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domingo, 11 de maio de 2025

Obsessões

As obsessões, essas ideias que grudam na mente como chiclete no sapato, sempre foram um campo fértil para reflexões filosóficas. Nem sempre com esse nome, claro. Às vezes aparecem como paixões, manias, fixações — formas intensas de pensamento ou desejo que se recusam a sair da cabeça e moldam a nossa visão do mundo.

Comecemos com os estoicos. Para eles, obsessões seriam perturbações da alma. Epicteto diria que estamos apegados demais a coisas que não estão no nosso controle — como a aprovação dos outros, o sucesso, ou o medo da morte. Segundo ele, “não são as coisas que nos perturbam, mas os julgamentos que fazemos sobre elas”. Se transformamos um pensamento em obsessão, é porque decidimos que aquilo é essencial — quando, na verdade, não é. A obsessão, nesse caso, seria uma falsa atribuição de valor.

Já Nietzsche, com sua verve provocadora, vê a obsessão de outra forma: como um sinal de vontade de potência. Para ele, as obsessões podem ser expressões intensas da nossa força vital, desde que não nos dominem de maneira destrutiva. Um artista obcecado por sua obra, por exemplo, pode estar realizando uma forma elevada de existência — vivendo com intensidade. Nietzsche não prega equilíbrio, mas transbordamento. O problema, segundo ele, é quando a obsessão vem da fraqueza, da tentativa de compensar algo que falta em nós. Aí ela vira ressentimento ou vício.

Freud, embora não seja exatamente um filósofo, também entra bem nesse papo. Ele trouxe a noção de "neurose obsessiva", onde a mente se prende a rituais e pensamentos repetitivos para controlar angústias inconscientes. A obsessão seria uma tentativa — falha — de controlar o incontrolável. E isso ecoa em nossa vida cotidiana: trancar a porta cinco vezes, revisar mil vezes uma mensagem antes de enviar, revisar o passado como se pudéssemos reescrevê-lo. Tudo isso para acalmar algo mais profundo.

Em Kierkegaard, as obsessões se aproximam da angústia e do desespero. Ele fala sobre o "desespero de não ser si mesmo" — quando a gente se agarra a uma ideia, uma imagem ou uma expectativa como forma de escapar de quem realmente é. A obsessão, nesse contexto, é fuga. É uma âncora ilusória no meio do mar revolto da existência.

E no cotidiano?

Tem a pessoa que checa o celular a cada dois minutos para ver se aquela mensagem chegou. O vizinho que não consegue parar de falar do mesmo problema com o chefe. A amiga que revive todos os dias uma discussão de cinco anos atrás. As obsessões nos cercam — e às vezes, nos conduzem.

Mas talvez a pergunta não seja “como eliminar a obsessão?”, e sim: o que ela está tentando nos dizer?

Como dizia Simone Weil, "a atenção verdadeira é uma forma de amor". Talvez nossas obsessões sejam formas tortas de atenção. E se as ouvirmos com cuidado — sem nos rendermos a elas, mas também sem expulsá-las com brutalidade — possamos transformá-las em algo mais: compreensão, criação, ou, quem sabe, paz.


sábado, 10 de maio de 2025

Lupa e Espelho

Um Mate com o Objetivismo e o Subjetivismo...

Outro dia, esperando a água do chimarrão esquentar, me peguei encarando a chaleira. O vapor subia em espirais meio caóticas e pensei: “Será que ele existe assim mesmo ou só está assim porque eu estou vendo desse jeito?”. A chaleira continuou lá, alheia à minha filosofia de cozinha, mas o pensamento ficou. A vida, afinal, parece balançar entre duas grandes vontades: a de que as coisas sejam como são (objetivamente) e a de que sejam como sentimos que são (subjetivamente). Esse é o cabo de guerra silencioso entre objetivismo e subjetivismo.

A razão e o eu: um encontro (nem sempre cordial)

O objetivismo quer o mundo como ele é, sem firulas. A verdade está lá fora, como dizia Arquimedes antes de descobrir a alavanca e a física clássica inteira. Os objetivistas acreditam que há um modo certo de olhar as coisas, um ponto fixo. Já o subjetivismo sussurra outra coisa: que a verdade passa pelo nosso olhar, pelas nossas entranhas emocionais, pela forma como o mundo nos atravessa.

O primeiro problema é que ninguém acorda pela manhã como um puro objetivista. Ninguém diz: “Hoje me sinto objetivamente bem”. A gente diz: “Acordei meio estranho, o tempo tá pesado, parece que o mundo tá fora do lugar”. A verdade, mesmo que externa, parece sempre entrar pela nossa porta interna.

O copo meio cheio (ou meio vazio?) — depende

Vamos a um exemplo doméstico. Você e um amigo assistem ao mesmo filme. Um acha brilhante, o outro acha arrastado. O objetivista tentaria medir o ritmo, analisar a edição, calcular a densidade dramática. O subjetivista diria: “O filme me tocou, e isso basta”. A crítica de cinema vive dessa disputa: quantas estrelas cabem entre o gosto pessoal e os critérios técnicos?

Mas e se os dois tiverem razão? E se a realidade for uma espécie de “camada dupla”, como uma lasanha metafísica — uma camada objetiva de fatos, outra subjetiva de significados?

Nietzsche, o árbitro relutante

Nietzsche, sempre desconfiado das verdades em mármore, nos oferece uma saída ousada: não existe fato sem interpretação. Para ele, o que chamamos de “realidade” é sempre uma construção. Ou seja, até mesmo o objetivismo é uma espécie de subjetivismo disfarçado de jaleco branco.

Mas isso não quer dizer que tudo seja relativo. Nietzsche não é um libertino epistemológico. O que ele quer dizer é que a realidade é uma batalha de interpretações. Algumas vencem, outras murcham. Não porque sejam mais verdadeiras, mas porque são mais fortes, mais convincentes, mais úteis.

A busca de um meio do caminho

Hoje, muitos filósofos preferem falar em intersubjetividade — uma ponte entre o mundo pessoal e o mundo comum. Não é nem o absoluto frio do objetivismo, nem o caos solipsista do subjetivismo. É a ideia de que compartilhamos sentidos, narrativas, significados. A cultura, a linguagem e os valores são construções intersubjetivas: nem estão lá no mundo puro, nem só dentro da nossa cabeça. Estão entre nós.

A chaleira da minha cozinha, por exemplo, é um objeto físico, mas também é o símbolo da pausa, do mate, da memória afetiva. Ela existe em dois mundos: no da física e no do afeto. O subjetivismo a aquece, o objetivismo a estrutura. E nós vivemos no intervalo entre essas duas forças.

Olhar e ser olhado

No fundo, talvez o maior desafio não seja escolher entre objetivismo ou subjetivismo, mas aprender a habitar essa tensão. Como quem vê o reflexo no espelho e, ao mesmo tempo, tenta entender a face que o espelho reflete. A realidade é um pouco como aquela chaleira: ferve quando a gente não está olhando, mas parece querer dizer algo quando nos aproximamos.

Talvez filosofar seja isso: aquecer a água do pensamento até que o vapor forme perguntas. E então, entre a razão objetiva e o sentimento subjetivo, servir um mate morno com a dúvida no lugar do açúcar.

domingo, 4 de maio de 2025

Desaparecimento Cósmico

Estava parado na fila da escada rolante, olhando a esteira rolante como quem observa o tempo passando — lenta, inexorável, levando as pessoas embora. Um após o outro iam sumindo no topo da escada, uma dúvida existencial: por que algumas presenças somem como se nunca tivessem existido? Não falo da morte no seu formato mais protocolar, com certidão e cerimônia. Falo do desaparecimento sem anúncio. Pessoas que um dia estavam ali, e no outro dia já não estão mais. E ninguém sabe o que foi feito delas.

Vivemos como quem chegou no meio do filme. A história já começou e não sabemos o que houve antes; também não temos certeza se veremos os créditos finais. “De onde eu vim?” parece uma pergunta de criança — mas talvez a verdadeira maturidade comece quando essa pergunta volta a fazer sentido. E mais ainda: “Pra onde foi quem se foi?”.

A fonte e o fim, nesse enigma, são como irmãos gêmeos que nunca se encontram. Porque o fim não é só o apagar das luzes; às vezes é um silêncio que se prolonga. Um nome que para de ser dito. Um rosto que a memória começa a confundir com outro. É como se, em certo momento, alguém saísse discretamente da festa da vida pela porta dos fundos — e ninguém percebesse.

Mas talvez estejamos lendo a vida de forma linear demais. Nyanaponika Thera, monge e pensador budista, nos lembra que o tempo e o eu são construções passageiras, como redemoinhos num rio. Nada realmente "começa" ou "termina", apenas muda de forma. Aquilo que acreditamos perdido talvez apenas esteja passando por um ciclo invisível ao nosso olhar impaciente.

Nesse sentido, o desaparecimento não seria um fim, mas um retorno. Não um corte, mas um círculo. A vida como mandala: começa onde termina, termina onde começa. A fonte e o destino se tocam como as pontas de uma serpente que morde a própria cauda. Quem se vai não está ausente, apenas se movimenta por outra curva da roda. E quem permanece, caminha no mesmo giro, talvez mais devagar.

O mais curioso é que quem vai, vai inteiro. Quem fica, fica em pedaços. A ausência esculpe em nós uma presença negativa: um espaço que continua ali, exigindo sentido. Como se a jornada daqueles que desapareceram tivesse se encerrado num ponto que é, ao mesmo tempo, início e destino. A origem que nunca soubemos definir. O ponto zero. O nada que parece dizer: “siga, é por aqui”.

Nietzsche escreveu que “o homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem”. Talvez sejamos isso: uma ponte, e nada mais. Uma travessia sem garantias, sem começo claro e sem fim explicado. Mas ainda assim, uma travessia.


sábado, 26 de abril de 2025

Existir, Não Viver

Outro dia, enquanto esperava o pão sair do forno na padaria, percebi que ninguém parecia realmente ali. Uma senhora mexia no celular sem piscar, um rapaz olhava para o chão como quem fugia do próprio corpo, e até a atendente repetia “bom dia” no automático, como uma gravação antiga. A fila andava, as pessoas se mexiam, o pão cheirava bem, mas havia um vazio no ar — uma espécie de ausência presente. E aí me veio essa frase: existir, não viver.

Parece exagero? Talvez. Mas quantos de nós estamos de fato vivendo e não apenas marcando ponto no planeta?

O Existir Automático

Existir é, no fundo, uma função biológica. Respirar, comer, andar, trabalhar — tudo isso pode acontecer sem que haja uma verdadeira entrega ao instante. Somos excelentes operadores da nossa rotina: acordamos, pegamos condução, respondemos mensagens, entregamos relatórios, rimos por educação e terminamos o dia com a sensação de que não acontecemos em nenhum momento.

Como diria o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, muitos vivem “na estética”, ou seja, buscam distrações, prazeres e afazeres para não encarar a angústia de uma vida sem sentido profundo. Essa forma de existência anestesiada é o oposto de uma vida autêntica — e ela é tão comum que já parece normal.

Viver é Incômodo

Ao contrário do existir, viver exige presença. E presença, meus amigos, dói. É olhar para dentro, sentir o mundo, fazer escolhas conscientes, perder tempo com o que importa, mesmo que isso não dê lucro nem prestígio. Viver é parar no meio da rua para ver o pôr do sol mesmo que te chamem de bobo. É perguntar “como você está?” e realmente esperar a resposta.

A filósofa brasileira Viviane Mosé diz que “viver é um ato poético” — e poesia, como sabemos, não se resume a técnica, mas a sensibilidade. Quem vive de verdade está disposto a não saber tudo, a se vulnerabilizar, a rir alto e a chorar feio, a perder tempo com gente, bicho, planta e memória. E isso, infelizmente, parece um luxo em tempos de produtividade tóxica.

A Sobrevivência Como Estilo de Vida

Existe um modo de vida que se vende como solução, mas que é apenas sobrevivência disfarçada. É o “modo avião da alma”, onde nada entra e nada sai. Uma espécie de hibernação em vida, onde o medo de sofrer também impede o prazer, onde o medo de falhar impede o risco, e o medo de sentir impede... tudo.

E então nos tornamos seres que não vivem, mas ocupam lugar. Ocupamos cadeiras, empregos, apartamentos e perfis nas redes sociais. Produzimos, consumimos, acumulamos, mas não habitamos a própria experiência.

A Vida Está Fora da Agenda

Talvez viver não caiba mesmo na agenda. Talvez viver seja aquela conversa inesperada no ponto de ônibus, o café que esfria porque a conversa esquenta, o silêncio que não incomoda. Talvez viver seja esse instante em que você para de correr e, pela primeira vez no dia, sente que está aqui.

Viver é interromper o existir automático.

Nietzsche já alertava para o perigo de uma vida que não se transforma em arte. Uma vida sem criação, sem autoria, sem cor, é apenas respiração em série. E mesmo isso, uma hora, cessa. Porque existir é finito. Já viver — se for intenso o bastante — pode ecoar mesmo depois do fim.

Então, se um dia te perguntarem o que você fez da vida, tente não responder com a planilha. Fale de uma tarde boa, de um abraço sincero, de uma decisão difícil que te fez sentir vivo. Porque, no fim das contas, a diferença entre existir e viver talvez esteja em quantas vezes você realmente esteve presente — inclusive no cheiro do pão saindo do forno.


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Mundo Insensato



Sabe aqueles dias em que o mundo parece um teatro do absurdo? Você olha ao redor e percebe que as pessoas estão correndo em direções aleatórias, defendendo causas que nem entendem, seguindo regras que ninguém se lembra por que existem. Parece um grande espetáculo sem roteiro, onde todos fingem que faz sentido. Bem-vindo ao mundo insensato.

