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segunda-feira, 23 de junho de 2025

Sentir e Pensar

… e o que mais?

A gente costuma achar que só aprende pela cabeça ou pelo coração. Ou você sente — e aprende com o calor, o frio, o medo, o gosto das coisas — ou você pensa — calcula, raciocina, organiza as ideias para entender o mundo. Parece não haver saída desse binário. Mas será mesmo?

Veja o exemplo do menino que aprende a andar de bicicleta. No começo ele pensa: “segura firme o guidão, olha pra frente, pedala devagar…”. Também sente: medo de cair, emoção ao deslizar pela rua. Mas chega uma hora em que nem sente nem pensa. O corpo aprende sozinho. Ele vira bicicleta. O saber passou para as pernas, os braços, o equilíbrio. É o conhecimento do corpo — o tal “saber fazer” que nenhum livro ensina.

Ou pense naquelas decisões que você toma sem saber por quê. Um desvio de caminho, um "não vou entrar nessa loja agora", um "vou ligar pra fulano hoje". Não foi pensamento lógico nem sentimento claro. Foi um saber que veio de outro lugar — a tal da intuição. E quantas vezes ela acerta? Muitas.

Tem também o saber da convivência. Você nunca parou para pensar como se espera uma fila no banco. Ninguém te explicou. Você simplesmente aprendeu — porque vive aqui, porque observa sem perceber. Isso é cultura agindo em silêncio. Nem sentir, nem pensar: é absorver pelo convívio.

E ainda há o saber do momento presente. O zen-budista diria: quando você come uma fruta e presta atenção total nela — no sabor, na textura, no cheiro — está conhecendo direto, sem pensar, sem julgar, sem interpretar. Conhecimento puro, sem intermediários.

Talvez o mundo não caiba só no sentir e no pensar. Há corpos que sabem sozinhos. Há intuições que chegam sem convite. Há culturas que moldam você sem pedir permissão. Há presenças que ensinam sem dizer palavra.

Os filósofos antigos sabiam disso. Espinosa, lá no século XVII, já dizia que o corpo tem uma inteligência própria — capaz de fazer coisas das quais a mente nem sonha. E Henri Bergson, no século XX, desconfiava que a intuição nos leva a conhecer verdades que o pensamento não alcança.

Quem sabe conhecer seja como viver: não se faz só com a cabeça e o peito. Também se faz com o corpo, com o instante, com o outro.

Talvez — no fundo — a gente seja uma soma estranha de tudo isso. E por isso aprender nunca se esgota.


segunda-feira, 16 de junho de 2025

Idiota da Aldeia



Dia destes estava lendo uma postagem no Instagram de uma palestra de Umberto Eco e me ocorreu escrever sobre o tema, vou deixar o link para lerem a publicação:

https://www.instagram.com/explore/tags/aldeia/

Antigamente o idiota da aldeia ficava restrito ao seu círculo de vinte ou trinta conhecidos. Falava besteiras na taberna, confundia datas na praça, contava histórias tortas para as crianças, e todos sabiam que aquilo era parte do folclore local — uma figura inofensiva ou, no máximo, irritante. Mas Umberto Eco, em uma célebre palestra na Universidade de Turim em 2015, ao receber o título de doutor honoris causa, alertou:

“As redes sociais deram o direito de fala a legiões de imbecis que antes só falavam no bar e depois de um copo de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eles eram rapidamente calados, enquanto agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel.”

O drama moderno, segundo Eco, é que esse idiota ganhou um microfone global — e ninguém mais distingue sua fala da voz da razão. As redes sociais, ironicamente chamadas de “plataformas”, deram a ele um púlpito.

Mas antes de julgá-lo, precisamos reconhecer um segredo incômodo: o idiota da aldeia também existe em nós.

A ideia de "idiota" não é apenas um personagem exterior, grotesco e reconhecível. Ele é também aquela voz interna que opina sem saber, compartilha sem ler, acredita no que deseja e não no que é. Por vezes, é o idiota da aldeia quem responde nos grupos de WhatsApp da família, quem comenta com raiva em fóruns, quem dá conselhos não solicitados no elevador. O empoderamento desse idiota não é um acidente tecnológico; é o sintoma de uma velha condição humana: o amor à própria ignorância.

O que Eco parece sugerir (mas poucos ousam explorar) é que o problema não é a ignorância em si — afinal, somos todos ignorantes em quase tudo — mas a soberania concedida à ignorância opinativa. Antigamente o idiota da aldeia não era ouvido; agora ele acredita ser a própria aldeia.

O Novo Teatro da Verdade

Platão, no século IV a.C., advertia sobre a fragilidade da opinião sem conhecimento, a famosa doxa que se veste de sabedoria, mas é espuma vazia. Mas nem ele previu o Instagram.

Hoje, não é preciso aprender: basta parecer saber. O empoderamento do idiota não é apenas o direito de falar, mas o direito de soar importante, de ter seguidores, de ser citado, de fazer barulho. Mais: é o direito de cancelar quem sabe mais, de ofender sem custo, de confundir sem responsabilidade. O idiota da aldeia virou curador de museu, crítico literário, filósofo instantâneo, cientista do próprio umbigo.

E nós — os supostos lúcidos — não escapamos ilesos. Pois ao combatê-lo, ao zombar dele, ao denunciá-lo sem parar, damos a ele o alimento que deseja: atenção.

Segundo Nelson Rodrigues (1912 – 1980): “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”

O Idiota também é uma Função

Mas há uma ideia mais profunda e desconcertante aqui: o idiota da aldeia é necessário. Ele cumpre uma função social que talvez tenhamos esquecido. Ele é o espelho deformante que nos lembra o que não queremos ser — ou o que já somos sem perceber.

O idiota é o fermento do ceticismo coletivo. Sua fala desvairada obriga a reflexão dos atentos, o cuidado dos mestres, a paciência dos sábios. Sem ele, a inteligência dorme. Como dizia o filósofo Paul Valéry: "A estupidez não se improvisa; é uma obra de arte." O idiota nos obriga à vigilância.

Talvez seja este o paradoxo mais incômodo: o empoderamento do idiota é também o empoderamento da crítica. Ele não cala o pensamento — obriga-o a se justificar.

A Aldeia Somos Nós

Há uma solução elegante e trágica para o dilema de Eco: reconhecer que a aldeia digital não tem mais centro nem periferia. O idiota já não é uma exceção; ele é uma probabilidade distribuída entre todos. Não há um "ele" e um "nós". A internet tornou a aldeia um espelho de mil faces, e cada um de nós já foi — ou será — o idiota da vez.

Por isso, o verdadeiro risco não é o idiota que fala demais — é o sábio que se cala por cansaço.

O empoderamento do idiota da aldeia, afinal, não é uma crise da estupidez — é uma crise da escuta. Quem ainda escuta com cuidado? Quem ainda separa o ruído da música? Quem ainda suspeita de si mesmo antes de opinar? Eco nos alertou para o barulho, mas talvez o problema mais grave seja o silêncio dos que poderiam dizer algo real e útil — e se retraem.

Talvez o maior idiota da aldeia seja aquele que desistiu de pensar. Hoje percebemos que ele não estava tão errado assim. Ou estava?


segunda-feira, 9 de junho de 2025

Fala porque pensa

Vamos falar sobre a origem do dizer e o silêncio que pensa

Já reparou que, às vezes, ficamos em silêncio, mas estamos cheios de ideias? Uma conversa pode estar parada por fora, mas por dentro mil pensamentos correm. Não estamos sempre dizendo tudo o que passa. Na verdade, quase nunca dizemos. O que chamamos de fala é só a ponta do iceberg do que se passa na mente.

E se for isso mesmo? Se a fala vier depois do pensamento — como uma tentativa de tradução imperfeita do que já se formou antes? Nesse ensaio, a proposta é considerar o contrário do que se costuma afirmar em certos círculos neurolinguísticos contemporâneos: não pensamos porque falamos, mas falamos porque pensamos.

O pensamento silencioso

Muitas de nossas decisões mais profundas são tomadas sem palavras. Você acorda e sabe que está triste — antes mesmo de conseguir explicar por quê. Há uma camada pré-verbal da consciência, cheia de imagens, sensações, intuições. A linguagem, nesse cenário, não é a origem do pensamento, mas um instrumento para compartilhá-lo com o outro (e, às vezes, consigo mesmo).

Descartes, no famoso penso, logo existo, não disse falo, logo penso. O pensamento é a base da subjetividade. É anterior à fala, mais amplo e mais sutil. O filósofo Henri Bergson defendia que a consciência excede a linguagem — que pensar é como nadar em um mar interno, enquanto falar é escolher uma garrafinha para conter o oceano.

Linguagem como casca do pensamento

Quantas vezes já sentimos algo que não conseguimos dizer? Ou percebemos que, ao tentar explicar uma ideia, ela se esvazia? Isso revela que a linguagem é um instrumento limitado frente à riqueza do pensamento. Falamos, sim, mas porque algo já foi fermentado antes. O pensamento é o forno; a fala, o pão assado.

O psicólogo suíço Jean Piaget argumentava que a linguagem é uma consequência do desenvolvimento cognitivo, e não sua causa. Para ele, a criança pensa antes de falar — e vai aprendendo a colocar em palavras o que já está se formando como raciocínio interno.

Quando a fala atrapalha

Num mundo ruidoso, talvez falar demais atrapalhe o pensamento. Distrações verbais, conversas vazias, impulsos de dizer antes de refletir — tudo isso pode desfigurar a verdadeira linha do pensamento. Um tuíte mal pensado, uma resposta impensada: palavras saem, mas não vieram do pensar, vieram da pressa.

Se fosse verdade que a fala cria o pensamento, todo mundo que fala muito pensaria melhor. Mas não é o que se vê. Pensar exige silêncio. A fala boa vem depois. Como o escritor que reescreve mil vezes antes de publicar. Como o sábio que ouve mais do que fala.

Pensar é mais que dizer

A mente humana é capaz de pensar com imagens, sons, metáforas internas, simulações motoras. Quando antecipamos um futuro possível, quando lembramos de um cheiro da infância, ou quando visualizamos um projeto de vida — nada disso precisa, necessariamente, da linguagem articulada.

A neurociência apoia essa pluralidade de formas de pensar. Antes da ativação das áreas verbais, há estímulos em regiões ligadas à emoção (amígdala), ao planejamento (córtex pré-frontal), à imaginação (hipocampo). Ou seja, o pensamento vem primeiro. A linguagem é um filtro — útil, poderoso, mas um filtro.

Fala é ponte, não semente

No fim das contas, falar porque se pensa é reconhecer que a fala não é a fonte da consciência, mas seu veículo. Pensar é existir num espaço íntimo, onde a palavra é convidada, não dona da casa. Só falamos porque temos algo a dizer. E esse algo nasce antes da fala.

Filosoficamente, talvez a fala seja apenas o momento em que o pensamento se arrisca no mundo. Nem todo pensamento vira palavra — e talvez ainda bem. Porque o silêncio também pensa. E, às vezes, é nele que se encontram as ideias mais verdadeiras.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Teoria das Descrições

Imagine que estamos em um bar, e alguém comenta: "O rei da França é careca". O problema surge quando percebemos que a França não tem um rei. O que isso significa? Estamos falando de alguém que não existe? Ou estamos apenas dizendo algo sem sentido? Bertrand Russell resolveu essa questão com sua famosa Teoria das Descrições, que não apenas revolucionou a filosofia da linguagem, mas também influenciou a lógica e a epistemologia.

A Teoria das Descrições foi apresentada por Russell em 1905 no artigo "On Denoting". Seu objetivo era solucionar problemas lógicos gerados por sentenças que pareciam referir-se a entidades inexistentes. Antes de Russell, frases como "O atual rei da França é careca" eram tratadas como proposições que simplesmente falhavam em ter um referente. Isso causava problemas porque significava que deveríamos aceitar que algumas frases aparentemente significativas eram na verdade sem sentido. Russell, por outro lado, propôs uma análise lógica que evitava esse impasse.

Sua solução foi reformular frases que envolvem descrições definidas (como "o rei da França") em termos de quantificação lógica. Assim, em vez de interpretar "O rei da França é careca" como uma proposição simples com um sujeito e um predicado, ele a desdobrou da seguinte forma:

  1. Existe pelo menos um x tal que x é o rei da França.
  2. Existe no máximo um x tal que x é o rei da França.
  3. Esse x é careca.

Se qualquer uma dessas proposições for falsa, então a sentença toda é falsa, mas não sem sentido. Isso resolve o problema da referência a entidades inexistentes sem que a frase perca sua estrutura lógica.

A inovação de Russell não foi apenas um ajuste técnico, mas um verdadeiro marco na filosofia da linguagem. Ele mostrou que o significado de uma frase não depende apenas das palavras isoladas, mas da maneira como essas palavras se conectam logicamente. Isso teve repercussões profundas na filosofia analítica e influenciou pensadores como Wittgenstein e Quine.

No entanto, a teoria não foi imune a críticas. P.F. Strawson, por exemplo, argumentou que Russell confundia lógica com pragmática. Para Strawson, frases como "O rei da França é careca" não são falsas, mas simplesmente inadequadas porque pressupõem a existência do rei da França. Esse embate mostra como a filosofia da linguagem lida não apenas com regras formais, mas com o próprio funcionamento do discurso cotidiano.

Podemos levar essa discussão para o nosso dia a dia. Quantas vezes falamos de coisas que não existem sem perceber? Quando dizemos "o amor verdadeiro sempre vence" ou "a sociedade está em crise", estamos fazendo descrições no estilo de Russell? Nossa linguagem está cheia de atalhos que tornam a comunicação possível, mas, ao mesmo tempo, nos enganam sobre a estrutura lógica do que realmente estamos dizendo.

No fim das contas, a Teoria das Descrições de Russell não é apenas uma ferramenta lógica, mas um convite a pensar sobre a precisão e os limites da nossa linguagem. Se as palavras moldam nosso mundo, então entender como elas operam é essencial para não cairmos em armadilhas conceituais. E, claro, para evitar que discutamos a careca de reis que nunca existiram.


domingo, 23 de março de 2025

Palavras que Pensam

Sabe aquela discussão de bar sobre o que realmente significa "liberdade"? Alguém diz que é poder fazer o que quiser, outro rebate que não é bem assim, porque vivemos em sociedade e, bem, regras existem. E então o debate desanda, e cada um continua acreditando na própria definição como se fosse a única possível. O que acontece aí? Um clássico problema da semântica: palavras são janelas para conceitos, mas essas janelas nunca são totalmente transparentes.

A semântica, dentro da filosofia, estuda como atribuímos significados às palavras e como esses significados se relacionam com a realidade. A questão central é: as palavras refletem a realidade ou apenas impõem uma estrutura artificial ao mundo? Wittgenstein, em sua fase tardia, diria que os significados não são fixos, mas dependem dos usos na linguagem cotidiana. Já Frege buscava uma precisão lógica, separando sentido e referência.

Se o significado depende do uso, então o que dizer de conceitos como "justiça", "verdade" ou "felicidade"? São conceitos que parecem universais, mas mudam conforme a cultura, o tempo e a intenção de quem fala. Quando Platão tentou definir "justiça" em "A República", ele precisou construir uma cidade ideal para ilustrar seu ponto. E aí está o dilema da semântica filosófica: definir é sempre interpretar.

E quando a interpretação se torna uma arma? Termos são ressignificados o tempo todo para manipular percepções. Orwell já alertava para isso em "1984", quando o "Ministério da Verdade" era responsável por reescrever a história. No mundo real, palavras como "progresso" e "ordem" podem significar liberdade ou controle, dependendo de quem fala.

Talvez a semântica não seja só um estudo de significados, mas um estudo sobre como pensamos e moldamos a realidade. Se a linguagem é a casa do ser, como dizia Heidegger, então a semântica é a arquitetura dessa casa. O que nos resta é escolher bem as palavras e, principalmente, escutar o que está por trás delas.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Reflexão Defeituosa

O Erro Como Espelho da Consciência

Outro dia, enquanto tentava lembrar onde tinha deixado as chaves, percebi que minha memória jogava comigo um jogo estranho. Eu tinha certeza absoluta de que as havia colocado na mesa, mas lá não estavam. A confusão me fez pensar: quantas vezes nossa mente nos engana, e pior, quantas vezes acreditamos cegamente no que pensamos? O problema não é apenas o erro em si, mas a ilusão de que estamos sempre certos. Eis o ponto: nossa reflexão pode ser defeituosa, e é exatamente isso que a torna fascinante.

O Mito da Consciência Clara

Acreditamos que pensar bem é pensar de forma lógica, coerente, cristalina. A razão iluminista nos prometeu um intelecto afiado, capaz de cortar a névoa da ignorância. No entanto, na prática, nossas reflexões estão cheias de vieses, contradições e desvios. Nietzsche já apontava essa falha estrutural quando dizia que a razão muitas vezes não passa de um advogado defendendo nossas paixões. O que chamamos de reflexão pode ser apenas uma justificativa requintada para aquilo que já queremos acreditar.

A psicologia cognitiva reforça essa ideia ao demonstrar que nossa mente frequentemente preenche lacunas de percepção com suposições. Assim, não apenas vemos o que queremos ver, mas também pensamos o que queremos pensar. A reflexão defeituosa não é um acidente, mas um modo de funcionamento do próprio pensamento.

O Erro Como Estrada

Se nossas reflexões são defeituosas, qual a saída? Talvez a resposta esteja no próprio erro. Em vez de temê-lo ou negá-lo, podemos usá-lo como ferramenta. Kierkegaard nos lembraria que o desespero pode ser um ponto de partida para o autoconhecimento. Quando percebemos que nossa reflexão falhou, temos a chance de reconstruí-la melhor.

A filosofia oriental, em especial o pensamento de N. Sri Ram, sugere que a verdade não é algo fixo, mas um horizonte em constante movimento. Assim, o erro não é um abismo, mas uma ponte. Cada falha no pensamento pode ser um convite para expandir a consciência.

O Paradoxo do Pensar

Se pensar é inevitavelmente falhar, então talvez o verdadeiro sábio seja aquele que acolhe a imperfeição do pensamento. O perigo não está em errar, mas em acreditar que se está sempre certo. Afinal, as chaves que achamos que deixamos na mesa podem muito bem estar no bolso o tempo todo – só não paramos para conferir.

A reflexão defeituosa, longe de ser um problema, é a própria condição do pensar. Quem busca um pensamento puro e sem falhas se esquece de que é o atrito do erro que nos empurra para frente. No final das contas, talvez a sabedoria seja apenas a arte de errar de maneira mais interessante.


terça-feira, 11 de março de 2025

Infinitivos e Gerúndios

Pensar Pensando e os Modos de Existir

A gente sempre está entre começar algo e continuar fazendo. Entre o desejo de ser e o ato de estar sendo. No fundo, a forma como pensamos já carrega em si um tempo, um modo, uma disposição. Há quem viva no infinitivo, sonhando sem executar. Outros se perdem no gerúndio, ocupados demais fazendo para perceber para onde estão indo. Mas será que o pensamento também oscila entre essas formas? Será que somos condicionados por uma estrutura linguística a viver mais no futuro ou no presente contínuo?

O infinitivo é uma promessa. Pensar, agir, decidir, mudar. Ele paira no ar como um horizonte de possibilidades, um impulso inicial que não se compromete com a realização. "Eu preciso começar a escrever um livro" ou "Quero aprender a tocar piano" são frases que moram no limbo do que poderia ser. É a mente aberta para a escolha, mas também para a fuga. No infinitivo, o pensamento é potencialidade, mas também hesitação. Não se compromete com a sujeira do real. Fica ali, polido e perfeito como uma ideia antes de ser testada pelo mundo.

Já o gerúndio é movimento. É estar fazendo, estar sendo, estar sentindo. Ele não dá margem para o adiamento: "Estou mudando", "Estou aprendendo", "Estou construindo". A fluidez da vida aparece aqui, porque o gerúndio nos coloca dentro do processo, e o processo nunca é estático. Mas há um risco: o gerúndio também pode ser uma armadilha de continuidade infinita, um ciclo onde a ação nunca se conclui. "Estou tentando", "Estou resolvendo", "Estou esperando" — frases que indicam que algo está acontecendo, mas talvez nunca chegue a acontecer de fato.

O pensamento humano parece oscilar entre esses dois estados. Alguns filósofos construíram sistemas inteiros baseados na ideia de um pensamento no infinitivo: Platão, por exemplo, enxergava a realidade como um reflexo de um mundo ideal, uma perfeição nunca plenamente alcançada. Já pensadores como Nietzsche preferiam o gerúndio — um eterno devir, uma existência que se faz e se refaz a cada instante.

E nós? Será que pensamos mais no infinitivo, sempre projetando um futuro que nunca chega? Ou vivemos no gerúndio, presos a processos que nunca se resolvem? Talvez a resposta esteja em aprender a transitar entre os dois. Há momentos para o infinitivo — para desejar, para planejar, para conceber a ideia pura. E há momentos para o gerúndio — para agir, para experimentar, para sentir o peso do tempo nas mãos.

Pensar é, afinal, um jogo de tempos verbais. Há quem prefira permanecer na promessa, e há quem não consiga sair do fazer contínuo. Mas talvez o segredo seja encontrar a justa medida entre pensar e estar pensando — entre conceber e construir, entre ser e estar sendo.


sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Filosofia da Tecnologia





Pensamento: “Máquina Pensa, Humano Pensa e Sente”

Acordo pela manhã e, antes de qualquer coisa, a minha mão já busca o celular. Não é tanto a vontade de ver as notificações, mas um hábito enraizado que se tornou quase automático. O despertador que me acorda já é uma criação tecnológica, mas ele é apenas o início. O meu dia é permeado por interações com tecnologia: o café da manhã muitas vezes esquentado no micro-ondas, a música que toca enquanto preparo o pão, e o carro que me leva ao trabalho com um GPS me guiando pelas ruas da cidade procurando escapar das tranqueiras do trânsito. A tecnologia se infiltra na minha rotina de forma tão natural que quase não percebo. Mas será que ela também está moldando a forma como penso e sinto?

Essa reflexão nos leva ao campo da Filosofia da Tecnologia, um ramo da filosofia que busca entender o impacto das ferramentas tecnológicas na vida humana. Desde a invenção da roda até a inteligência artificial, o ser humano sempre buscou criar instrumentos que facilitassem a vida. Mas o que acontece quando essas ferramentas começam a moldar nossas escolhas, nossa maneira de viver e até nossa identidade?

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos filósofos que mergulhou nessa questão, fala sobre a ideia de "enquadramento" (Ge-stell). Para ele, a tecnologia moderna não é apenas um conjunto de ferramentas, mas uma forma de ver o mundo, um paradigma que enxerga tudo — inclusive o ser humano — como um recurso a ser utilizado. Em seu ensaio "A Questão da Técnica", Heidegger alerta que essa visão tecnicista pode nos afastar de uma compreensão mais autêntica do ser. Quando tudo se torna uma questão de eficiência e funcionalidade, perdemos a conexão com o que é verdadeiramente significativo.

