ao lugar.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Ironia Socrática

Por que fingir não saber ainda é tão necessário?

Se você já viu alguém numa reunião de trabalho perguntar, com a cara mais inocente do mundo: “Mas por que estamos mesmo fazendo isso?”, você presenciou um traço da ironia socrática. Não é sarcasmo, não é zombaria. É aquela pergunta que desarma a falsa certeza, que descola a máscara do saber técnico e revela o vazio do automatismo. Num tempo em que todos querem parecer especialistas de tudo — da política à nutrição, passando por filosofia de vida e investimentos — a ironia socrática surge como um antídoto poderoso contra os discursos prontos e os saberes engessados.

A ironia socrática não é apenas um método filosófico de questionamento; é uma atitude diante do mundo. Sócrates, aquele que nada escreveu e tudo perguntou, caminhava pelas ruas de Atenas desafiando os cidadãos a explicarem aquilo que julgavam saber. Ele fingia ignorância, mas não por vaidade ou escárnio: ele acreditava que o verdadeiro saber começa quando admitimos não saber. Esse fingimento, longe de ser uma fraude, era um convite. E, talvez, a modernidade precise mais do que nunca desse convite sutil.

Nos tempos atuais, essa ironia muda de cenário. Não está mais na ágora, mas pode aparecer nas redes sociais, nos podcasts, nas conversas entre amigos, nas falas de um professor que desmonta certezas com uma pergunta simples. Hoje, a ironia socrática pode ser praticada por quem ousa interromper o fluxo das opiniões automáticas e dizer: “Me explica melhor, por favor. O que exatamente você quer dizer com isso?”

Essa postura tem algo de corajoso. No mundo das aparências, quem se diz ignorante corre o risco de parecer fraco. Mas talvez a força esteja justamente em resistir à pressa de saber tudo. A ironia socrática moderna é subversiva porque desacelera. Ela não propõe respostas fáceis, mas escava o chão das ideias e revela suas rachaduras.

Além disso, essa ironia tem um potencial ético: ela obriga o outro — e a nós mesmos — a refletir com mais cuidado, a responsabilizar-se pelo que diz. Não basta repetir fórmulas, slogans ou estatísticas. A pergunta socrática escava: “O que isso significa, de fato?” É uma ferramenta contra a superficialidade, contra a alienação do discurso, contra a embriaguez da própria opinião.

Como escreve o filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro, “o que Sócrates nos ensinou, mais que tudo, é o valor do diálogo como forma de buscar o bem”. Em tempos de polarizações e certezas rígidas, o espírito socrático se torna mais necessário do que nunca. Talvez devêssemos reaprender a perguntar como quem não sabe, não para manipular, mas para encontrar juntos alguma luz no meio do barulho.

No fundo, a ironia socrática nos lembra que pensar não é acumular verdades, mas depurar ilusões. E isso — nos tempos modernos, de verdades líquidas e vozes gritadas — é quase um ato de resistência.

Vamos as aplicações contemporâneas da ironia socrática

1. Na educação: ensinar a perguntar

Imagine um professor diante de uma turma que decorou fórmulas, definições, datas. A aula flui, mas algo falta. Então o professor para e pergunta:

“Mas por que vocês acham que isso é importante?”

Silêncio.

Essa pergunta, que parece simples, desestabiliza. É a ironia socrática entrando em cena: questionar não apenas o conteúdo, mas o próprio sentido do saber.

Na prática pedagógica, o uso da ironia socrática não é zombaria, mas provocação no melhor sentido: provocar o pensamento adormecido. Ao invés de entregar o conteúdo pronto, o professor encena sua ignorância para que os alunos construam argumentos, desenvolvam critérios. Ensinar deixa de ser um ato de transmitir e passa a ser um ato de escavar juntos o que vale a pena saber.

2. Na política: a pergunta que desarma o discurso

No debate político, a ironia socrática é rara, mas poderosa. Ela surge quando alguém recusa o jogo da agressividade e responde com uma pergunta desconcertante:

— “Você disse que quer ‘resgatar os valores da família’. Pode explicar quais são esses valores e de onde vêm?”

Essa pergunta, feita sem atacar, abre um buraco no discurso. A ironia socrática, nesse contexto, desideologiza. Ela tenta separar argumento de emoção, crença de convicção, e exige do outro mais do que frases decoradas: exige pensar.

Em tempos de palanques digitais e trincheiras ideológicas, a ironia socrática é como oxigênio: não grita, mas expõe. Não se impõe — convida. É o diálogo em vez do monólogo armado.

3. Na cultura digital: o gesto subversivo de dizer “não sei”

Nas redes sociais, todos têm opinião sobre tudo — da vacina à guerra, da dieta ao fim do mundo. Quem diz “não sei” parece fraco. Mas há um poder imenso nessa frase.

Talvez a ironia socrática hoje apareça quando alguém comenta com honestidade:
— “Desculpa, não entendi bem essa notícia. Alguém pode me explicar?”

Essa pergunta, feita com verdadeira curiosidade, rompe a corrente da vaidade informativa. Ela abre espaço para um novo tipo de inteligência: aquela que prefere aprender do que parecer saber.

Aqui, a ironia não é fingimento de ignorância, mas um ato de humildade. Uma ética da dúvida. Uma recusa à pressa de ter razão. É a pausa que desativa a ansiedade opinativa e reinventa o sentido de conversar.

Finalizando: o saber que nasce da escuta

Reviver a ironia socrática nos tempos modernos não é uma nostalgia de método, mas uma urgência de atitude. Fingir não saber para provocar o pensamento do outro não é manipulação: é uma forma ética de cuidado. É pedagogia, é política, é comunicação genuína.

Num mundo que valoriza a aparência do saber, a ironia socrática resgata a profundidade da escuta. Ela não é contra o conhecimento — ela é contra a ilusão de que já sabemos tudo.

Como Sócrates, talvez devêssemos andar pelas ruas, pelos feeds, pelos corredores das escolas e dos escritórios, apenas perguntando:

“O que é isso que você diz saber?”

— e, quem sabe, a partir daí, possamos pensar juntos.

sábado, 3 de maio de 2025

Amor Filosófico

Dizem que o amor cega, mas talvez ele apenas abra os olhos para um mundo que não se encaixa nas categorias rígidas da razão. Numa conversa de bar ou numa caminhada solitária, ele pode surgir como um problema filosófico: o que é o amor? Sentimento? Escolha? Ilusão? Ou uma estrutura profunda que sustenta a própria experiência de existir?

O amor filosófico não é apenas um conceito abstrato dos livros, mas uma força que molda nossa relação com a verdade, a ética e a própria identidade. Platão, por exemplo, em "O Banquete", descreve o amor como um desejo de alcançar o Belo e o Bem, uma escada que leva da paixão carnal à contemplação do divino. Spinoza, por outro lado, vê o amor como um caminho para a liberdade, pois amar é compreender, e compreender é dissolver as correntes do medo e da ignorância.

Mas o amor filosófico não precisa ser apenas uma busca transcendente. Ele pode ser um método de viver. Nietzsche provocaria: e se amássemos sem querer domesticar o outro? Sem projetar nele nossas carências e expectativas? Hannah Arendt talvez nos lembrasse que o amor tem um caráter político: ele constrói laços, mas também pode destruir, afastando-nos do espaço público e nos encerrando numa bolha subjetiva.

Hoje, vivemos em tempos onde o amor se tornou um mercado de performances. Persegue-se a compatibilidade algorítmica, romantiza-se a ideia de "alma gêmea", mas teme-se o compromisso real, que exige trabalho e transformação. Talvez seja hora de resgatar o amor como um ato filosófico, onde amar não é consumir o outro, mas criar junto com ele um mundo que antes não existia.

Se o amor cega, que seja apenas para que possamos enxergar além das aparências, além da superfície das convenções e das fórmulas prontas. Um amor filosófico é aquele que pergunta, que se inquieta, que não se contenta com a resposta fácil. Talvez, no fim das contas, amar seja uma forma de filosofar – e filosofar, a mais intensa forma de amar.

 


sexta-feira, 2 de maio de 2025

Véu de Maia


 Quando o mundo engana com delicadeza

Outro dia, enquanto sorvia um mate no final da tarde, reparei num pôr do sol absurdo de bonito. Céu alaranjado, nuvens cor-de-rosa e um leve vento que parecia dançar com as folhas da árvore ao lado. Por um instante, tudo parou. E logo depois, tudo voltou: buzinas, pressa, notificações. Foi quando me veio a pergunta — e se isso tudo fosse só um cenário? E se a beleza, a pressa, o tédio e até a matéria fossem... encenações?

A filosofia oriental, especialmente no hinduísmo, tem um conceito encantador para isso: Maia. Uma palavra pequena para uma ideia enorme — a ilusão do mundo sensível. Segundo essa visão, tudo o que percebemos com os sentidos é uma espécie de teatro cósmico. Não que seja “falso”, mas que é incompleto. O mundo como o vemos seria um véu — bonito, detalhado, realista — que esconde algo mais verdadeiro por trás.

O cotidiano por trás da cortina

A gente vive nesse véu o tempo todo. Na conversa com o colega que sorri, mas por dentro chora. No “tá tudo bem” que serve de capa para o caos emocional. No desejo que nos arrasta para comprar um celular novo, como se isso fosse salvar o dia. A realidade parece sólida, mas talvez seja só espuma.

O curioso é que até a ciência moderna nos ajuda a duvidar da solidez das coisas. Os átomos que compõem tudo são, em sua maior parte, espaço vazio. A matéria é vibração, campo, possibilidade. A física quântica, mesmo sem intenção mística, nos diz que o que chamamos de real é muito mais estranho do que pensamos.

E no fundo, quem nunca viveu aquela sensação de acordar de um sonho que parecia mais real do que a segunda-feira?

O ego também é Maia disfarçada

Na psicologia, principalmente na psicanálise e na psicologia transpessoal, há uma ideia parecida: o eu que achamos que somos não é quem realmente somos. Criamos uma persona — o profissional, o engraçado, o tímido, o forte — e acreditamos nela como se fosse identidade. Mas por trás da máscara, há um outro ser: mais silencioso, mais profundo, talvez até mais sábio. Só que ele não grita, não posta stories, não bate ponto.

Viver sob o véu de Maia, então, é mais do que uma metáfora espiritual: é a nossa rotina. É reagir a imagens, a sombras, a expectativas. É sofrer por algo que nem aconteceu, ou desejar algo que, depois de conquistado, vira paisagem.

Rasgando o véu, mesmo que só um pouco

Mas às vezes, sem querer, o véu rasga. Um luto, uma queda, um amor profundo. Algo nos tira do automático. Como se um raio atravessasse a encenação. E por alguns segundos, vemos — mesmo sem entender — que existe algo maior, mais calmo, mais verdadeiro por trás do corre.

Os mestres espirituais dizem que essa verdade se chama Consciência. Aquilo que observa tudo sem se confundir com nada. Não é a mente, nem o corpo, nem as emoções — é o que permanece quando tudo isso muda.

Como se vive sabendo disso?

Não há uma receita. Mas talvez seja esse o convite: olhar o mundo com delicadeza, mas sem apego. Apreciar o teatro, sabendo que é teatro. Brincar de viver, sabendo que há um mistério nos bastidores. Não precisa sair da vida comum. Só lembrar, de vez em quando, que talvez a realidade seja como aquele pôr do sol: linda, mas passageira. E que, por trás de tudo isso, há um silêncio que nunca muda. Talvez ali more o real.

“A realidade, tal como a percebemos, é apenas uma ilusão — embora uma ilusão bastante persistente.”

Albert Einstein

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Escapismos e Conflitos

 

Outro dia, entrei num aplicativo de delivery só pra ver o cardápio — sem fome, sem intenção de pedir nada. Minutos depois, percebi que já estava há meia hora ali, entre imagens de hambúrgueres e promoções de sushi. Quando fechei o celular, senti uma estranha paz. Como se eu tivesse conseguido fugir de alguma coisa. Mas fugir de quê, exatamente? Do tédio? De um incômodo que eu não queria nomear? Ou de algum conflito interno que me esperava na curva do pensamento? Foi aí que comecei a pensar sobre o papel do escapismo na nossa vida — e como ele se mistura, se confunde e às vezes até alimenta os nossos próprios conflitos.

A natureza do escapismo

Escapar não é necessariamente um erro. É humano. Desde as cavernas, inventamos maneiras de esquecer a dor. Primeiro com histórias ao redor do fogo, depois com deuses, depois com novelas e redes sociais. Hoje, cada notificação é uma brecha para fora de nós mesmos. Escapar é criar atalhos mentais, anestesias rápidas para os choques da realidade.

Mas o que está por trás desse impulso? O filósofo francês Blaise Pascal dizia que “toda a infelicidade do homem se deve a uma única coisa: não saber ficar quieto num quarto.” Ele não estava falando de paz, mas de enfrentamento. Ficar sozinho, em silêncio, é quase como entrar em campo contra um adversário invisível — você mesmo.

O conflito como revelador

Todo escapismo nasce de um conflito, mas raramente o resolve. Às vezes, ele o posterga, às vezes o alimenta. A série que maratonamos para esquecer o vazio da segunda-feira talvez só o aprofunde. O vinho do sábado à noite, tomado para afastar a angústia da solidão, pode se transformar em um ritual que a eterniza. E é assim que o escape vira prisão.

No fundo, o conflito tem uma função reveladora. Ele nos mostra o que não queremos ver. Ele aponta rachaduras. Conflitos internos são como alarmes: barulhentos, incômodos, mas essenciais. É neles que moram as perguntas mais difíceis — e por isso mesmo mais importantes.

A ilusão do alívio

N. Sri Ram, pensador da tradição teosófica, dizia que "a mente está sempre em movimento, e esse movimento é, em grande parte, uma fuga da percepção verdadeira do que somos." Segundo ele, enquanto não cessarmos esse movimento de fuga, não encontraremos clareza. Isso significa que enquanto estivermos nos distraindo, estaremos nos afastando de uma percepção mais lúcida da vida — mesmo quando acreditamos estar “cuidando da saúde mental”.

O escapismo é, nesse sentido, uma ilusão de alívio. Ele parece proteger, mas nos fragiliza. Ele parece nos dar liberdade, mas nos aprisiona em ciclos de repetição. Quanto mais fugimos, mais nos perdemos.

O que fazer com isso?

Escapar é inevitável. Mas talvez o segredo esteja em saber de onde se escapa, para onde se escapa — e por quê. Às vezes, precisamos de uma pausa, sim. Um filme, uma viagem, um livro. Mas a pergunta fica: esse refúgio está me preparando para voltar mais inteiro? Ou está me afastando ainda mais do que preciso encarar?

O verdadeiro caminho talvez não seja nem fuga nem conflito direto, mas um meio-termo atento: perceber quando estamos escapando, e o que exatamente estamos evitando. Porque às vezes, no meio de uma fuga, podemos acabar tropeçando na verdade. E isso, sim, pode ser o começo de uma reconciliação interna.

No fim das contas, não se trata de eliminar o escapismo, mas de compreendê-lo como sintoma. E talvez, quem sabe, começar a escutar os conflitos com menos medo. Porque eles, mais do que obstáculos, são portas — incômodas, mas honestas — para aquilo que ainda não entendemos sobre nós mesmos.

 

domingo, 13 de abril de 2025

Territoriais e Egoístas

Outro dia, entre um café passado na hora e um barulho qualquer vindo da rua, percebi que não precisava de muito para me incomodar. Bastava alguém sentar onde costumo sentar. Um desconhecido, ali, naquele canto que sempre foi meu. Claro que não era meu de fato — a cadeira é do mundo, o espaço é livre —, mas aquilo mexeu comigo. Um incômodo quase infantil, como se tivessem me tirado o cobertor preferido. E foi aí que a pulga filosófica mordeu: será que somos, todos nós, essencialmente territoriais e egoístas?

O ego no centro: um velho conhecido

Não é novidade dizer que o ego gosta de espaço. Não só espaço físico, mas simbólico: lugar na conversa, nas decisões, no mundo. O ego quer ser notado, lembrado, preferido. Quer um canto para chamar de seu. Freud já apontava isso quando falava do ego como mediador entre nossos impulsos internos e o mundo externo. Mas mesmo esse mediador às vezes se esquece da diplomacia e bate o pé: “isso é meu”.

Ser territorial é mais do que proteger um pedaço de chão. É proteger uma narrativa: “aqui sou eu, aqui está a minha marca, aqui é onde eu existo de forma mais plena.” Isso vale pro assento do ônibus, pro lugar na fila, pro armário da cozinha, pro afeto de uma pessoa. A territorialidade tem menos a ver com geografia e mais com identidade.

Egoísmo: autodefesa ou vício?

Somos treinados desde pequenos para entender que dividir é bonito. Mas entre o discurso e o gesto há um abismo. Quando chega a hora de repartir o último pedaço de pizza ou dar atenção ao problema alheio enquanto estamos exaustos, o egoísmo aparece com suas garras bem polidas. E não necessariamente como maldade — às vezes ele é só um mecanismo de sobrevivência.

Thomas Hobbes diria que o ser humano, no estado natural, é competitivo por necessidade. "O homem é o lobo do homem", dizia ele, numa sociedade onde todos lutam por segurança, reconhecimento e posse. Egoísmo, nesse contexto, é estratégia. É o modo que encontramos de garantir nossa permanência num mundo onde tudo parece escasso: tempo, amor, respeito.

Mas será que o mundo é realmente escasso, ou nós é que o dividimos com cercas invisíveis?

A ilusão da posse e os muros que criamos

Quando alguém ocupa "nosso" espaço, sentimos que perdemos algo. Mas o que exatamente? Um conforto? Uma ilusão de controle? A verdade é que muito do nosso egoísmo nasce da crença de que temos domínio sobre algo que, na prática, nunca foi só nosso.

Nietzsche dizia que “o egoísmo é a base de toda moralidade saudável”, o que soa controverso. Mas ele se referia a um egoísmo criativo, vital, que nos impulsiona a afirmar a própria existência. O problema é quando esse impulso vira exclusão. Quando, para que eu exista, o outro precisa desaparecer.

Nesse ponto, a territorialidade se torna um espelho do medo. Medo de não ser visto, de ser substituído, de ser irrelevante. Protegemos territórios como quem protege a própria sombra.

Um caminho possível: desapegar do centro

Se somos todos territorialistas e egoístas por natureza, talvez o desafio não seja negar isso, mas entender como equilibrar. Dar lugar ao outro sem perder o nosso. Compartilhar sem desaparecer. Habitar um mundo onde a existência não precise ser uma disputa constante.

A sabedoria budista fala de não-apego, de reconhecer que tudo é fluxo. Nada é fixo — nem o assento do café, nem as pessoas que amamos, nem as ideias que defendemos com unhas e dentes. Ser menos territorial talvez seja entender que o espaço que realmente importa é aquele que abrimos dentro de nós para o outro existir.


domingo, 6 de abril de 2025

Ensaios do Indizível

Outro dia, no meio de uma conversa aleatória com um amigo que acredita que "tudo tem explicação", me peguei pensando: e quando não tem? E quando a coisa escapa tanto da linguagem, da lógica e até da intuição, que tudo o que nos resta é um silêncio constrangido ou um balbucio filosófico meio envergonhado? A gente vive cercado de certezas práticas, manuais de instrução e tutoriais para tudo. Mas o que fazemos com aquilo que não se pode dizer? Com aquilo que está além da física, da lógica e da experiência direta? Eis aí o terreno escorregadio da metafísica — essa arte (ou obsessão) de tentar expressar o indizível.

A ânsia de nomear o que escapa

Desde os pré-socráticos, passamos tentando capturar o ser com palavras, como se o ser fosse um animal exótico que bastasse descrever para compreender. Parmênides nos dizia que o ser é e o não-ser não é. Simples assim — e ao mesmo tempo, brutalmente enigmático. Mas com o passar dos séculos, a metafísica se tornou um tipo de cartografia do invisível: queríamos desenhar mapas de territórios que nem sequer temos certeza se existem.

A questão é que a metafísica opera numa espécie de contrabando do pensamento: ela tenta contrabandear conceitos que ultrapassam qualquer experiência possível. Fala-se do "absoluto", do "uno", do "transcendente", como se fossem objetos que pudéssemos virar nas mãos. Mas não podemos. Wittgenstein nos alertou no Tractatus: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.” O problema é que não conseguimos calar. Queremos desesperadamente dizer.

A linguagem e seus limites

A linguagem é feita para o mundo das cadeiras, dos copos, dos encontros às seis e das dores de cabeça. Ela serve para o cotidiano, para a descrição do que se vê, se toca, se mede. Mas quando tentamos usá-la para falar de "ser-em-si", "causa primeira" ou "nada absoluto", ela começa a ranger, a falhar, a tropeçar nas próprias pernas. É como tentar desenhar um cheiro.

Aqui entra o jogo perigoso da metafísica: ela transforma a impotência da linguagem em discurso autoritário. Ao nomear o inominável, cria sistemas, doutrinas, dogmas. Mas o que ela faz, no fundo, é construir castelos no ar — belos, complexos, sofisticados — mas ainda assim suspensos no vazio.

A ilusão útil (e talvez necessária)

Dizer que a metafísica é ilusória não é dizer que ela é inútil. Como dizia Kant, ela é uma necessidade da razão, mesmo que sem objeto. Ou seja, estamos programados para ultrapassar os limites da experiência. Há em nós uma sede de totalidade, um desejo de saber se há algo antes, depois, por trás, dentro de tudo. Esse desejo não morre mesmo quando nos dizem que não há como satisfazê-lo.

E talvez seja esse o valor mais profundo da metafísica: não como ciência do ser, mas como arte do abismo. Ela nos ensina que há perguntas que não têm resposta, apenas reverberações. Que há experiências que só se vivem, mas nunca se explicam. Que há um "algo mais" que, ainda que nunca possamos compreender, nos move — como uma música que nunca ouvimos inteira, mas da qual não conseguimos esquecer a melodia.

Um filósofo e o silêncio

O pensador brasileiro Vicente Ferreira da Silva escreveu que "toda metafísica verdadeira começa pelo assombro e termina no silêncio". É isso. Não se trata de negar a metafísica, mas de compreender que sua tarefa não é dizer o que é o ser, mas nos colocar diante dele, em estado de escuta, de humildade, de espanto. Não é à toa que os místicos — aqueles que chegaram mais perto do indizível — terminam calando. Ou rindo. Ou chorando.

Concluindo (ou o começo do silêncio)

Talvez o mais inovador a dizer sobre a metafísica seja exatamente isto: que ela fracassa, mas que seu fracasso é revelador. Que ela é impossível, mas necessária. Que ela é ilusória, mas inevitável. E que, no fundo, o maior ato filosófico pode ser admitir que há coisas que só se compreendem quando se desiste de explicá-las. A metafísica, nesse sentido, não é uma resposta, mas um gesto. Um gesto de apontar — com palavras trêmulas — na direção do indizível.

E talvez, só talvez, isso já seja o suficiente.


sábado, 22 de março de 2025

Fantasma na Maquina

Outro dia, enquanto observava um amigo lutando com um novo celular, fiquei pensando: por que ainda insistimos na ideia de que mente e corpo são entidades separadas? Meu amigo praguejava contra a tecnologia, mas ao mesmo tempo parecia quase esperar que o aparelho entendesse seu desespero. Ali, naquele embate entre homem e máquina, vi um reflexo do que Gilbert Ryle chamaria de "o erro categorial" – a velha crença no fantasma na máquina.

Ryle, em sua crítica ao dualismo cartesiano, nos alerta contra a ilusão de que a mente seja uma substância distinta do corpo, um fantasma controlando uma engrenagem. Para ele, essa separação é um mal-entendido filosófico, uma confusão semelhante a tentar encontrar a "universidade" ao olhar apenas para os edifícios, salas e corredores de um campus. A mente não é um lugar escondido dentro do corpo; ela se manifesta nas próprias ações e comportamentos de um indivíduo.

Tomemos, por exemplo, o caso de alguém jogando xadrez. Para um dualista, há um "pensador" interno elaborando as jogadas e depois ordenando as mãos a moverem as peças. Para Ryle, isso é um absurdo: a inteligência não está dentro da cabeça como um pequeno ser estrategista, mas sim na própria prática do jogo, nas habilidades demonstradas ao longo das partidas. A mente é comportamento, não uma substância invisível manipulando cordas.

Isso tem implicações profundas para como encaramos a consciência, a identidade e até a inteligência artificial. Quando falamos em "mentes" de robôs ou "consciência" de inteligências artificiais, talvez estejamos apenas projetando a velha crença dualista. Um algoritmo pode exibir comportamento inteligente, mas isso significa que pensa? Ou estamos, mais uma vez, vendo fantasmas onde há apenas engrenagens simbólicas?

A beleza da proposta de Ryle é que ela nos convida a repensar a forma como descrevemos a experiência humana. Em vez de nos preocuparmos em localizar a mente em algum "lugar secreto", talvez devamos prestar mais atenção às expressões, gestos e atitudes que fazem de cada um de nós quem somos. E, se olharmos bem, veremos que nunca houve um fantasma na máquina – apenas a própria máquina, vivendo e se expressando de forma incrivelmente complexa.


sexta-feira, 21 de março de 2025

Determinação e Determinidade

Outro dia, enquanto escolhia entre café filtrado ou expresso, percebi que a escolha já não era minha. O gosto, a necessidade do momento e até o ambiente onde eu estava pareciam determinar minha decisão antes mesmo que eu refletisse sobre ela. Foi aí que pensei em Hegel: será que a verdadeira liberdade não está na compreensão do que já nos determina? E, mais do que isso, o que significa ser determinado e ter determinidade?

No pensamento hegeliano, determinação (Bestimmung) e determinidade (Bestimmtheit) são conceitos fundamentais na lógica do ser. Determinação é o processo pelo qual algo se define em relação ao que não é, enquanto determinidade é o estado resultante desse processo, a identidade de algo enquanto algo específico. O que parece paradoxal é que, ao sermos determinados, também nos tornamos mais livres. Mas como isso funciona?

Para Hegel, a liberdade não é um estado de indeterminação absoluta, como se pudéssemos escolher qualquer coisa a qualquer momento. Pelo contrário, liberdade é compreender as determinações que nos constituem e agir a partir delas. Uma semente não é livre para ser qualquer coisa, mas, ao se desenvolver segundo sua essência, encontra sua verdadeira liberdade como árvore. Assim também ocorre conosco: não podemos escapar das determinações da cultura, da história ou das circunstâncias, mas podemos compreendê-las e usá-las para crescer.

A grande sacada hegeliana é que tudo o que existe tem sua verdade na relação com o outro. Ser determinado não é estar aprisionado, mas ser situado. O café que escolhi não é uma escolha arbitrária, mas um reflexo da minha identidade, que se constrói em cada pequena decisão. Se tentasse agir de maneira absolutamente indeterminada, negando todas as influências e condicionantes, acabaria na inação – um paradoxo que Hegel desmantela em sua dialética.

No contexto social e político, essa ideia tem implicações profundas. A ilusão de uma liberdade sem determinação leva a um individualismo estéril, enquanto a compreensão de nossas determinações nos dá poder sobre elas. O reconhecimento da própria determinidade permite que nos posicionemos no mundo com consciência, transformando nossas limitações em possibilidades. Assim, ao invés de fugir daquilo que nos determina, podemos nos apropriar disso e agir com sentido.

Então, na próxima vez que parecer que uma escolha já foi feita por você, talvez valha a pena perguntar: isso me aprisiona ou me define? Afinal, como Hegel nos ensina, o que nos determina também pode ser aquilo que nos liberta.


segunda-feira, 17 de março de 2025

Proposições de Valor

Entre o Preço e o Sentido

Outro dia, enquanto tomava um café numa livraria, ouvi uma conversa curiosa entre dois amigos. Um dizia que um produto "valia muito", ao que o outro respondia que “o valor era relativo”. Fiquei pensando: falamos tanto em valor, mas o que ele realmente significa? Para uma empresa, pode ser a proposta de valor que diferencia um serviço dos concorrentes. Para um colecionador, pode ser o significado sentimental de um objeto. Para um filósofo, bem… é aí que as coisas se complicam.

O Valor Como Construção

A primeira pergunta que surge é: o valor é algo objetivo ou subjetivo? Desde Platão, há quem defenda que certas ideias e valores são eternos e imutáveis, como a Justiça ou o Bem. Já Nietzsche desmontou essa visão ao dizer que valores são criações humanas, reflexos de forças culturais e históricas. Se for assim, então o que vale para um tempo pode não valer para outro. O ouro já foi a medida do valor absoluto, mas hoje, para muitos, os dados digitais são mais valiosos.