O mundo continua em guerra aqui, lá e acolá, as guerras deste mundo insensato assumem muitas formas—bélicas, econômicas, culturais, tecnológicas e até psicológicas—mas todas compartilham a mesma lógica de confronto, dominação e destruição. Se Clausewitz via a guerra como a política por outros meios, hoje ela se manifesta também como a guerra da desinformação, das narrativas que moldam a realidade ao gosto do poder. Mesmo na esfera íntima, há guerras silenciosas: batalhas contra o tempo, contra si mesmo, contra um mundo que exige produtividade sem pausa. Nietzsche diria que a guerra é inerente à vida, um campo de forças em disputa; mas a questão é se podemos transformá-la de um embate cego para um conflito criativo, onde o atrito não destrói, mas gera novos sentidos. Camus diria que vivemos num mundo do absurdo!

A insensatez do mundo pode ser vista na forma como nos apegamos a convenções arbitrárias, como se fossem verdades absolutas. Se você não usa um terno em determinada ocasião, é visto como inadequado; se não responde imediatamente a uma mensagem, pode ser considerado rude. Mas quem escreveu essas regras? E, mais importante, quem disse que elas fazem sentido?

Desde a Grécia Antiga, os filósofos tentam entender esse caos organizado. Heráclito já dizia que tudo está em constante fluxo, e talvez seja essa mudança incessante que faz com que o mundo nunca pareça totalmente coerente. Schopenhauer, por sua vez, enxergava a existência como um jogo de forças irracionais – uma vontade cega nos arrastando por caprichos inexplicáveis. E Nietzsche, sempre provocador, nos alertou sobre o perigo de aceitar verdades impostas sem questioná-las. Afinal, o que chamamos de "sentido" pode ser apenas uma ilusão útil para manter a ordem.

No cotidiano, a insensatez se manifesta nos pequenos detalhes. Nos telejornais, cada crise é tratada como um evento apocalíptico, mas esquecida na semana seguinte. Pessoas passam anos da vida em trabalhos que odeiam, apenas para sustentar um estilo de vida que não escolheram conscientemente. A publicidade nos convence de que precisamos de coisas que nunca sentimos falta antes. Tudo isso é racional? Ou apenas seguimos o fluxo, como folhas num rio sem destino definido?

Talvez a chave para sobreviver ao mundo insensato não seja tentar organizá-lo, mas aprender a dançar com o caos. Em vez de buscar verdades definitivas, podemos aceitar a complexidade e o paradoxo como parte da experiência humana. Como diria Camus, a única resposta genuína ao absurdo da existência é a revolta – mas não a revolta destrutiva, e sim a recusa em se deixar levar por uma lógica que não é nossa.

Então, o que fazer diante desse espetáculo desconcertante? Talvez a resposta esteja em rir um pouco mais, questionar um pouco mais e, sobretudo, escolher o próprio caminho, mesmo que ele pareça insensato para os outros. Afinal, se o mundo não faz sentido, por que não criar o nosso próprio?

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Borboletas no cérebro

Um ensaio filosófico sobre pensamentos que voam, pousam, desaparecem – e às vezes nos transformam.

Outro dia, no meio de uma conversa boba sobre o que comer no jantar, senti uma ideia bater asa dentro da cabeça. Não era nada articulado. Era como aquela sensação de estar quase lembrando o nome de alguém. Um lampejo, um movimento súbito, como se algo se agitasse lá dentro — e fosse embora antes que eu pudesse segurar. Fiquei parado. “Borboletas no cérebro”, pensei. E assim fiquei, rindo sozinho da imagem.

Borboletas no cérebro: uma metáfora? Um diagnóstico poético? Talvez uma teoria mental que faltava. Acontece com frequência. Estamos vivendo algo banal — lavando louça, esperando o elevador, escovando os dentes — e de repente blip, um pensamento que parece não vir de nós mesmos. Como se uma parte do universo invadisse o nosso crânio com suas próprias intenções. É o pensamento que não obedece ao comando, o que chega por capricho, como se dissesse: "Não é você quem me pensa, sou eu que venho te visitar".

A leveza do pensamento involuntário

Nietzsche, lá em Além do Bem e do Mal, diz que os pensamentos vêm quando eles querem, e não quando nós queremos. E ele vai além: “É uma falsificação pensar que somos os que pensam. O pensamento nos atravessa”. Se é assim, então talvez o cérebro seja mesmo um jardim — e os pensamentos, borboletas que vêm de fora, param um pouco e depois seguem voo.

Isso muda tudo. Porque estamos acostumados a ver a mente como um comando central. Um lugar de controle. Mas e se a maior parte do que nos faz ser quem somos vem de movimentos delicados, acidentais e imprevisíveis? E se somos mais casa de passagem do que donos da razão?

O risco de prender as asas

Há quem tente organizar tudo. Domesticar cada borboleta como se fosse planilha. Rotina, método, produtividade, café às 6h43. Claro, é útil. Mas nesse controle, há um risco: espantar o que é leve. Borboletas não pousam em motores barulhentos. Pensamentos profundos também não florescem entre barulhos e obrigações repetitivas.

Às vezes, precisamos de silêncio, sombra, ou até tédio, para que algo raro nos visite. Não é à toa que muita gente tem ideias boas no banho, ou ao olhar pela janela do ônibus. Outro dia quando estava deitado quase acordando, naquela momento vieram pensamentos, vieram ideias com problemas e em seguida veio a solução, olha só que coisa louca, pois é o que chamam de incubação criativa. Então entendi, quando o mundo perde o foco e a cabeça pode vagar — aí sim, as asas batem.

Pensamento ou transformação?

Nem toda borboleta é só enfeite. Algumas vêm, pousam, abrem as asas, e deixam traços. Um pensamento pode mudar o curso de uma vida. Pode ser o estalo de alguém que decide largar tudo e ir morar no mato. Pode ser a lembrança de uma avó, que reaparece com cheiro de bolo e silêncio reconfortante. Pode ser uma frase lida sem querer, que reorganiza tudo por dentro.

Essas borboletas não são só visitantes. Elas depositam ovos. E desses ovos, nascem outras coisas: novas visões, decisões, renascimentos. A vida é menos um projeto e mais uma metamorfose em cadeia.

O voo que nos escapa

Claro, há borboletas que nunca conseguimos nomear. Ideias que só sentimos, mas nunca conseguimos dizer. Elas passam, nos tocam, mas não deixam palavra. Talvez a arte, a poesia, a música, tenham surgido para tentar capturar o que o pensamento puro não consegue.

Lembro sem certeza, que o poeta francês Paul Valéry teria dito que “o cérebro é uma borboleta. Não é o coração que ama, é a imaginação”. Talvez tudo se misture: o pensar, o sentir, o imaginar — e sejam, no fundo, apenas formas de voar.

