Pesquisar este blog

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Subjetivo e Universal

Vamos falar de quando a beleza bate à porta e a gente não sabe se convida para entrar, vamos falar sobre o Juízo de Gosto.

Outro dia, caminhando pela rua, vi um senhor parar diante de um muro grafitado e soltar um “que horror!”. Logo atrás vinha um jovem, talvez um estudante de artes, que parou no mesmo ponto e murmurou: “genial!” (isto ocorreu quando grafitaram a parede do lado de fora do cemitério local, eu achei “tri” a arte estava dando leveza ao lugar). Em menos de dez segundos, ali estavam dois mundos diferentes, duas formas de sentir o mesmo objeto — e talvez duas maneiras de viver. E me peguei pensando: o que é esse tal de juízo de gosto que decide por nós o que é belo ou feio, encantador ou tosco, digno ou vulgar?

Esse pequeno teatro cotidiano me levou a um dilema filosófico que Kant enfrentou com seriedade no século XVIII e que ainda nos pega desprevenidos quando damos like ou passamos reto numa imagem, num texto, num rosto: como julgamos aquilo que não é útil nem moral, mas que nos toca diretamente? O juízo de gosto é esse julgamento estranho que não se baseia em regras fixas, mas parece pedir aprovação universal — como se disséssemos “isso é bonito” querendo, no fundo, que todos concordem. Mas será que há mesmo um “belo em si”, ou tudo não passa de gosto pessoal?

Entre o subjetivo e o universal

Immanuel Kant, no Crítica da Faculdade do Juízo, propõe que o juízo de gosto é subjetivo — ele parte do sentimento de prazer ou desprazer de quem julga — mas, ao mesmo tempo, ele carrega uma pretensão de universalidade. Quando digo que uma pintura é bela, não estou apenas dizendo “eu gosto dela”, mas que “qualquer um deveria gostar”. É aí que começa o impasse: como posso esperar consenso sobre algo que parte da minha sensibilidade individual?

Ora, isso soa familiar: no almoço de domingo, alguém elogia a sobremesa, outro torce o nariz. Uma música toca e provoca lágrimas em uma pessoa, enquanto causa tédio em outra. E, mesmo assim, tentamos justificar: “Mas como você não gosta disso? É lindo!”. O juízo de gosto parece querer escapar do puramente pessoal e subir alguns degraus em direção a algo mais “elevado”, mais próximo da razão. Kant chama isso de “senso comum estético” — um tipo de sensibilidade compartilhada, uma comunidade invisível de gosto.

Gosto: instinto, cultura ou poder?

Mas será que o gosto é mesmo tão puro assim? Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX, vai cutucar a ferida. Para ele, o juízo de gosto está longe de ser neutro. Ele é condicionado pelas classes sociais, pelas práticas culturais e pelo capital simbólico. Quando alguém diz “isso é de mau gosto”, pode estar, na verdade, delimitando fronteiras sociais, afirmando pertencimentos e exclusões.

A estética, nesse sentido, vira um campo de batalha silencioso. Um grafite pode ser lido como arte urbana por uns e como vandalismo por outros, não apenas por diferenças subjetivas, mas por trajetórias de vida diferentes, por códigos culturais que se chocam. O juízo de gosto, então, não seria só uma questão de sensibilidade, mas de poder — de quem pode dizer o que é bom, bonito, certo.

O inesperado como convite

Mas talvez o mais interessante do juízo de gosto seja seu caráter de surpresa. Não escolhemos o que nos encanta — somos pegos de jeito. Um dia você ouve uma música que achava brega e chora. Vê um filme de que jamais esperava gostar e se emociona. O juízo de gosto nos expõe, nos vulnerabiliza. É uma forma de reconhecer que, apesar de todas as certezas, o mundo ainda pode nos tocar de formas novas.

É nesse ponto que a filósofa brasileira Marcia Tiburi propõe algo radical: “o gosto pode ser educado, mas só se for também deseducado”. Ou seja, só nos tornamos verdadeiramente sensíveis ao belo quando desaprendemos parte dos condicionamentos que nos foram impostos — seja pela cultura de massa, seja pela erudição elitista. O gosto, então, pode ser um campo de liberdade: o lugar onde reaprendemos a sentir.

O gosto é um espelho rachado

No fim das contas, o juízo de gosto é como um espelho rachado — reflete tanto quem somos quanto aquilo que desejamos ser. Ele nos conecta aos outros (quando concordamos) e nos separa (quando discordamos), mas sobretudo revela a fragilidade e a beleza de sermos humanos: capazes de sentir, julgar e, às vezes, mudar de ideia.

Talvez o mais sábio seja reconhecer que o gosto, longe de ser apenas um capricho pessoal, é uma ponte entre nós e o mundo — uma ponte instável, mas ainda assim uma ponte. E da próxima vez que ouvirmos alguém dizer “que horror!” diante de algo que achamos lindo, talvez possamos apenas sorrir e pensar: o juízo de gosto ainda é o melhor convite ao diálogo que temos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário