Vamos falar de quando a beleza bate à porta e a gente não sabe se convida para entrar, vamos falar sobre o Juízo de Gosto.
Outro
dia, caminhando pela rua, vi um senhor parar diante de um muro grafitado e
soltar um “que horror!”. Logo atrás vinha um jovem, talvez um estudante de
artes, que parou no mesmo ponto e murmurou: “genial!” (isto ocorreu quando
grafitaram a parede do lado de fora do cemitério local, eu achei “tri” a arte
estava dando leveza ao lugar). Em menos de dez segundos, ali estavam dois
mundos diferentes, duas formas de sentir o mesmo objeto — e talvez duas
maneiras de viver. E me peguei pensando: o que é esse tal de juízo de gosto que
decide por nós o que é belo ou feio, encantador ou tosco, digno ou vulgar?
Esse
pequeno teatro cotidiano me levou a um dilema filosófico que Kant enfrentou com
seriedade no século XVIII e que ainda nos pega desprevenidos quando damos like
ou passamos reto numa imagem, num texto, num rosto: como julgamos aquilo que
não é útil nem moral, mas que nos toca diretamente? O juízo de gosto é esse
julgamento estranho que não se baseia em regras fixas, mas parece pedir
aprovação universal — como se disséssemos “isso é bonito” querendo, no fundo,
que todos concordem. Mas será que há mesmo um “belo em si”, ou tudo não passa
de gosto pessoal?
Entre
o subjetivo e o universal
Immanuel
Kant, no Crítica da Faculdade do Juízo, propõe que o juízo de gosto é subjetivo
— ele parte do sentimento de prazer ou desprazer de quem julga — mas, ao mesmo
tempo, ele carrega uma pretensão de universalidade. Quando digo que uma pintura
é bela, não estou apenas dizendo “eu gosto dela”, mas que “qualquer um deveria
gostar”. É aí que começa o impasse: como posso esperar consenso sobre algo que
parte da minha sensibilidade individual?
Ora,
isso soa familiar: no almoço de domingo, alguém elogia a sobremesa, outro torce
o nariz. Uma música toca e provoca lágrimas em uma pessoa, enquanto causa tédio
em outra. E, mesmo assim, tentamos justificar: “Mas como você não gosta disso?
É lindo!”. O juízo de gosto parece querer escapar do puramente pessoal e subir
alguns degraus em direção a algo mais “elevado”, mais próximo da razão. Kant
chama isso de “senso comum estético” — um tipo de sensibilidade compartilhada,
uma comunidade invisível de gosto.
Gosto:
instinto, cultura ou poder?
Mas
será que o gosto é mesmo tão puro assim? Pierre Bourdieu, sociólogo francês do
século XX, vai cutucar a ferida. Para ele, o juízo de gosto está longe de ser
neutro. Ele é condicionado pelas classes sociais, pelas práticas culturais e
pelo capital simbólico. Quando alguém diz “isso é de mau gosto”, pode estar, na
verdade, delimitando fronteiras sociais, afirmando pertencimentos e exclusões.
A
estética, nesse sentido, vira um campo de batalha silencioso. Um grafite pode
ser lido como arte urbana por uns e como vandalismo por outros, não apenas por
diferenças subjetivas, mas por trajetórias de vida diferentes, por códigos
culturais que se chocam. O juízo de gosto, então, não seria só uma questão de
sensibilidade, mas de poder — de quem pode dizer o que é bom, bonito, certo.
O
inesperado como convite
Mas
talvez o mais interessante do juízo de gosto seja seu caráter de surpresa. Não
escolhemos o que nos encanta — somos pegos de jeito. Um dia você ouve uma
música que achava brega e chora. Vê um filme de que jamais esperava gostar e se
emociona. O juízo de gosto nos expõe, nos vulnerabiliza. É uma forma de
reconhecer que, apesar de todas as certezas, o mundo ainda pode nos tocar de
formas novas.
É
nesse ponto que a filósofa brasileira Marcia Tiburi propõe algo radical: “o
gosto pode ser educado, mas só se for também deseducado”. Ou seja, só nos
tornamos verdadeiramente sensíveis ao belo quando desaprendemos parte dos
condicionamentos que nos foram impostos — seja pela cultura de massa, seja pela
erudição elitista. O gosto, então, pode ser um campo de liberdade: o lugar onde
reaprendemos a sentir.
O
gosto é um espelho rachado
No
fim das contas, o juízo de gosto é como um espelho rachado — reflete tanto quem
somos quanto aquilo que desejamos ser. Ele nos conecta aos outros (quando
concordamos) e nos separa (quando discordamos), mas sobretudo revela a
fragilidade e a beleza de sermos humanos: capazes de sentir, julgar e, às
vezes, mudar de ideia.
Talvez
o mais sábio seja reconhecer que o gosto, longe de ser apenas um capricho
pessoal, é uma ponte entre nós e o mundo — uma ponte instável, mas ainda assim
uma ponte. E da próxima vez que ouvirmos alguém dizer “que horror!” diante de
algo que achamos lindo, talvez possamos apenas sorrir e pensar: o juízo de
gosto ainda é o melhor convite ao diálogo que temos.