Pense em um ingresso para um show. Ele tem um preço fixo, mas seu valor muda se for o último ingresso disponível ou se for para a despedida da sua banda favorita. Da mesma forma, a amizade tem valor, mas não pode ser comprada. Isso significa que o valor não está na coisa, mas na relação que estabelecemos com ela.

Proposição de Valor: Uma Ilusão?

Nos negócios, o conceito de proposição de valor é essencial. Empresas criam narrativas sobre por que seus produtos são especiais. Mas isso não reflete apenas uma necessidade real, e sim uma construção simbólica. Se compramos um café artesanal por R$ 20, não estamos pagando apenas pelo grão moído, mas pelo status, pela experiência, pelo cheiro da cafeteria. Então, até que ponto o valor é real ou apenas uma ilusão bem contada?

Bauman dizia que vivemos tempos líquidos, onde valores mudam rapidamente. Se isso é verdade, as proposições de valor são promessas instáveis: hoje uma marca pode ser um símbolo de status, amanhã pode ser esquecida. Valores morais seguem a mesma lógica: o que era visto como virtude há cem anos pode ser considerado arcaico hoje.

Valer é Existir?

Se o valor é sempre uma relação, podemos dizer que existir é valer algo para alguém. Um objeto só tem valor se houver um olhar que o reconheça. Um ideal só tem força se houver quem acredite nele. Nietzsche dizia que o homem é um ser que avalia—e talvez seja essa nossa maldição e nosso privilégio. Criamos valores porque precisamos dar sentido ao mundo. Mas será que conseguimos viver sem confundi-los com verdades absolutas?

Da próxima vez que alguém disser que algo "vale muito", pergunte: para quem? e por quê?. Talvez o verdadeiro valor esteja justamente na pergunta.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Desprovido de Individualidade

 

A Ilusão da Multiplicidade

Há um paradoxo curioso em nossa época: nunca fomos tão obcecados pela ideia de sermos indivíduos e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão uniformizados. A promessa da identidade personalizada nos vende roupas sob medida, playlists algorítmicas e um feed social moldado exatamente para os nossos gostos – mas esses gostos são realmente nossos? Ou apenas variações calculadas de um modelo invisível?

 

A questão da individualidade sempre foi um tema central na filosofia. Desde Aristóteles, que via no ser humano um composto de forma e matéria com uma identidade singular, até Kierkegaard, que falava do desespero de não ser si mesmo, a preocupação com o que nos torna únicos atravessa os séculos. No entanto, há uma questão que raramente se aborda: e se a busca pela individualidade for, na verdade, apenas mais uma forma de conformidade?

 

A Individualidade Como Produto

Vivemos em um tempo onde tudo pode ser adquirido – inclusive a ilusão de ser único. Basta observar a lógica da moda, da tecnologia ou até mesmo das ideologias contemporâneas. Há um fenômeno curioso: o sujeito que se veste “alternativo” para se diferenciar muitas vezes apenas escolheu um nicho diferente dentro do mesmo sistema. O mercado entende bem essa necessidade e oferece pacotes de individualidade prontos para consumo. Você pode ser o “hipster descolado”, o “executivo minimalista”, o “espiritualista místico” – mas, no fim, cada uma dessas opções já vem com um roteiro pré-definido de gostos, opiniões e comportamentos esperados.

 

Baudrillard chamaria isso de um sistema de signos em simulação: o sujeito acredita estar escolhendo sua identidade, mas, na verdade, apenas circula entre categorias prontas. Assim, o desejo de se diferenciar é absorvido pelo próprio sistema que uniformiza. Paradoxalmente, quanto mais tentamos ser únicos dentro dessas categorias, mais previsíveis nos tornamos.

 

O Verdadeiro Risco: A Perda do Interior

O perigo maior, porém, não está apenas nessa uniformização visível. Está na forma como nos desligamos de nosso próprio mundo interior. A individualidade autêntica não é apenas uma questão estética ou de comportamento, mas um estado de consciência. A ausência de individualidade real se manifesta quando alguém deixa de interrogar a si mesmo, quando suas opiniões são meras respostas automáticas a estímulos externos.

 

N. Sri Ram, pensador da tradição teosófica, via a individualidade como algo que não podia ser imposto de fora, mas apenas descoberto de dentro. Segundo ele, a verdadeira identidade surge do contato profundo com aquilo que nos é essencial, e não do esforço constante de se diferenciar dos outros. Em outras palavras, a busca por ser único pode ser, ironicamente, o maior obstáculo para a individualidade real.

 

A Multiplicidade Como Ilusão

Talvez a grande questão não seja o medo de perder a individualidade, mas sim a ilusão de que a possuímos apenas porque escolhemos entre opções previamente definidas. O desafio não está em parecer diferente, mas em perceber até que ponto estamos realmente pensando por nós mesmos. O que consideramos ser nossas escolhas podem ser apenas respostas condicionadas a estímulos invisíveis.

 

O mundo atual nos vende uma multiplicidade infinita de possibilidades de identidade, mas essa multiplicidade pode ser apenas um jogo de espelhos que reflete versões levemente alteradas de um mesmo modelo. Ser um indivíduo, no sentido mais profundo, não é seguir um caminho de diferenciação em relação aos outros, mas um caminho de escavação interna, onde se descobre o que permanece quando todos os rótulos e expectativas desaparecem.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Topologia do Eu

Identidade como Espaço Dinâmico

Em um mundo que se reinventa a cada instante, a identidade humana é muitas vezes tratada como um porto seguro, um centro fixo que confere continuidade à nossa experiência. Mas e se abandonássemos essa noção de estabilidade para imaginar o “Eu” como um espaço dinâmico, uma superfície em constante transformação? Inspirada na topologia matemática, que estuda as propriedades dos espaços que permanecem invariantes sob transformações contínuas, esta perspectiva filosófica propõe compreender a identidade como um campo fluido e relacional, moldado por experiências, memórias e relações.

Identidade como Fluxo

Heráclito, ao declarar que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, plantou as sementes para uma compreensão do ser como fluxo. O Eu, nessa visão, é menos um objeto e mais um movimento, algo que não pode ser capturado em uma definição fixa. A filosofia contemporânea de Henri Bergson acrescenta a esse debate a ideia do tempo como duração: não um conjunto de instantes isolados, mas um continuum onde passado e presente coexistem. Assim, a identidade é tanto uma memória acumulada quanto uma transformação constante.

O Espaço Relacional do Eu

Nenhuma identidade existe no vácuo. Emmanuel Levinas e Judith Butler nos ensinam que o Eu é profundamente relacional: ele emerge na interação com o Outro. A topologia do Eu, nesse sentido, é uma superfície moldada pelo contato com as diferenças. Cada relação é uma nova dobra, uma extensão ou contração no espaço identitário. Por exemplo, ao nos conectarmos com um amigo que vive em uma cultura diferente, nossa identidade se expande para incluir novas perspectivas. O Eu, assim, não é um território, mas uma cartografia em construção.

Temporalidade e Memória

Maurice Halbwachs propõe que a memória coletiva é um componente central da nossa identidade. Em uma perspectiva topológica, poderíamos imaginar o Eu como uma superfície onde as memórias se acumulam, formando relevos que influenciam nossas escolhas e a percepção do presente. Contudo, essas memórias não são estáticas: elas se reconfiguram à medida que reinterpretamos o passado. O “Eu” de hoje não é idêntico ao de ontem, mas também não é completamente outro; ele é o resultado de um movimento de continuação e reinterpretação.

A Era Digital e a Virtualidade do Eu

No contexto contemporâneo, a tecnologia digital reconfigura a topologia do Eu, adicionando camadas virtuais à nossa identidade. Redes sociais, avatares e interações online criam espaços paralelos que coexistem com o mundo físico. Por exemplo, a forma como nos apresentamos no Instagram pode ser uma expansão estética ou mesmo idealizada do Eu, enquanto nosso histórico de buscas no Google reflete preocupações mais pragmáticas. Essas camadas podem entrar em conflito, mas também enriquecem a compreensão do Eu como um ser multifacetado.

Ética da Dinamicidade

Aceitar a identidade como um espaço dinâmico não é apenas uma questão teórica, mas também um desafio ético. Em vez de buscar um ideal de coerência ou autenticidade fixa, devemos aprender a celebrar a flexibilidade e a adaptação. Isso implica acolher nossas contradições e compreender que o crescimento muitas vezes vem das mudanças mais radicais na nossa topologia identitária. Como diria Zygmunt Bauman, na modernidade líquida em que vivemos, a capacidade de nos transformarmos pode ser a nossa maior virtude.

Pensar a identidade como um espaço dinâmico é um convite a abandonar a segurança ilusória da permanência e a abraçar a riqueza da transformação. A topologia do Eu revela que somos mais do que narrativas lineares ou essencialismos reducionistas; somos mapas em constante redesenho, superfícies que dançam com o tempo, com o outro e com o inesperado. Esse olhar não apenas expande nossa compreensão filosófica, mas também nos desafia a viver com mais abertura para as infinitas possibilidades do ser.


domingo, 22 de dezembro de 2024

Escola Sem Partido

A discussão sobre a ideia de “escola sem partido político” vem polarizando opiniões em vários setores da sociedade. Defensores dessa proposta argumentam que a educação deve ser neutra, livre de doutrinações ideológicas, enquanto críticos apontam que a neutralidade completa é um mito e que a escola, por sua natureza, é um espaço de formação crítica e política, no sentido amplo do termo.

A Escola e o Papel da Política

Para compreender a questão, é necessário primeiro definir o que significa “política” no contexto educacional. Política, nesse caso, não se refere apenas a partidos ou correntes ideológicas, mas ao desenvolvimento da capacidade de convivência em sociedade, de interpretação crítica do mundo e de participação cidadã. Desde os tempos de Paulo Freire, sabe-se que educar é, em si, um ato político, pois envolve escolhas sobre o que ensinar, como ensinar e com que finalidade.

Por outro lado, há um temor legítimo de que professores imponham suas próprias convicções a alunos em formação. Essa preocupação, no entanto, não deve ser usada para justificar um silenciamento ou a proibição de debates. Uma escola que proíbe o pensamento crítico corre o risco de se tornar um espaço de conformismo, em vez de emancipação.

Neutralidade: Realidade ou Ilusão?

A ideia de neutralidade completa na educação é amplamente questionada por pensadores e educadores. Como a historiadora Heloísa Starling observa, “a neutralidade política é, em si, uma posição política”. Isso porque toda escolha curricular, desde os temas abordados até os livros utilizados, reflete uma visão de mundo. Por exemplo, ensinar história sem mencionar questões de desigualdade social ou movimento de resistência é uma decisão política tanto quanto abordá-las.

Ademais, o ambiente escolar é composto por seres humanos com crenças, valores e experiências distintas. Tentar despolitizar esse espaço pode levar a uma privação de discussões importantes que ajudam a formar a consciência crítica dos alunos.

O Risco de Censura

A implementação de projetos como o “Escola Sem Partido” tem levantado preocupações sobre censura e limitação da liberdade acadêmica. Professores podem se sentir intimidados a ponto de evitar temas que, embora relevantes, possam ser vistos como controversos. Isso cria um ambiente de medo e autocensura, prejudicando o principal objetivo da educação: estimular o pensamento livre e autônomo.

Um exemplo concreto é o debate sobre questões de gênero e diversidade, frequentemente alvo de críticas de grupos que defendem a “escola sem partido”. Ignorar esses temas é ignorar a realidade vivida por muitos estudantes, o que pode levar à exclusão e perpetuação de preconceitos.

Para uma Escola Crítica e Plural

Em vez de buscar uma neutralidade inalcançável, a escola deve se comprometer com o pluralismo. Isso significa garantir que diferentes perspectivas sejam apresentadas, estimulando os alunos a pensarem por si mesmos. Como sugeriu o educador Paulo Freire, “a educação não transforma o mundo. A educação muda as pessoas, e as pessoas transformam o mundo”.

Nesse sentido, a solução não é calar vozes, mas abrir espaço para o debate respeitoso e embasado. Professores devem ser mediadores que apresentam diferentes visões de mundo, permitindo que os alunos construam suas próprias conclusões.

A introdução de discussões sobre o tema “escola sem partido político” ou questões relacionadas deve considerar a maturidade cognitiva e emocional dos alunos. Uma abordagem progressiva pode ser adequada:

Ensino Fundamental I (6 a 10 anos):

Nesse estágio, é importante focar em valores como respeito, diversidade e a importância de ouvir diferentes pontos de vista.

Pode-se usar exemplos concretos e histórias adaptadas que ensinem as crianças a reconhecer diferentes perspectivas, sem necessidade de abordar o tema diretamente.

Ensino Fundamental II (11 a 14 anos):

Aqui, os alunos já estão mais preparados para entender conceitos abstratos como opinião, neutralidade e diversidade ideológica.

É possível introduzir o debate de maneira leve, usando temas próximos do cotidiano escolar, como a importância de regras e como elas refletem diferentes necessidades.

Ensino Médio (15 a 17 anos):

No Ensino Médio, os alunos já têm maior capacidade de pensamento crítico e argumentação.

Esse é o momento ideal para abordar diretamente o tema, introduzindo conceitos de política no sentido amplo, discutindo o papel da escola e estimulando debates plurais.

Adaptar a profundidade do debate à faixa etária é essencial para garantir que os alunos compreendam o contexto e desenvolvam pensamento crítico de forma saudável. Se quiser, posso adaptar o texto principal para incluir esse ponto.

A proposta de uma “escola sem partido político” traz à tona questões complexas sobre o papel da educação na sociedade. Embora seja fundamental evitar doutrinações e respeitar a diversidade de opiniões, é igualmente essencial reconhecer que a escola é um espaço político por excelência. Em vez de buscar uma neutralidade ilusória, é preciso apostar na formação crítica, plural e inclusiva, onde todas as vozes possam ser ouvidas e respeitadas. Assim, estaremos formando não apenas alunos, mas cidadãos conscientes e preparados para transformar o mundo.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Balela

O Eco do Nada no Cotidiano

Ah, a balela... essa palavra que soa como o balançar de folhas ao vento, mas que ao mesmo tempo carrega a leveza de algo que não se sustenta. No fundo, é a essência daquilo que parece ser, mas não é; do que promete sentido, mas entrega o vazio.

Imagine a cena: você está no trabalho, rodeado por colegas que discutem animadamente sobre as buzzwords do mês. “Precisamos pivotar a estratégia”, alguém anuncia com um olhar triunfante. Outro emenda: “Mas sem perder o foco no core business”. Você ouve, acena, mas, por dentro, já sabe que nada de concreto sairá dali. Balela pura. Um espetáculo de palavras que giram em torno de si mesmas, mas que no fim só ocupam espaço.

Mas não precisamos ir tão longe. Pense naquele grupo de WhatsApp da família, onde surgem correntes que prometem milagres. “Passe limão no pé e cure sua ansiedade em 24 horas.” É balela em estado bruto, mas, curiosamente, encontra solo fértil. Talvez porque em meio ao caos da modernidade, até o absurdo reconforta.

O Cotidiano da Balela

A balela vive nos detalhes:

No chefe que diz “a empresa é uma família” enquanto corta benefícios.

No amigo que jura “qualquer coisa, estou aqui” e some quando você precisa de ajuda.

Na política, onde slogans vazios prometem mudanças impossíveis.

O mais curioso é que a balela não só sobrevive, mas prospera. Ela seduz, porque entrega um simulacro de verdade sem exigir esforço. A realidade é complexa e árdua; a balela, por outro lado, oferece atalhos fáceis para a mente cansada.

Filosofando Sobre a Balela

Quem melhor para nos guiar aqui do que Sócrates, o homem que foi condenado por desmascarar balelas da sua época? Ele andava pelas ruas de Atenas fazendo perguntas incômodas, desnudando certezas alheias até que o interlocutor admitisse: “Afinal, não sei de nada.” Sócrates entendia que a balela é um escudo contra o desconforto da ignorância.

Mas e hoje? Vivemos na era da informação, onde o acesso ao conhecimento nunca foi tão amplo. Ainda assim, a balela prospera. Talvez porque, como apontou o filósofo Zygmunt Bauman, vivemos tempos líquidos: tudo é rápido, efêmero e sem profundidade. A balela é o reflexo perfeito dessa liquidez, pois se molda às expectativas momentâneas sem nunca se fixar em algo sólido.

Resistindo à Balela

O antídoto para a balela não é ignorá-la, mas confrontá-la. No trabalho, pergunte: “Como isso se traduz em ações práticas?” No grupo do WhatsApp, envie um link confiável que desmascare a corrente. Na política, exija transparência e coerência.

Mas, acima de tudo, observe-se. Quantas vezes nos rendemos à balela para evitar conflitos ou alimentar ilusões? Reconhecer isso é o primeiro passo para não apenas resistir à balela alheia, mas também à nossa própria. Afinal, como diria Nietzsche, “Não são as dúvidas que nos enlouquecem, mas as certezas.” E muitas dessas certezas, quando olhadas de perto, não passam de balelas bem embrulhadas.