No fim das contas, viver talvez seja isso: ter borboletas no cérebro e, mesmo sem entender todas elas, abrir espaço para que venham, pousando sobre nossas dúvidas, nossas perguntas sem resposta, e até sobre o silêncio. Porque o que voa, mesmo quando vai embora, às vezes nos transforma. E deixa no ar um rastro leve, mas impossível de esquecer.


domingo, 20 de abril de 2025

Sublime e Belo

 

Quando o feio arrepia e o bonito não basta

Outro dia, no meio de um engarrafamento, o céu ficou de um roxo esverdeado, com nuvens espessas e rasgadas, como se algo do além estivesse prestes a acontecer. As buzinas não importavam mais. Durante aqueles segundos, o mundo parou. Não porque era belo, mas porque era intenso. Aquilo era o sublime, me dei conta depois. Uma força quase violenta, que nos tira o chão e faz o coração se comportar como se estivesse diante do fim – ou de Deus.

A estética, esse ramo da filosofia que trata da sensibilidade, sempre teve uma quedinha por classificar o mundo em bonito e feio. Mas entre essas categorias, há uma fenda antiga, um abismo onde o pensamento cai e treme: é o sublime.

O belo: harmonia que conforta

O belo, segundo a tradição clássica, é aquilo que agrada sem surpresa. Tem simetria, proporção, medida. Aristóteles e Platão já discutiam o belo como um reflexo da ordem ideal. O rosto simétrico, a música com acordes esperados, a paisagem bucólica com vaquinhas no campo. O belo reconcilia, organiza, dá um certo alívio à existência. A arte bela é aquela que a gente consegue pôr numa moldura e pendurar na sala.

Kant diria que o belo é o que agrada universalmente sem conceito. Ou seja, você não precisa explicar por que uma flor é bonita – você simplesmente sente. E nesse sentir há uma paz, uma suspensão temporária do conflito interno. O belo nos lembra que há uma lógica possível para a vida.

O sublime: quando o sensível nos excede

Mas aí vem o sublime, esse intruso na festa do belo. Kant também falou dele, mas com outro tom. O sublime não é o que agrada, é o que abala. Montanhas gigantescas, tempestades em alto-mar, uma catedral gótica com vitrais que parecem estourar o teto. O sublime é o que excede a nossa capacidade de apreensão imediata. É o sentimento de pequenez diante de algo que nos atravessa.

E antes de Kant, quem deu um empurrão definitivo nessa distinção foi Edmund Burke, no seu tratado "Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo" (1757). Para Burke, o belo está ligado ao amor, à delicadeza e à harmonia. Já o sublime está ligado ao medo – principalmente o medo do poder, da dor e da morte. Mas é um medo que encanta. O sublime, segundo ele, surge quando somos tomados por uma sensação de ameaça distante, segura o bastante para que a gente sinta prazer no pavor. Burke foi ousado ao afirmar que o que realmente nos arrebata não é o que nos agrada, mas o que nos amedronta e nos deixa sem palavras.

O sublime moderno: cinema, ruínas e explosões

Hoje, o sublime se esconde onde menos se espera. Um filme como 2001: Uma Odisseia no Espaço nos lança nessa vertigem estética. Há momentos em que não entendemos nada e, ainda assim, ficamos hipnotizados. A explosão de uma estrela em imagens da NASA, um terremoto, ou mesmo uma cena de rua capturada por um fotógrafo anônimo – tudo isso pode carregar uma força sublime.

As ruínas de uma cidade abandonada também são sublimes: mostram que o tempo vence, que o que achamos sólido é frágil. Há algo de sublime também no silêncio diante da morte, naquela angústia sem resposta. O sublime nos obriga a sair do script.

Filosofia e vida: por que precisamos dos dois?

A estética do sublime nos salva da normose – essa doença do normal que anestesia a alma. Já o belo nos oferece o necessário descanso depois do abalo. Uma vida apenas bela se torna entediante; uma vida apenas sublime seria insuportável.

Nietzsche, embora não usasse esses termos com frequência, provavelmente simpatizaria mais com o sublime. Ele falava da necessidade do caos para gerar uma estrela dançante. Já Simone Weil, em outro registro, diria que o sofrimento (e, com ele, o sublime) nos coloca em contato com o real – aquele que não pode ser decorado com florzinhas.

Então, no fim das contas, talvez a vida seja isso: um passeio entre o espanto e o encanto. Entre o que nos reconforta e o que nos desestabiliza. O sublime nos lembra da grandeza que nos escapa; o belo, da beleza que nos habita. E entre um e outro, vamos vivendo – e tentando entender por que o céu às vezes fica roxo e a gente chora sem saber o motivo.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Filosofia da Gamificação

Outro dia, percebi que estava ganhando pontos por escovar os dentes. Sim, pontos. O aplicativo me dizia que eu tinha conquistado um “troféu” por manter uma rotina de higiene bucal durante sete dias seguidos. Fiquei meio envergonhado por me sentir orgulhoso disso. Mas ali estava eu, com um sorriso infantil, feliz por um troféu virtual que ninguém mais veria.

Comecei a observar o quanto minha vida estava se parecendo com um jogo. O relógio me diz quando descansar. O celular vibra para que eu me levante. O app de caminhada me dá estrelas. O site de estudos me dá selos. Trabalho com metas, ganho bônus. E o Instagram? Um grande tabuleiro de reconhecimento instantâneo.

A vida virou um game?

A ilusão do controle lúdico

A gamificação vende a ideia de que podemos transformar qualquer tarefa em algo divertido, envolvente, até heroico. É como se a vida real fosse chata demais — e só um verniz de jogo pudesse nos dar sentido. Mas o que isso revela é uma verdade incômoda: estamos cada vez mais precisando de estruturas externas para nos sentirmos motivados.

Nietzsche, que desconfiava de qualquer moral de rebanho, provavelmente sorriria com ironia diante disso. Para ele, o homem deveria ser o criador de seus próprios valores, o “espírito livre”. Mas em vez disso, estamos terceirizando até nosso impulso vital. Não fazemos mais algo porque queremos — fazemos porque ganharemos uma medalhinha.

A pergunta que Nietzsche nos jogaria como uma granada:

Você vive por convicção ou por recompensa?

O jogo como simulacro

Jean Baudrillard também daria sua cartada filosófica aqui. Para ele, vivemos na era dos simulacros — representações que substituem a realidade a ponto de a realidade se tornar irreconhecível. Na gamificação, isso é evidente: você não planta uma horta porque gosta de ver algo crescer, mas porque o app de jardinagem te deu 300 moedas douradas.

A consequência disso? A realidade fica secundária. Os afetos se deslocam. A experiência concreta da vida se esvazia, substituída por efeitos sonoros e recompensas digitais. Como se o que importa fosse o “nível 10 da vida saudável” e não o fato de você ter caminhado num parque e sentido o cheiro da grama molhada.

Lembram quando falamos sobre “simulacro” em vários artigos anteriores? A repetição nos faz reforçar nossos cuidados com o que acontece em nosso entorno, pois queremos viver momento a momento conscientemente.

A estética do progresso

Mas há também algo de belo nisso tudo — e perigoso. A gamificação resgata a estética do progresso. Cada barra que sobe, cada conquista desbloqueada, cada troféu reluzente, tudo isso dá à existência um ritmo quase épico. Mesmo que seja um épico de lavar a louça.

O problema é quando confundimos esse progresso estético com crescimento real. Um nível a mais não significa maturidade emocional. Um selo de “leitor voraz” não garante reflexão profunda. A vida pode estar cheia de conquistas simbólicas e, ainda assim, ser vazia de significado.

Jogar ou ser jogado?

A gamificação, então, nos coloca num dilema existencial curioso: jogar o jogo ou ser jogado por ele? Se somos conscientes do processo, podemos usar os elementos lúdicos a nosso favor. Transformar o cotidiano em algo mais leve, mais criativo. Mas se deixamos que a lógica do jogo invada todos os espaços, perdemos o pulso da vida espontânea — aquela que não precisa de pontos para valer a pena.

É como disse o pensador brasileiro N. Sri Ram, em O Caminho do Discípulo:

Que a vida verdadeira é aquela que flui de dentro, e não aquela que é moldada apenas por estímulos exteriores.

A alma não joga por troféus

Na visão espiritual — não religiosa, mas interior — a vida é compreendida como um processo de desenvolvimento do ser, e não apenas de metas externas. O jogo, nesse sentido, só faz sentido quando nos aproxima da escuta interior. Se nos afastamos de nós mesmos, buscando gratificações instantâneas como se fossem alimento para a alma, corremos o risco de perder o fio sutil que conecta o cotidiano ao sagrado. A espiritualidade lembra que o gesto simples pode ser um rito, a rotina pode ser meditação, e o progresso não se mede em pontos, mas em presença. Talvez a pergunta verdadeira não seja “quantos níveis subi hoje?”, mas sim: “em que medida fui inteiro no que fiz?”

Em busca de sentido além do tabuleiro

Talvez o desafio não seja abandonar a gamificação, mas transcendê-la. Fazer de cada ato um jogo sim, mas um jogo com regras próprias. Não porque um aplicativo mandou, mas porque há algo em nós que desperta com isso: o prazer de agir, o gosto pelo gesto, a beleza do processo em si.

No fim das contas, o jogo da vida não tem placar visível. Os melhores momentos não rendem medalhas. E as missões mais profundas são aquelas que só nós mesmos podemos reconhecer que cumprimos.


sábado, 12 de abril de 2025

Amanhã Como Ontem

Um ensaio sobre a fidelidade ao tempo antigo em tempos de ditadura do novo, sabem como é, coisas da nostalgia...

Tem gente que acorda todos os dias querendo o mesmo café, no mesmo copo, na mesma cadeira da cozinha, com o mesmo silêncio das sete e meia da manhã. E não é por preguiça, tampouco por falta de criatividade. É por devoção. Por fidelidade. Por acreditar que aquilo que foi bom não precisa ser enterrado só porque alguém inventou um aplicativo novo.

Vivemos na era da “ditadura do progresso” — um regime disfarçado de inovação, que impõe a constante necessidade de mudar, atualizar, melhorar, superar. As palavras “antigo”, “velho” e “repetido” tornaram-se quase palavrões no vocabulário moderno. E, no entanto, há quem resista. Há quem sustente que o amanhã pode — e deve — ser como o ontem. Que a repetição não é atraso, mas ritual. Que manter algo como está não é preguiça de pensar, mas uma forma sofisticada de pensar com o coração.

Contra o culto do novo

A modernidade vende uma ideia perigosa: a de que tudo o que é novo é melhor. Como se o simples fato de algo ter vindo depois já o tornasse superior. Mas o que é esse novo que todos perseguem com tanto fervor? Muitas vezes, nada mais que uma variação cosmética do que já existe. Um amanhã ansioso, que não tem tempo de amadurecer porque já quer ser substituído por um próximo amanhã ainda mais “eficiente”.

Quem resiste a isso, quem deseja um amanhã com o cheiro do pão de ontem, é visto como anacrônico. Mas talvez seja apenas alguém que não se ilude. Alguém que, ao invés de correr atrás do tempo como quem persegue um trem desgovernado, escolhe caminhar lado a lado com ele, com passo firme e memória viva.

O valor do eterno retorno

Nietzsche falava do “eterno retorno”, não como uma maldição, mas como um teste de força interior. Seria você capaz de viver a mesma vida, com as mesmas dores e as mesmas alegrias, repetidamente? Muitos recuam diante da ideia. Mas há um tipo de alma — talvez mais sábia, talvez mais amorosa — que responde: sim, eu viveria. Porque o que me aconteceu não foi pouco, não foi banal. Foi verdadeiro.

Para essas pessoas, repetir não é estar preso: é estar em aliança com o que importa. É confiar que certos gestos, mesmo que repetidos mil vezes, não perdem valor. O beijo na testa do filho. A oração da avó. O mesmo caminho até o trabalho com o sol nas costas. Esses momentos não envelhecem — eles se consolidam.

No bairro os domingos são quase imóveis. Cheiro de churrasco, rádio FM no fundo. Ali, ninguém corre. Ninguém quer mudar nada. E quando alguém novo chega, querendo agitar, alguém sempre diz: “Calma. Aqui o tempo é outro.” Não é atraso — é escolha. O amanhã ali já tem dono: é o mesmo de ontem, e ninguém quer despejá-lo.

A fidelidade ao que já foi

Há uma beleza teimosa em manter certas coisas como estão. Cuidar da casa da infância. Usar o mesmo perfume do primeiro encontro. Contar histórias antigas com as mesmas palavras. Trata-se de uma fidelidade rara: não à novidade, mas ao que já mostrou ser digno de permanecer. É quase um ato político — dizer não ao descarte fácil, ao modismo, à velocidade que esmaga o significado.

Como bem dizia o filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, a verdadeira tradição não é repetir por repetir, mas manter viva uma centelha que merece atravessar os tempos. O amanhã como ontem não é nostalgia, é compromisso. Não é regressão, é continuidade.

Finalizando com um toque de silêncio

O progresso grita, mas há quem escute o sussurro do tempo com reverência. Que o amanhã seja como o ontem — não por medo de mudar, mas por amor ao que já foi verdadeiro. E talvez essa escolha, tão silenciosa quanto radical, seja a única forma de resistir a um mundo que confunde velocidade com sentido.

 


sexta-feira, 11 de abril de 2025

Coisas Perdidas

Perdemos coisas todos os dias. Algumas deslizam de nossas mãos e caem no chão, outras se esvaem em lapsos de memória, e há aquelas que nunca percebemos que existiram. São as coisas que escapam ao olhar e se escondem nos vãos do conhecimento. Mas como detectar aquilo que, por definição, é ignorado? Como perceber o que nunca foi visto?

O que os olhos não alcançam

O olhar é seletivo. Captura apenas o que julga importante, aquilo que faz sentido dentro do quadro do já conhecido. Uma sombra projetada sobre a parede pode esconder um detalhe, uma nuvem pode encobrir uma estrela, e um viés mental pode obliterar uma ideia. Isso significa que nossa percepção é, ao mesmo tempo, um farol e um anteparo: ilumina o que deseja e obscurece o que não lhe interessa.

No cotidiano, esse fenômeno ocorre de forma banal. Um amigo passa ao nosso lado e não o reconhecemos porque estamos absortos no próprio pensamento. Um detalhe arquitetônico da cidade onde vivemos por anos pode passar despercebido até que um visitante o aponte. As palavras ditas em um tom mais baixo durante uma conversa podem se perder, assim como nuances emocionais escapam quando estamos focados apenas no conteúdo das frases.

Conhecimento e suas fronteiras

O conhecimento não é apenas uma soma de fatos; é um mapa cheio de zonas em branco. O que sabemos orienta nossa busca, mas também delimita nossos horizontes. Quando um conceito novo emerge, percebemos que faltava algo no entendimento anterior, mas, até então, essa ausência não era sequer intuída.

As ciências nos ensinam isso repetidamente. Durante séculos, acreditava-se que o ar era apenas um espaço vazio, até que se descobriu sua composição química. Da mesma forma, os astrônomos do passado observavam o céu sem imaginar que ali, entre os pontos brilhantes, havia planetas invisíveis aos seus instrumentos. E, mesmo agora, com todo o avanço tecnológico, ainda há mistérios que permanecem além de nossa detecção, seja nas profundezas do oceano ou nas dimensões quânticas da matéria.

O instante sem contagem do tempo

Há momentos em que o tempo parece suspenso, um intervalo onde não há passado nem futuro, apenas um presente expandido. E, paradoxalmente, é nesse espaço sem tempo que lembranças emergem, o presente se intensifica e o futuro se insinua. Um instante de silêncio profundo pode conter toda a memória de uma vida, assim como um olhar pode antecipar um destino.

Muitas vezes, deixamos de perceber esses momentos porque estamos demasiado preocupados em medir o tempo, contá-lo, aprisioná-lo em cronômetros e agendas. No entanto, se nos permitimos habitar esse espaço sem contagem, podemos acessar um universo imenso que se esconde nas entrelinhas da experiência. A sensação de déjà vu, o pressentimento inexplicável, a lembrança que surge do nada — tudo isso aponta para a vastidão que existe além do tempo contado.

Como detectar o que se ignora?

Se o olhar e o conhecimento são limitados, o que nos resta para perceber o imperceptível? A resposta pode estar na atenção ao vazio, no estranhamento, no erro. Algo perdido pelo olhar pode ser detectado quando notamos o que deveria estar lá e não está. Um ruído cortado abruptamente pode revelar um som antes ignorado; uma resposta hesitante pode indicar um pensamento nunca articulado; um padrão que se repete pode apontar para algo que sempre esteve lá, mas nunca foi questionado.

Nietzsche dizia que a filosofia começa quando nos permitimos estranhar o óbvio. Questionar o que parece dado, virar os olhos para onde nunca olhamos antes, escutar o silêncio ao redor das palavras. Às vezes, o que está perdido não precisa ser encontrado, apenas percebido pela primeira vez.


sábado, 5 de abril de 2025

Confidências ao Mar

Numa pescaria me flagrei em profunda meditação. Lancei a linha de pesca no mar, não buscando apenas um peixe — buscando um vestígio de escuta entre mundos. A linha, fina e silenciosa, estendeu-se como um fio místico, conectando minha consciência à vastidão líquida do inconsciente coletivo. É como se o mar, com sua memória abissal, me respondesse sem palavras, apenas com pulsações, correntes e silêncios cheios de sentido. Às vezes, nem preciso lançar nada — basta estar ali, contemplando, e a conversa acontece por dentro, como uma telepatia ancestral entre o humano e o oceano. Talvez a verdadeira pesca não seja de peixes, mas de presenças — e o mar, esse espelho móvel do mundo interior, nos devolve apenas aquilo que temos coragem de escutar.

Algumas conversas só fazem sentido diante do mar. Não porque ele tenha respostas, mas porque sua vastidão absorve tudo sem pressa, sem julgamento. Quem nunca, diante das ondas, murmurou um segredo, um arrependimento ou um desejo quase sem perceber? O mar é um confidente silencioso, um ouvinte cósmico que acolhe sem perguntar nada em troca.

O que nos leva a confiar nossos pensamentos ao mar? Talvez seja sua constância indiferente. Ele está sempre ali, em movimento, e ao mesmo tempo, eterno. Podemos gritar nossos anseios ao vento, e ele os carrega para longe, dissipando angústias como se fossem espuma. Ou podemos sussurrar baixinho, apenas para que a água toque nossos pés e nos lembremos que, apesar de tudo, continuamos de pé.

Nietzsche diria que há algo dionisíaco nesse impulso. O mar nos embriaga com sua dança sem fim, sua música hipnótica. Ele nos lembra que somos parte de algo maior, e que nossos dramas individuais são apenas gotas em sua imensidão. Já Fernando Pessoa, com sua melancolia, talvez nos sugerisse que falar com o mar é dialogar com nosso próprio abismo. O mar não responde, e, no entanto, nos transforma.

Quando a autoestima está em baixa, o movimento incessante das ondas pode inicialmente nos enfadar. Parece que elas zombam da nossa imobilidade, do nosso desânimo. Mas, pouco a pouco, começamos a sentir sua presença de outra forma. O mar não se cansa, não se altera por nossas tristezas; ele segue em seu compasso eterno. E é justamente essa constância que nos acolhe. Aos poucos, nossa energia se ajusta ao ritmo das marés, e a mesma força que parecia irritante começa a renovar algo dentro de nós. Como se, ao aceitar o fluxo do mar, também aprendêssemos a aceitar o nosso próprio.

O mar, porém, também pode ser assustador. Ele exige respeito. Seu tamanho e sua força nos lembram de nossa pequenez e de nossa vulnerabilidade. Mas é nesse respeito que aprendemos algo essencial: a nos respeitarmos e a exigirmos o respeito que merecemos. Quando o respeito se dissolve, tudo se torna incerto e amedrontador, como um mar revolto sem controle. Aprender a reconhecer esses limites é parte do que o mar nos ensina, e, se soubermos escutá-lo, ele nos guia com sua força e sabedoria inabaláveis.

Há algo de paradoxal nessa relação. Buscamos o mar para confidenciar, mas não para obter respostas diretas. Ele nos devolve apenas seu ritmo contínuo, sua brisa carregada de sal e silêncio. E, de alguma forma, isso basta. Talvez seja porque, no fundo, não queremos soluções prontas. Queremos apenas que alguém, ou algo, escute sem nos interromper.

Assim, seguimos voltando ao mar, sempre. Como aqueles que escrevem cartas e nunca as enviam, sabemos que nossas palavras desaparecerão na maré. Mas, ao partilhá-las, algo em nós se torna mais leve. E talvez, só talvez, seja esse o verdadeiro sentido das confidências: não o de serem respondidas, mas o de serem libertadas.


quarta-feira, 26 de março de 2025

Parar o Tempo

Outro dia, olhando para o relógio, me peguei naquele pensamento meio tolo, meio profundo: e se eu pudesse parar o tempo? Não no sentido dramático de um filme de ficção científica, onde tudo congela enquanto eu caminho soberano entre figuras estáticas. Mas no sentido real: deter o fluxo que me arrasta, interromper a marcha silenciosa que transforma agora em ontem e futuro em passado.

A ideia de parar o tempo é quase um reflexo de nossa angústia existencial. Queremos segurar os instantes de felicidade, prolongar a juventude, esticar os momentos em que nos sentimos vivos. Mas também queremos parar o tempo quando estamos diante da dor, quando precisamos de um intervalo entre um golpe e outro da vida.

Filosoficamente, o tempo sempre foi um enigma. Santo Agostinho já dizia: "Se ninguém me pergunta o que é o tempo, eu sei; mas se me perguntam e tento explicar, já não sei mais." Ele parece óbvio na experiência, mas escapa na tentativa de definição. Bergson o diferenciava entre o tempo da ciência, que mede, e o tempo da consciência, que flui. O primeiro é externo e objetivo; o segundo, interno e subjetivo. E é justamente nesse segundo tempo que talvez possamos encontrar a resposta para a nossa busca de pausa.

No entanto, o desejo de parar o tempo pode ser ilusório, pois ele é a própria substância da vida. Como apontou McTaggart, em sua teoria sobre a irrealidade do tempo, a percepção temporal pode ser uma construção da mente, uma forma de organizar eventos em sequência. Se o tempo é uma ilusão, então o que chamamos de "parar" pode ser apenas uma mudança na forma como o experienciamos. Isso explicaria por que momentos de grande intensidade emocional parecem se alongar, enquanto a rotina diária escorre velozmente pelos dias.

Nietzsche, por sua vez, propôs uma maneira radical de encarar o tempo com sua ideia do eterno retorno. Se cada momento da vida estivesse fadado a se repetir infinitamente, como reagiríamos? Fugiríamos do tempo, ansiando por sua interrupção, ou aprenderíamos a abraçá-lo, desejando que cada instante fosse digno de ser vivido eternamente? Para Nietzsche, parar o tempo seria uma ilusão própria dos fracos; o verdadeiro desafio seria vivê-lo de tal maneira que pudéssemos desejar sua repetição eterna sem arrependimentos.

Na contemporaneidade, a tecnologia nos oferece novas perspectivas sobre parar o tempo. O conceito de slow living, por exemplo, propõe uma desaceleração intencional da vida em resposta à cultura da hiperprodutividade. Carl Honoré, em In Praise of Slow, argumenta que parar o tempo não é um ato literal, mas sim uma escolha consciente de vivenciar cada momento sem a pressa imposta pelo ritmo frenético da modernidade. Redes sociais, notificações constantes e a pressão por eficiência fazem o tempo parecer escapar mais rápido. O verdadeiro desafio contemporâneo não é parar o tempo fisicamente, mas sim resgatar a profundidade da experiência cotidiana, aprendendo a saborear o presente sem ansiedade pelo próximo instante.

Se parar o tempo significa interromper sua contagem, é impossível. Mas se significa vivê-lo de maneira plena, absorver cada instante sem deixá-lo escapar por entre os dedos, então talvez seja viável. Os místicos fazem isso na contemplação. Os amantes, no abraço que suspende o mundo ao redor. O artista, no instante em que a inspiração o arrebata.

N. Sri Ram dizia que o tempo não é um inimigo, mas uma dimensão da experiência. Ele pode ser sentido de forma diferente dependendo de como nos relacionamos com ele. Quando nos prendemos ao passado ou nos angustiamos com o futuro, ele nos escraviza. Quando vivemos intensamente o presente, ele parece se dilatar.

Talvez, então, parar o tempo não seja uma questão de detê-lo, mas de mergulhar nele. Não tentar segurá-lo com força, mas flutuar em sua corrente com leveza. No final, parar o tempo pode ser menos sobre segurá-lo e mais sobre aprender a estar nele sem pressa.


terça-feira, 25 de março de 2025

Concisão e Profundidade

Outro dia, numa conversa com um amigo, ele soltou uma frase curta, mas que me fez pensar o resto da noite. Nada de discursos longos, explicações detalhadas ou floreios desnecessários—apenas uma sentença precisa, carregada de significado. Fiquei ali, olhando para o copo, mastigando aquelas palavras como se fossem um enigma. E percebi que algumas pessoas têm esse dom raro: falam pouco, mas dizem muito.

Ser conciso e profundo ao mesmo tempo é uma arte que poucos dominam. Enquanto muitos enchem o ar com palavras que evaporam sem deixar rastro, outros conseguem condensar um mundo inteiro em uma única frase. Mas como isso acontece? O que torna certas palavras tão impactantes?

Concisão e Profundidade: O Peso das Palavras Bem Escolhidas

Há quem fale muito sem dizer nada e quem diga tudo em poucas palavras. Os primeiros preenchem o silêncio com ruídos, os segundos fazem do silêncio um palco para o essencial. Ser conciso e profundo é uma arte difícil: exige saber o que cortar sem mutilar o sentido, o que deixar implícito sem ser obscuro, o que revelar sem ser óbvio.

A concisão não é apenas economia verbal, mas um refinamento do pensamento. Quem domina essa habilidade não apenas reduz o excesso, mas condensa a substância. Como uma escultura que nasce do mármore bruto, a ideia lapidada se impõe pela precisão. Porém, a profundidade dá peso a essa economia. Dizer pouco sem tocar fundo é ser raso. A profundidade exige que as palavras, mesmo escassas, abram camadas de significado, como ecos que se expandem no tempo.

Nietzsche, mestre em frases lapidares, dizia que um bom pensamento deve ser como um raio: ilumina de repente e queima ao mesmo tempo. Assim, o impacto da concisão e profundidade se dá porque provoca, inquieta, obriga o interlocutor a continuar o pensamento por conta própria. Talvez por isso, sentenças curtas, quando bem formuladas, ficam na memória por uma vida inteira.

No fundo, ser conciso e profundo é respeitar o tempo do outro, oferecendo o máximo no mínimo, sem pressa e sem desperdício. É o gesto de quem não fala para preencher o vazio, mas para abrir um espaço de reflexão.


Retornos e Insistências

Sabe aquele momento em que você se vê voltando para o mesmo ponto, mesmo depois de tantas voltas? Talvez seja um relacionamento que insiste em reaparecer, um erro que se repete ou aquela sensação incômoda de que a vida está girando em círculos. Mas e se, em vez de círculos, estivéssemos em espirais? Se os retornos não fossem simples repetições, mas movimentos que nos levam a uma nova camada da experiência?

A insistência da vida em nos fazer reviver certas situações não é apenas um acaso teimoso. Pode ser um mecanismo oculto, uma forma de aprendizado que só percebemos quando olhamos para trás. Friedrich Nietzsche chamaria isso de eterno retorno, uma ideia assustadora e libertadora ao mesmo tempo: viveríamos tudo de novo, exatamente do mesmo jeito, repetindo cada escolha, cada erro, cada acerto. Mas se há repetição, há também a oportunidade de olhar diferente, de fazer diferente.

O Labirinto que Nos Ensina

Imagine um labirinto onde você segue por um corredor e chega a um beco sem saída. Você volta, escolhe outro caminho e, adivinhe, mais um beco sem saída. Mas, ao retornar, algo mudou: agora você carrega o conhecimento dos caminhos errados. Não é a mesma experiência de antes, porque você não é o mesmo. A insistência do erro pode ser, na verdade, um convite ao entendimento.

Na vida prática, quantas vezes tentamos insistir em algo — um projeto, uma relação, um sonho — e fracassamos? Pode parecer perda de tempo, mas e se estivermos apenas afinando a sintonia? Sri Ram, pensador da tradição teosófica, dizia que a verdadeira transformação vem do reconhecimento da repetição. Não basta errar diferente, é preciso compreender o padrão.

Insistência ou Destino?

Muitos enxergam os retornos como sina, como um roteiro já escrito. Mas há também a visão de que, a cada repetição, moldamos um futuro distinto. A questão é: estamos insistindo por teimosia ou por intuição? O perigo está em confundir persistência com cegueira. Talvez seja essa a sabedoria dos retornos: eles testam nossa capacidade de enxergar o que antes ignorávamos.

Se tudo retorna, se insistimos nos mesmos passos, o que realmente está mudando? Talvez a resposta esteja menos no caminho e mais em quem o percorre.


quinta-feira, 13 de março de 2025

Reflexão Defeituosa

O Erro Como Espelho da Consciência

Outro dia, enquanto tentava lembrar onde tinha deixado as chaves, percebi que minha memória jogava comigo um jogo estranho. Eu tinha certeza absoluta de que as havia colocado na mesa, mas lá não estavam. A confusão me fez pensar: quantas vezes nossa mente nos engana, e pior, quantas vezes acreditamos cegamente no que pensamos? O problema não é apenas o erro em si, mas a ilusão de que estamos sempre certos. Eis o ponto: nossa reflexão pode ser defeituosa, e é exatamente isso que a torna fascinante.

O Mito da Consciência Clara

Acreditamos que pensar bem é pensar de forma lógica, coerente, cristalina. A razão iluminista nos prometeu um intelecto afiado, capaz de cortar a névoa da ignorância. No entanto, na prática, nossas reflexões estão cheias de vieses, contradições e desvios. Nietzsche já apontava essa falha estrutural quando dizia que a razão muitas vezes não passa de um advogado defendendo nossas paixões. O que chamamos de reflexão pode ser apenas uma justificativa requintada para aquilo que já queremos acreditar.

A psicologia cognitiva reforça essa ideia ao demonstrar que nossa mente frequentemente preenche lacunas de percepção com suposições. Assim, não apenas vemos o que queremos ver, mas também pensamos o que queremos pensar. A reflexão defeituosa não é um acidente, mas um modo de funcionamento do próprio pensamento.

O Erro Como Estrada

Se nossas reflexões são defeituosas, qual a saída? Talvez a resposta esteja no próprio erro. Em vez de temê-lo ou negá-lo, podemos usá-lo como ferramenta. Kierkegaard nos lembraria que o desespero pode ser um ponto de partida para o autoconhecimento. Quando percebemos que nossa reflexão falhou, temos a chance de reconstruí-la melhor.

A filosofia oriental, em especial o pensamento de N. Sri Ram, sugere que a verdade não é algo fixo, mas um horizonte em constante movimento. Assim, o erro não é um abismo, mas uma ponte. Cada falha no pensamento pode ser um convite para expandir a consciência.

O Paradoxo do Pensar

Se pensar é inevitavelmente falhar, então talvez o verdadeiro sábio seja aquele que acolhe a imperfeição do pensamento. O perigo não está em errar, mas em acreditar que se está sempre certo. Afinal, as chaves que achamos que deixamos na mesa podem muito bem estar no bolso o tempo todo – só não paramos para conferir.

A reflexão defeituosa, longe de ser um problema, é a própria condição do pensar. Quem busca um pensamento puro e sem falhas se esquece de que é o atrito do erro que nos empurra para frente. No final das contas, talvez a sabedoria seja apenas a arte de errar de maneira mais interessante.


terça-feira, 11 de março de 2025

Infinitivos e Gerúndios

Pensar Pensando e os Modos de Existir

A gente sempre está entre começar algo e continuar fazendo. Entre o desejo de ser e o ato de estar sendo. No fundo, a forma como pensamos já carrega em si um tempo, um modo, uma disposição. Há quem viva no infinitivo, sonhando sem executar. Outros se perdem no gerúndio, ocupados demais fazendo para perceber para onde estão indo. Mas será que o pensamento também oscila entre essas formas? Será que somos condicionados por uma estrutura linguística a viver mais no futuro ou no presente contínuo?

O infinitivo é uma promessa. Pensar, agir, decidir, mudar. Ele paira no ar como um horizonte de possibilidades, um impulso inicial que não se compromete com a realização. "Eu preciso começar a escrever um livro" ou "Quero aprender a tocar piano" são frases que moram no limbo do que poderia ser. É a mente aberta para a escolha, mas também para a fuga. No infinitivo, o pensamento é potencialidade, mas também hesitação. Não se compromete com a sujeira do real. Fica ali, polido e perfeito como uma ideia antes de ser testada pelo mundo.

Já o gerúndio é movimento. É estar fazendo, estar sendo, estar sentindo. Ele não dá margem para o adiamento: "Estou mudando", "Estou aprendendo", "Estou construindo". A fluidez da vida aparece aqui, porque o gerúndio nos coloca dentro do processo, e o processo nunca é estático. Mas há um risco: o gerúndio também pode ser uma armadilha de continuidade infinita, um ciclo onde a ação nunca se conclui. "Estou tentando", "Estou resolvendo", "Estou esperando" — frases que indicam que algo está acontecendo, mas talvez nunca chegue a acontecer de fato.

O pensamento humano parece oscilar entre esses dois estados. Alguns filósofos construíram sistemas inteiros baseados na ideia de um pensamento no infinitivo: Platão, por exemplo, enxergava a realidade como um reflexo de um mundo ideal, uma perfeição nunca plenamente alcançada. Já pensadores como Nietzsche preferiam o gerúndio — um eterno devir, uma existência que se faz e se refaz a cada instante.

E nós? Será que pensamos mais no infinitivo, sempre projetando um futuro que nunca chega? Ou vivemos no gerúndio, presos a processos que nunca se resolvem? Talvez a resposta esteja em aprender a transitar entre os dois. Há momentos para o infinitivo — para desejar, para planejar, para conceber a ideia pura. E há momentos para o gerúndio — para agir, para experimentar, para sentir o peso do tempo nas mãos.

Pensar é, afinal, um jogo de tempos verbais. Há quem prefira permanecer na promessa, e há quem não consiga sair do fazer contínuo. Mas talvez o segredo seja encontrar a justa medida entre pensar e estar pensando — entre conceber e construir, entre ser e estar sendo.