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quinta-feira, 3 de julho de 2025

Deus e a Filosofia

 

Um Ensaio sobre o Encontro que Nunca Termina

Às vezes, durante uma caminhada sem rumo, ou enquanto esperamos a água do café ferver, nos pegamos pensando em coisas que parecem grandes demais para um ser humano: o tempo, a morte, o amor… e Deus. E quando essa ideia surge, mesmo que timidamente, logo aparece outra pergunta na sombra: será que pensar em Deus é tarefa da religião ou da filosofia? Ou seria da experiência de estar vivo?

Este ensaio não pretende responder essa pergunta de forma definitiva. Aliás, nenhuma filosofia digna desse nome parte para responder, mas para ampliar o modo de perguntar. E se Deus, longe de ser apenas um ente supremo fora do mundo, fosse também um nome que damos à própria busca por sentido? Um nome provisório para o que nos ultrapassa e, ainda assim, nos habita?

A ideia de Deus como pergunta e não como resposta

Tradicionalmente, a filosofia começa com um certo espanto, como disse Aristóteles. Mas esse espanto não é só diante do mundo, da natureza ou da existência — ele também aparece quando tentamos compreender o que está por trás de tudo isso. Deus, nesse sentido, não entra como uma explicação pronta, mas como um mistério que tensiona o pensamento.

Na filosofia de Spinoza, por exemplo, Deus é a própria substância da natureza, uma totalidade infinita que se expressa em tudo. Já em Pascal, há um salto de fé diante da razão limitada — “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Deus aparece ali onde a razão falha, mas não como um fim, e sim como um convite à humildade.

Então talvez pensar Deus seja, antes de tudo, um exercício de ampliação dos próprios limites do pensar. É pensar o impensável, e nesse esforço, conhecer melhor quem pensa.

A filosofia como o modo de tocar Deus sem possuí-lo

A teologia busca conhecer Deus a partir da fé. A filosofia, no entanto, se aproxima com desconfiança — não no sentido negativo, mas no sentido de quem examina, sonda, testa. Santo Agostinho, que é tanto filósofo quanto teólogo, disse certa vez: "Se o compreendeste, não é Deus." Essa afirmação carrega uma pista valiosa: Deus, para a filosofia, nunca é objeto que se deixa capturar, mas sim uma presença que transforma quem tenta compreendê-la.

Deus, nesse caminho, não é uma entidade para se possuir, mas um horizonte para o qual nos voltamos quando as certezas se desfazem. E é nessa caminhada — feita de dúvidas, perplexidades e silêncio — que a filosofia se torna uma oração sem palavras, ou, como diria Simone Weil, uma atenção pura.

E se Deus fosse o nome da liberdade?

Uma proposta inovadora seria pensar Deus não como causa do mundo, mas como sua possibilidade de liberdade. Nesse ponto, podemos nos inspirar em alguns filósofos contemporâneos que recusam tanto a existência dogmática quanto o ateísmo superficial. Giorgio Agamben, por exemplo, vê na ideia de Deus uma força que suspende as regras do mundo, abrindo brechas onde o inesperado pode acontecer. Deus seria, então, o nome de tudo aquilo que rompe com o necessário e permite o novo.

Na vida cotidiana, sentimos isso quando algo nos toca profundamente sem sabermos por quê — uma música, um encontro, um gesto de perdão. Nessas brechas, talvez Deus apareça, não como um velho homem no céu, mas como a surpresa que desarma a lógica comum.

Pensar Deus é pensar-se

Filosofar sobre Deus não é discutir a existência de um ser superior sentado num trono invisível. É, antes, uma forma de refletir sobre o que nos constitui, nos inquieta e nos impulsiona. Deus, para a filosofia, é menos uma certeza do que uma tensão: a tensão entre o que somos e o que poderíamos ser.

E talvez a pergunta mais filosófica de todas não seja "Deus existe?", mas sim: "Que tipo de ser humano me torno ao pensar Deus?" Porque no fim das contas, como dizia o filósofo Paul Tillich, Deus é aquilo em que depositamos nossa preocupação última. E nisso, todos já temos um Deus — ainda que nem sempre o nomeemos assim.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Subjetivo e Universal

Vamos falar de quando a beleza bate à porta e a gente não sabe se convida para entrar, vamos falar sobre o Juízo de Gosto.

Outro dia, caminhando pela rua, vi um senhor parar diante de um muro grafitado e soltar um “que horror!”. Logo atrás vinha um jovem, talvez um estudante de artes, que parou no mesmo ponto e murmurou: “genial!” (isto ocorreu quando grafitaram a parede do lado de fora do cemitério local, eu achei “tri” a arte estava dando leveza ao lugar). Em menos de dez segundos, ali estavam dois mundos diferentes, duas formas de sentir o mesmo objeto — e talvez duas maneiras de viver. E me peguei pensando: o que é esse tal de juízo de gosto que decide por nós o que é belo ou feio, encantador ou tosco, digno ou vulgar?

Esse pequeno teatro cotidiano me levou a um dilema filosófico que Kant enfrentou com seriedade no século XVIII e que ainda nos pega desprevenidos quando damos like ou passamos reto numa imagem, num texto, num rosto: como julgamos aquilo que não é útil nem moral, mas que nos toca diretamente? O juízo de gosto é esse julgamento estranho que não se baseia em regras fixas, mas parece pedir aprovação universal — como se disséssemos “isso é bonito” querendo, no fundo, que todos concordem. Mas será que há mesmo um “belo em si”, ou tudo não passa de gosto pessoal?

Entre o subjetivo e o universal

Immanuel Kant, no Crítica da Faculdade do Juízo, propõe que o juízo de gosto é subjetivo — ele parte do sentimento de prazer ou desprazer de quem julga — mas, ao mesmo tempo, ele carrega uma pretensão de universalidade. Quando digo que uma pintura é bela, não estou apenas dizendo “eu gosto dela”, mas que “qualquer um deveria gostar”. É aí que começa o impasse: como posso esperar consenso sobre algo que parte da minha sensibilidade individual?

Ora, isso soa familiar: no almoço de domingo, alguém elogia a sobremesa, outro torce o nariz. Uma música toca e provoca lágrimas em uma pessoa, enquanto causa tédio em outra. E, mesmo assim, tentamos justificar: “Mas como você não gosta disso? É lindo!”. O juízo de gosto parece querer escapar do puramente pessoal e subir alguns degraus em direção a algo mais “elevado”, mais próximo da razão. Kant chama isso de “senso comum estético” — um tipo de sensibilidade compartilhada, uma comunidade invisível de gosto.

Gosto: instinto, cultura ou poder?

Mas será que o gosto é mesmo tão puro assim? Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX, vai cutucar a ferida. Para ele, o juízo de gosto está longe de ser neutro. Ele é condicionado pelas classes sociais, pelas práticas culturais e pelo capital simbólico. Quando alguém diz “isso é de mau gosto”, pode estar, na verdade, delimitando fronteiras sociais, afirmando pertencimentos e exclusões.

A estética, nesse sentido, vira um campo de batalha silencioso. Um grafite pode ser lido como arte urbana por uns e como vandalismo por outros, não apenas por diferenças subjetivas, mas por trajetórias de vida diferentes, por códigos culturais que se chocam. O juízo de gosto, então, não seria só uma questão de sensibilidade, mas de poder — de quem pode dizer o que é bom, bonito, certo.

O inesperado como convite

Mas talvez o mais interessante do juízo de gosto seja seu caráter de surpresa. Não escolhemos o que nos encanta — somos pegos de jeito. Um dia você ouve uma música que achava brega e chora. Vê um filme de que jamais esperava gostar e se emociona. O juízo de gosto nos expõe, nos vulnerabiliza. É uma forma de reconhecer que, apesar de todas as certezas, o mundo ainda pode nos tocar de formas novas.

É nesse ponto que a filósofa brasileira Marcia Tiburi propõe algo radical: “o gosto pode ser educado, mas só se for também deseducado”. Ou seja, só nos tornamos verdadeiramente sensíveis ao belo quando desaprendemos parte dos condicionamentos que nos foram impostos — seja pela cultura de massa, seja pela erudição elitista. O gosto, então, pode ser um campo de liberdade: o lugar onde reaprendemos a sentir.

O gosto é um espelho rachado

No fim das contas, o juízo de gosto é como um espelho rachado — reflete tanto quem somos quanto aquilo que desejamos ser. Ele nos conecta aos outros (quando concordamos) e nos separa (quando discordamos), mas sobretudo revela a fragilidade e a beleza de sermos humanos: capazes de sentir, julgar e, às vezes, mudar de ideia.

Talvez o mais sábio seja reconhecer que o gosto, longe de ser apenas um capricho pessoal, é uma ponte entre nós e o mundo — uma ponte instável, mas ainda assim uma ponte. E da próxima vez que ouvirmos alguém dizer “que horror!” diante de algo que achamos lindo, talvez possamos apenas sorrir e pensar: o juízo de gosto ainda é o melhor convite ao diálogo que temos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Banir a Aleatoriedade

Há momentos na vida em que tudo parece uma grande roleta girando ao acaso. Aquele dia em que você acorda com a sensação de que o universo decidiu brincar de dados com seu destino. Mas e se essa aparente aleatoriedade não for tão aleatória assim? E se cada evento, por mais desconexo que pareça, for uma oportunidade disfarçada para o crescimento?

Imagine o trânsito caótico que te fez chegar atrasado ao trabalho. No calor do momento, tudo o que você sente é frustração, talvez até um pouco de raiva. Mas e se esse atraso for uma pausa necessária, uma brecha para pensar em algo que você não teria percebido na correria habitual? Pode ser que, ao se permitir desacelerar, você enxergue uma nova perspectiva ou tenha uma ideia que mude o curso do seu dia.

A vida, com suas curvas inesperadas, nos empurra a olhar além da superfície. Heráclito, um filósofo grego conhecido por sua ideia de que “tudo flui”, poderia dizer que essa fluidez, essa constante mudança, não é para nos desestabilizar, mas para nos ensinar. A injustiça aparente, as dificuldades que enfrentamos, podem ser encaradas como mestres severos, mas justos, se estivermos dispostos a aprender com eles.

Quando nos deparamos com situações que parecem aleatórias ou injustas, a tentação é acreditar que estamos à mercê de uma sorte caprichosa. Mas, talvez, a vida esteja nos pedindo para decifrar suas mensagens. Um relacionamento que termina pode ser a oportunidade de redescobrir quem somos. Uma demissão pode ser o empurrão que precisávamos para finalmente seguir aquele sonho engavetado.

É claro que não é fácil enxergar o crescimento em meio à dor ou à frustração. Mas banir a aleatoriedade é, na verdade, um exercício de percepção. Significa olhar para cada evento como parte de um grande quebra-cabeça onde todas as peças, eventualmente, se encaixam. E, mesmo que o encaixe não seja imediato ou evidente, confiar que a vida, de alguma forma, faz sentido. Devemos aproveitar as pequenas adversidades para saber como agir nas maiores adversidades, a pratica nos fará capazes de suportar e superar os momentos mais difíceis.

Portanto, ao invés de lutar contra a corrente, a proposta é surfar nas ondas do inesperado, aprender a dialogar com a vida e, sobretudo, decifrar o que ela está tentando nos dizer. Afinal, como Heráclito poderia concordar, a verdadeira sabedoria está em compreender que tudo está em constante mudança, e que o crescimento surge justamente da capacidade de navegar nesse fluxo, sem se afogar em suas aparentes injustiças.