
Pensamento:
“Máquina Pensa, Humano Pensa e Sente”
Acordo
pela manhã e, antes de qualquer coisa, a minha mão já busca o celular. Não é
tanto a vontade de ver as notificações, mas um hábito enraizado que se tornou
quase automático. O despertador que me acorda já é uma criação tecnológica, mas
ele é apenas o início. O meu dia é permeado por interações com tecnologia: o
café da manhã muitas vezes esquentado no micro-ondas, a música que toca
enquanto preparo o pão, e o carro que me leva ao trabalho com um GPS me guiando
pelas ruas da cidade procurando escapar das tranqueiras do trânsito. A
tecnologia se infiltra na minha rotina de forma tão natural que quase não
percebo. Mas será que ela também está moldando a forma como penso e sinto?
Essa
reflexão nos leva ao campo da Filosofia da Tecnologia, um ramo da filosofia que
busca entender o impacto das ferramentas tecnológicas na vida humana. Desde a
invenção da roda até a inteligência artificial, o ser humano sempre buscou
criar instrumentos que facilitassem a vida. Mas o que acontece quando essas
ferramentas começam a moldar nossas escolhas, nossa maneira de viver e até
nossa identidade?
O
filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos filósofos que mergulhou
nessa questão, fala sobre a ideia de "enquadramento"
(Ge-stell). Para ele, a tecnologia moderna não é apenas um conjunto de
ferramentas, mas uma forma de ver o mundo, um paradigma que enxerga tudo —
inclusive o ser humano — como um recurso a ser utilizado. Em seu ensaio "A
Questão da Técnica", Heidegger alerta que essa visão tecnicista pode nos
afastar de uma compreensão mais autêntica do ser. Quando tudo se torna uma
questão de eficiência e funcionalidade, perdemos a conexão com o que é
verdadeiramente significativo.
Vamos
pensar na forma como interagimos nas redes sociais. Aplicativos projetados para
maximizar nosso tempo de uso fazem com que sejamos atraídos por notificações e
curtidas, enquanto o tempo de uma conversa face a face, ou até mesmo de uma
pausa para contemplação, se torna cada vez mais raro. A nossa identidade, em
certo sentido, é moldada por algoritmos que definem o que devemos ver, comprar
ou desejar.
Em
situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o
restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem
refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode
parecer trivial, mas o filósofo italiano, contemporâneo Luciano Floridi, em sua
obra "A Revolução da Informação" (publicada em português), argumenta
que estamos nos tornando "informacionalmente dependentes",
onde o fluxo de informações e a interação digital começam a dominar as nossas
vidas a tal ponto que a linha entre o real e o virtual se confunde.
Porém,
há um contraponto importante. A tecnologia também nos oferece novas formas de
expressão, de conexão e até de autoconhecimento. Ela não precisa ser vista
apenas como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio
Heidegger, apesar de suas críticas, não condenava a tecnologia em si, mas sim o
uso desmedido e acrítico dela.
Albert
Borgmann (1937-2023), estadunidense, é outro filósofo contemporâneo conhecido
por suas reflexões sobre tecnologia, oferece uma perspectiva instigante sobre
essa questão. Em sua obra "Technology and the Character of Contemporary
Life" (em tradução livre, "A Tecnologia e o Caráter da Vida
Contemporânea"), Borgmann introduz a ideia de "paradigma do
dispositivo". Segundo ele, a tecnologia moderna transforma o mundo
em uma coleção de dispositivos que prometem conforto e conveniência, mas que,
ao mesmo tempo, nos distanciam das experiências mais autênticas e
significativas da vida.
Borgmann
argumenta que, ao substituir o engajamento direto com o mundo por interações
mediadas por dispositivos, estamos perdendo a conexão com o que ele chama de
"focal things" (coisas focais) — atividades que exigem nossa atenção
plena e que, em troca, nos oferecem uma experiência de realização genuína.
Em
situações cotidianas, como decidir qual série assistir ou escolher o
restaurante mais próximo, é comum deixarmos as decisões para a tecnologia, sem
refletir sobre o impacto disso na nossa autonomia. Essa dependência pode
parecer trivial, mas Borgmann alerta que ela contribui para um empobrecimento
da vida. O simples ato de cozinhar uma refeição caseira, em vez de pedir comida
por um aplicativo, pode ser visto como uma forma de resistir ao paradigma do
dispositivo e reengajar-se com as atividades que dão sentido à nossa
existência.
O
contraponto importante aqui é que a tecnologia não precisa ser vista apenas
como uma força que nos distancia da essência humana. O próprio Borgmann também não
condena a tecnologia em si, mas sim o uso desmedido e acrítico dela. Ele sugere
que devemos cultivar uma relação equilibrada com a tecnologia, utilizando-a
como uma ferramenta que complementa, em vez de substituir, as experiências
focais que enriquecem nossas vidas. Percebemos que os filósofos parecem se
manifestar de maneira parecida quanto ao dilema, e em alguns pontos são até
repetitivos, noutros trazem a tona reflexões muito oportunas.
Então,
o que fazer diante desse dilema? Talvez a chave esteja em encontrar um
equilíbrio, em usar a tecnologia como uma extensão das nossas capacidades, sem
permitir que ela nos defina. Isso requer uma vigilância constante, uma reflexão
sobre como e por que usamos as ferramentas tecnológicas no dia a dia. O simples
ato de decidir passar menos tempo nas redes sociais ou de optar por caminhar
sem o auxílio do GPS pode ser um passo pequeno, mas significativo, na direção
de uma vida mais consciente.
A
Filosofia da Tecnologia, portanto, nos convida a pensar sobre nossa relação com
as máquinas e como essa relação está moldando o que significa ser humano. Como
Albert Borgmann nos lembra, a verdadeira realização vem de engajamentos que
exigem nossa presença total, e não de interações superficiais mediadas por
dispositivos. Não se trata de evitar a tecnologia, mas de integrá-la de forma
que ela enriqueça, e não empobreça, nossa experiência de vida.