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quarta-feira, 30 de julho de 2025

Espoliação do Tempo

A gente costuma dizer que está sem tempo como quem diz que perdeu a carteira — com pressa, indignação e certo pânico. Mas o tempo não é uma moeda que a gente carrega no bolso. Ele nos atravessa, escorre pelas ações, pelas distrações, pelas pausas mal aproveitadas e até pelas obrigações alheias que vamos aceitando em nome da convivência, da produtividade ou da culpa. Talvez não seja que nos falta tempo, mas que ele nos é tomado — espoliado, como se houvesse uma constante pilhagem silenciosa acontecendo dentro do nosso cotidiano.

Espoliar o tempo é mais do que desperdiçá-lo. É ser roubado em plena luz do dia, sem sequer notar que estamos sendo levados — em atenção, em presença, em sentido. É o scroll infinito das redes, o acúmulo de reuniões que poderiam ser silêncios, os compromissos vazios de propósito. E mais: é o modo como o tempo dos outros se impõe sobre o nosso, como se houvesse um direito tácito de ocupá-lo.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua obra A Sociedade do Cansaço, oferece uma lente potente para pensar isso. Ele mostra como o sujeito contemporâneo, ao se tornar empreendedor de si mesmo, entra numa lógica de autoexploração. Não é mais o patrão que toma seu tempo — é você mesmo, convertido em gerente e escravo ao mesmo tempo. A espoliação, então, deixa de ser um ato externo e passa a ser um consentimento interno, um assalto com autorização.

A inovação necessária talvez seja recuperar o tempo como um bem coletivo interior. Como propôs o próprio Han, precisamos reaprender a “habitar o tempo”, e não apenas geri-lo. Isso significa voltar a dar valor ao ócio contemplativo, ao ritmo próprio das coisas, à escuta do corpo e à desobediência temporal — dizer “não” ao cronograma imposto, recusar o convite para correr onde não há urgência real.

Ser senhor do próprio tempo, hoje, é quase um ato revolucionário. Reivindicar minutos livres de finalidade, horas sem culpa, dias em que o tempo nos pertence por inteiro. Porque enquanto não cuidarmos do tempo como quem cuida da própria alma, ele continuará sendo espoliado — e nem perceberemos o que estamos perdendo.


terça-feira, 10 de setembro de 2024

Qualquer Culpa

Estava assistindo ao vídeo com a música "Geni e o Zepelim" de Chico Buarque. A canção fala sobre Geni, uma personagem que é constantemente culpabilizada pela sociedade. Mesmo sendo tratada com desprezo, ela acaba salvando a cidade, mas volta a ser rejeitada logo após cumprir seu papel heroico. A música reflete sobre a culpa imposta pela sociedade e o julgamento moral que recai sobre o comportamento de Geni, mostrando como a culpa pode ser usada como instrumento de manipulação e opressão social. A letra é uma crítica à hipocrisia e ao julgamento moral, destacando como a culpa pode ser imposta a partir de convenções sociais que nem sempre são justas. Então, porque não falar sobre “qualquer culpa”? Convenhamos, Chico Buarque é inspirador.

A culpa é como uma sombra que, muitas vezes, parece nos acompanhar silenciosamente, até nos surpreender nos momentos mais inesperados. Quem nunca sentiu aquele peso no peito por algo que disse ou fez, ou até mesmo por algo que deixou de fazer? Seja uma pequena culpa por não ter cumprido uma promessa ou uma culpa mais profunda relacionada a decisões maiores na vida, esse sentimento pode nos fazer questionar a nossa própria humanidade. Mas será que precisamos carregar todas as culpas conosco, ou existe um caminho para nos libertarmos delas?

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche tinha uma visão interessante sobre a culpa, especialmente no contexto da moralidade cristã, que ele tanto criticou. Para Nietzsche, a culpa foi uma invenção da sociedade para manter as pessoas sob controle, um instrumento usado para domesticar nossos instintos e nos fazer seguir normas e padrões impostos por autoridades religiosas e sociais. Ele acreditava que essa culpa "moral" era uma forma de nos afastar da nossa verdadeira essência, do nosso potencial de sermos seres autênticos, sem medo das consequências impostas pelos outros.

No dia a dia, vivemos cercados por situações que podem nos levar a sentir culpa. Imagine que você se comprometeu a ajudar um amigo, mas, por falta de tempo ou mesmo por esquecimento, deixou de fazê-lo. O peso da responsabilidade aparece, e você se culpa por não ter cumprido a promessa. Ou, quem sabe, é algo mais íntimo: a culpa por não ter dado mais atenção à família, por ter escolhido uma carreira que não faz mais sentido ou por ter dito palavras que magoaram alguém.

Nietzsche, no entanto, nos provocaria a questionar: por que sentimos essa culpa? Ela é realmente fruto de uma reflexão sobre o que é justo e necessário, ou estamos apenas reproduzindo padrões que nos ensinaram desde pequenos? Para ele, libertar-se da culpa implicaria, em parte, libertar-se da ideia de que devemos sempre agradar ou nos submeter a normas externas. É preciso, segundo Nietzsche, abraçar o conceito do "Übermensch" (o super-homem), aquele que cria seus próprios valores e se responsabiliza por eles, sem medo de contrariar expectativas.

Claro, no mundo real, não é tão simples. A culpa pode, de fato, servir como um alerta sobre o impacto das nossas ações. Se dissemos algo que feriu outra pessoa, essa culpa pode nos impulsionar a corrigir o erro, a pedir desculpas e a melhorar como seres humanos. Nesse sentido, a culpa pode ter um papel construtivo. No entanto, é a culpa desmedida — aquela que carrega julgamentos pesados e implacáveis, que não oferece caminho para a reconciliação — que Nietzsche nos encoraja a abandonar.

No cotidiano, todos nos deparamos com momentos em que a culpa aparece de forma sorrateira. Às vezes, é uma falha pequena, mas nossa mente transforma aquilo em um gigante. Outras vezes, é uma escolha difícil que sabemos que não agradará a todos, e lá vem a culpa, com suas garras prontas para nos prender. Nessas horas, o pensamento nietzschiano pode ser um alívio: somos responsáveis pelas nossas escolhas, sim, mas não devemos carregar o peso do mundo em nossas costas.

Talvez, ao invés de deixar que a culpa nos paralise, possamos aprender com ela e seguir em frente. Afinal, como Nietzsche diria, viver de acordo com a nossa própria vontade é um ato de coragem — e essa coragem muitas vezes envolve deixar de lado a culpa que não nos pertence, para nos concentrarmos naquilo que realmente importa: a construção de uma vida autêntica, onde assumimos nossos erros, mas não nos deixamos ser definidos por eles.

Então, da próxima vez que a culpa bater à porta, talvez seja hora de perguntar: ela realmente tem algo a me ensinar, ou está apenas me segurando em um lugar que já não me serve mais?

Link do vídeo com a música: "Geni e o Zepelim" de Chico Buarque

https://www.youtube.com/watch?v=OLLB88MWhOs