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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Filosofia da Tecnologia





Pensamento: “Máquina Pensa, Humano Pensa e Sente”

Acordo pela manhã e, antes de qualquer coisa, a minha mão já busca o celular. Não é tanto a vontade de ver as notificações, mas um hábito enraizado que se tornou quase automático. O despertador que me acorda já é uma criação tecnológica, mas ele é apenas o início. O meu dia é permeado por interações com tecnologia: o café da manhã muitas vezes esquentado no micro-ondas, a música que toca enquanto preparo o pão, e o carro que me leva ao trabalho com um GPS me guiando pelas ruas da cidade procurando escapar das tranqueiras do trânsito. A tecnologia se infiltra na minha rotina de forma tão natural que quase não percebo. Mas será que ela também está moldando a forma como penso e sinto?

Essa reflexão nos leva ao campo da Filosofia da Tecnologia, um ramo da filosofia que busca entender o impacto das ferramentas tecnológicas na vida humana. Desde a invenção da roda até a inteligência artificial, o ser humano sempre buscou criar instrumentos que facilitassem a vida. Mas o que acontece quando essas ferramentas começam a moldar nossas escolhas, nossa maneira de viver e até nossa identidade?

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos filósofos que mergulhou nessa questão, fala sobre a ideia de "enquadramento" (Ge-stell). Para ele, a tecnologia moderna não é apenas um conjunto de ferramentas, mas uma forma de ver o mundo, um paradigma que enxerga tudo — inclusive o ser humano — como um recurso a ser utilizado. Em seu ensaio "A Questão da Técnica", Heidegger alerta que essa visão tecnicista pode nos afastar de uma compreensão mais autêntica do ser. Quando tudo se torna uma questão de eficiência e funcionalidade, perdemos a conexão com o que é verdadeiramente significativo.

Vamos pensar na forma como interagimos nas redes sociais. Aplicativos projetados para maximizar nosso tempo de uso fazem com que sejamos atraídos por notificações e curtidas, enquanto o tempo de uma conversa face a face, ou até mesmo de uma pausa para contemplação, se torna cada vez mais raro. A nossa identidade, em certo sentido, é moldada por algoritmos que definem o que devemos ver, comprar ou desejar.

Em situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode parecer trivial, mas o filósofo italiano, contemporâneo Luciano Floridi, em sua obra "A Revolução da Informação" (publicada em português), argumenta que estamos nos tornando "informacionalmente dependentes", onde o fluxo de informações e a interação digital começam a dominar as nossas vidas a tal ponto que a linha entre o real e o virtual se confunde.

Porém, há um contraponto importante. A tecnologia também nos oferece novas formas de expressão, de conexão e até de autoconhecimento. Ela não precisa ser vista apenas como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio Heidegger, apesar de suas críticas, não condenava a tecnologia em si, mas sim o uso desmedido e acrítico dela.

Albert Borgmann (1937-2023), estadunidense, é outro filósofo contemporâneo conhecido por suas reflexões sobre tecnologia, oferece uma perspectiva instigante sobre essa questão. Em sua obra "Technology and the Character of Contemporary Life" (em tradução livre, "A Tecnologia e o Caráter da Vida Contemporânea"), Borgmann introduz a ideia de "paradigma do dispositivo". Segundo ele, a tecnologia moderna transforma o mundo em uma coleção de dispositivos que prometem conforto e conveniência, mas que, ao mesmo tempo, nos distanciam das experiências mais autênticas e significativas da vida.

Borgmann argumenta que, ao substituir o engajamento direto com o mundo por interações mediadas por dispositivos, estamos perdendo a conexão com o que ele chama de "focal things" (coisas focais) — atividades que exigem nossa atenção plena e que, em troca, nos oferecem uma experiência de realização genuína.

Em situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode parecer trivial, mas Borgmann alerta que ela contribui para um empobrecimento da vida. O simples ato de cozinhar uma refeição caseira, em vez de pedir comida por um aplicativo, pode ser visto como uma forma de resistir ao paradigma do dispositivo e reengajar-se com as atividades que dão sentido à nossa existência.

O contraponto importante aqui é que a tecnologia não precisa ser vista apenas como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio Borgmann também não condena a tecnologia em si, mas sim o uso desmedido e acrítico dela. Ele sugere que devemos cultivar uma relação equilibrada com a tecnologia, utilizando-a como uma ferramenta que complementa, em vez de substituir, as experiências focais que enriquecem nossas vidas. Percebemos que os filósofos parecem se manifestar de maneira parecida quanto ao dilema, e em alguns pontos são até repetitivos, noutros trazem a tona reflexões muito oportunas.

Então, o que fazer diante desse dilema? Talvez a chave esteja em encontrar um equilíbrio, em usar a tecnologia como uma extensão das nossas capacidades, sem permitir que ela nos defina. Isso requer uma vigilância constante, uma reflexão sobre como e por que usamos as ferramentas tecnológicas no dia a dia. O simples ato de decidir passar menos tempo nas redes sociais ou de optar por caminhar sem o auxílio do GPS pode ser um passo pequeno, mas significativo, na direção de uma vida mais consciente.

A Filosofia da Tecnologia, portanto, nos convida a pensar sobre nossa relação com as máquinas e como essa relação está moldando o que significa ser humano. Como Albert Borgmann nos lembra, a verdadeira realização vem de engajamentos que exigem nossa presença total, e não de interações superficiais mediadas por dispositivos. Não se trata de evitar a tecnologia, mas de integrá-la de forma que ela enriqueça, e não empobreça, nossa experiência de vida.