Vamos pensar na forma como interagimos nas redes sociais. Aplicativos projetados para maximizar nosso tempo de uso fazem com que sejamos atraídos por notificações e curtidas, enquanto o tempo de uma conversa face a face, ou até mesmo de uma pausa para contemplação, se torna cada vez mais raro. A nossa identidade, em certo sentido, é moldada por algoritmos que definem o que devemos ver, comprar ou desejar.

Em situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode parecer trivial, mas o filósofo italiano, contemporâneo Luciano Floridi, em sua obra "A Revolução da Informação" (publicada em português), argumenta que estamos nos tornando "informacionalmente dependentes", onde o fluxo de informações e a interação digital começam a dominar as nossas vidas a tal ponto que a linha entre o real e o virtual se confunde.

Porém, há um contraponto importante. A tecnologia também nos oferece novas formas de expressão, de conexão e até de autoconhecimento. Ela não precisa ser vista apenas como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio Heidegger, apesar de suas críticas, não condenava a tecnologia em si, mas sim o uso desmedido e acrítico dela.

Albert Borgmann (1937-2023), estadunidense, é outro filósofo contemporâneo conhecido por suas reflexões sobre tecnologia, oferece uma perspectiva instigante sobre essa questão. Em sua obra "Technology and the Character of Contemporary Life" (em tradução livre, "A Tecnologia e o Caráter da Vida Contemporânea"), Borgmann introduz a ideia de "paradigma do dispositivo". Segundo ele, a tecnologia moderna transforma o mundo em uma coleção de dispositivos que prometem conforto e conveniência, mas que, ao mesmo tempo, nos distanciam das experiências mais autênticas e significativas da vida.

Borgmann argumenta que, ao substituir o engajamento direto com o mundo por interações mediadas por dispositivos, estamos perdendo a conexão com o que ele chama de "focal things" (coisas focais) — atividades que exigem nossa atenção plena e que, em troca, nos oferecem uma experiência de realização genuína.

Em situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode parecer trivial, mas Borgmann alerta que ela contribui para um empobrecimento da vida. O simples ato de cozinhar uma refeição caseira, em vez de pedir comida por um aplicativo, pode ser visto como uma forma de resistir ao paradigma do dispositivo e reengajar-se com as atividades que dão sentido à nossa existência.

O contraponto importante aqui é que a tecnologia não precisa ser vista apenas como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio Borgmann também não condena a tecnologia em si, mas sim o uso desmedido e acrítico dela. Ele sugere que devemos cultivar uma relação equilibrada com a tecnologia, utilizando-a como uma ferramenta que complementa, em vez de substituir, as experiências focais que enriquecem nossas vidas. Percebemos que os filósofos parecem se manifestar de maneira parecida quanto ao dilema, e em alguns pontos são até repetitivos, noutros trazem a tona reflexões muito oportunas.

Então, o que fazer diante desse dilema? Talvez a chave esteja em encontrar um equilíbrio, em usar a tecnologia como uma extensão das nossas capacidades, sem permitir que ela nos defina. Isso requer uma vigilância constante, uma reflexão sobre como e por que usamos as ferramentas tecnológicas no dia a dia. O simples ato de decidir passar menos tempo nas redes sociais ou de optar por caminhar sem o auxílio do GPS pode ser um passo pequeno, mas significativo, na direção de uma vida mais consciente.

A Filosofia da Tecnologia, portanto, nos convida a pensar sobre nossa relação com as máquinas e como essa relação está moldando o que significa ser humano. Como Albert Borgmann nos lembra, a verdadeira realização vem de engajamentos que exigem nossa presença total, e não de interações superficiais mediadas por dispositivos. Não se trata de evitar a tecnologia, mas de integrá-la de forma que ela enriqueça, e não empobreça, nossa experiência de vida. 







sábado, 14 de janeiro de 2012

O Amor é uma Falácia?


O Amor é uma Falácia?
A blogada de hoje vai para quem gosta de lógica, e é dedicado para os amantes e enamorados, principalmente para aqueles que gostariam que o outro fosse diferente.
Alguns anos atrás levei para sala de aula o texto “O Amor é uma Falácia”, e percebi que as turmas gostaram bastante, a partir daí despertou interesse e nasceram algumas brincadeiras interessantes.
Imaginar o que poderia ter se passado após a leitura, precisa primeiro que tenham conhecimento do texto, para isto compartilho o texto de M. Sulman:

O Amor é uma Falácia
M. Sulman
Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha um cérebro poderoso como um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha - imaginem só - dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Pettey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma porta. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar a alguma idiotice só porque os outros a segue, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite.
- Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o médico.
- Couro preto - balbuciou ele.
- Couro preto? - disse eu, interrompendo a minha corrida.
- Quero uma jaqueta de couro preto - disse.
Percebi que o seu problema não era físico, mas mental.
- Por que você quer uma jaqueta de couro preto?
- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, socando a cabeça - Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar uma jaqueta de couro preto.
- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão mesmo usando jaquetas de couro preto outra vez?
- Todas as pessoas importantes da universidade estão. Onde você tem andado?
- Na biblioteca - respondi, citando um lugar não freqüentado pela pessoas importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
- Preciso conseguir uma jaqueta de couro preto - disse, exaltado - Preciso mesmo.
- Por que, Pety? Veja a coisa racionalmente. Jaquetas de couro preto são desconfortáveis. Impedem o movimento dos braços. São pesadas, são feias, são ...
- Você não compreende - interrompeu ele com impaciência - é o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
- Não - respondi, sinceramente.
- Pois eu sim - declarou ele - daria tudo para ter uma jaqueta de couro preto. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? - perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo - confirmou ele, em tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar uma jaqueta de couro preto. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão da casa. E, também por acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua namorada, Polly Spy.
Eu há muito desejava Polly Spy. Apresso-me a esclarecer que o meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de direito. Dali a algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo as minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa quero dizer cheia de graças sociais. Tinha porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. Á mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava em que, sob a minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
- Petey - perguntei - você ama Polly Spy?
- Eu acho que ela é interessante - respondeu - mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
- Você - continuei - tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
- Não. Nos vemos seguidamente. Mas saímos os dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém - perguntei - algum outro homem que ela goste de maneira especial?
- Que eu saiba não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isso?
- Acho que sim. Aonde você quer chegar?
- Nada, anda - respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? - quis saber Petey.
- Passar o fim de semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute - disse Petey, apegando-se com força ao meu braço - em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar uma jaqueta de couro preto?
- Posso até fazer mais do que isso - respondi, piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe - disse a Petey, ao voltar na segunda feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante de seu Stutz Beacat em 1955.
- Santo Pai - exclamou Petey com reverência. Passou as mãos na jaqueta e depois no rosto.
- Santo Pai - repetiu, umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim - gritou ele, apertando a jaqueta contra o peito. Em seguida, seus olhos assumiram um ar precavido. - O que quer em troca?
- A sua namorada - disse eu, não desperdiçando palavras.
- Polly? - sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou a jaqueta pra longe.
- Nunca - declarou resoluto.
Dei de ombros.
- Tudo bem. Se você não quer andar na moda, o problema é seu.
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para a jaqueta com a expressão de uma criança desamparada diante da vitrine de uma confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois voltava a olhar para a jaqueta. Com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou mais: ficou olhando para a jaqueta com pura lascívia.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly - balbuciou. - Ou mesmo namorando sério, ou coisa parecida.
- Isso mesmo - murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu pra ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco. Só isso.
- Experimente a jaqueta - disse eu.
Ele obedeceu. A jaqueta ficou bem larga, passando da cintura. Ele parecia um motoqueiro mal vestido da década de cinqüenta.
- Serve perfeitamente - disse, contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão.
- Negócio feito?
Ele engoliu a seco.
- Feito - disse, e apertou a minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte.
O Primeiro programa teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar interessante! - disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme interessante! - disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, que noite interessante - disse ela, ao nos despedirmos.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca, um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de direito, eu freqüentava na ocasião aulas de Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.
- Polly - disse eu, quando fui buscá-la para o nosso segundo encontro. - Esta noite vamos até o parque conversar.
- Ah, que interessante! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da universidade, nos sentamos debaixo de uma árvore, e ela me olhou cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
- Interessante!
- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
- Interessante! - exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com animação.
- Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo - disse Polly, fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
- Polly - disse eu, com ternura - o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordem de seus médicos para não exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Do contrário está-se cometendo um Dicto Simpliciter. Você compreende?
- Não - confessou ela. - Mas isso é interessante. Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você parar de puxar a manga da minha camisa - disse eu e, quando ela parou, continuei:
- Em seguida, abordaremos uma falácia chamada generalização apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na universidade sabe falar francês.
- É mesmo? - espantou-se Polly. - Ninguém?
Contive a minha impaciência.
- É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
- Você conhece outras falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até melhor do que dançar.
- Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.
- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim - exclamou Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly - interrompi, com energia - é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso - prometeu ela, constrangida. - Você está bravo comigo?
- Não Polly - suspirei. - Não estou bravo.
- Então conte outra falácia.
- Muito bem. Vamos experimentar as premissas contraditórias.
- Vamos - exclamou ela alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
- Aí vai um exemplo de premissas contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro - respondeu ela imediatamente.
- Mas se ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.
- É mesmo - disse ela, pensativa. - Bem, então eu acho que ele não pode fazer a pedra.
- Mas ele pode fazer tudo - lembrei-lhe.
Ela coçou a cabeça linda e vazia.
- Estou confusa - admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Conte outra dessas histórias interessantes - disse Polly, entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor parar por aqui. Levarei você em casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã.
Deixei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente interessante, e voltei desanimadamente para o meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com a jaqueta de couro encolhida a seus pés. Por alguns segundos, pensei em acordá-lo e dizer que ele podia ter Polly de volta. Era evidente que o meu projeto estava condenado ao fracasso. Ela tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejasse. As perspectivas não eram das mais animadoras, mas decidi tentar outra vez.
Sentado sob uma árvore, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira falácia desta noite se chama ad misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção - comecei - Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher e aleijada, as crianças não tem o que comer, não tem o que vestir nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isso é horrível, horrível! - soluçou.
- É horrível - concordei - mas não é um argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre as suas qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendeu?
Dei-lhe um lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse, controlando o tom da voz - discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse ela entusiasmada - está e a idéia mais interessante que eu já ouvi há muito tempo.
- Polly - disse eu com impaciência - o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo teste para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.
- Continuo achando a idéia interessante - disse Polly.
- Santo Cristo! - murmurei, com impaciência.
- A seguir, tentaremos a hipótese contrária ao fato.
- Essa parece ser boa - foi a reação de Polly.
- Preste atenção: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do rádio.
- É mesmo, é mesmo - concordou Polly, sacudindo a cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos - disse eu, friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.
- Eles deviam colocar o Walter Pidgeon em mais filmes - disse Polly - Eu quase não vejo ele no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite para o que podemos suportar.
- A próxima falácia é chamada de envenenar o poço.
- Que engraçadinho! - deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levante e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser’. Agora, Polly, pense bem, o que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que vira - surgiu nos seus olhos.
- Não é justo! - disse ela com indignação - Não é justo. O primeiro envenenou o poço antes que os outros pudesse beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você.
- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse ela, com um abano distraído da mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar trégua. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho duro e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, até que fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Está apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões. Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor por ela. Muito pelo contrário. Assim como Pigmaleão amara a mulher perfeita que moldara para si, eu amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar as nossas relações, de acadêmicas para românticas.
- Polly, disse eu, na próxima vez que nos sentamos sob a árvore - hoje não falaremos de falácias.
- Puxa! - disse ela, desapontada.
- Minha querida - prossegui, favorecendo-a com um sorriso - hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
- Generalização apressada - exclamou ela, alegremente.
- Perdão - disse eu.
- Generalização apressada - repetiu ela. - Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, contente. Aquela criança adorável aprendera bem as suas lições.
- Minha querida - disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão - cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia - disse Polly prontamente - eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão contente. A criança adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.
- Polly, eu te amo. Você é tudo no mundo pra mim, é a lua e a estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão a minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
Pronto, pensei; está liquidado o assunto.
- Ad misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmaleão; era Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly - disse, forçando um sorriso - não há dúvida que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
- E quem foi que ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
- Hipótese Contrária ao Fato - disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
- Polly - insisti, com voz rouca - você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
- Dicto Simpliciter - brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.
Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.
- Você vai ou não vai me namorar?
- Não vou - respondeu ela.
- Por que não? - exigi.
- Porque hoje à tarde eu prometi a Petey Bellows que eu seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!
- Aquele rato! - gritei, chutando a grama. - Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
- Envenenar o poço - disse Polly - E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei a minha voz.
- Muito bem - disse - você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?
- Posso sim - declarou Polly - Ele tem uma jaqueta de couro preto.
( in Sulman, M. (1973): As calcinhas cor-de-rosas do Capitão, Porto Alegre: Ed. Globo)

Espero que tenham gostado, e principalmente despertado interesse nas falacias, com elas aprendemos o jogo do cotidiano.
Em nossa convivencia diaria quantas vezes encontramos situações onde as falacias são utilizadas, as vezes damos-nos conta e seguimos com o jogo, dando em troca o troco com outra falacia sem interromper o ciclo.
Para quem não sabe uma falácia é um argumento logicamente inconsistente, inválido, ou falho na capacidade de provar eficazmente o que alega. Argumentos que se destinam à persuasão podem parecer convincentes para grande parte do público apesar de conterem falácias, mas não deixam de ser falsos por causa disso.
Reconhecer as falácias é por vezes difícil. Os argumentos falaciosos podem ter validade emocional, íntima, psicológica ou emotiva, mas não validade lógica.
É importante conhecer os tipos de falácia para evitar armadilhas lógicas na própria argumentação e para analisar a argumentação alheia.
Espero que tenham aproveitado, um ótimo fim de semana a todos e todas.