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quinta-feira, 31 de julho de 2025

Leviatã e o Poder

Quando o monstro nos representa

 

Há dias em que basta assistir a uma sessão do parlamento ou a uma reunião de condomínio para que a gente entenda por que alguém, em algum momento da história, pensou ser melhor concentrar o poder nas mãos de um único soberano do que deixar todo mundo decidir tudo junto. Em meio ao caos cotidiano, à gritaria dos interesses e à vontade desencontrada das pessoas, surge a pergunta: quem vai nos proteger de nós mesmos? Foi com esse dilema que Thomas Hobbes criou a imagem do Leviatã, uma espécie de monstro político formado pela soma de todos nós.

 

O monstro necessário

O nome vem de uma criatura bíblica, um ser gigantesco das profundezas, incontrolável, assustador. Mas Hobbes não o invoca para aterrorizar — ao contrário, para proteger. Em seu livro Leviatã (1651), ele defende que, sem um poder soberano que concentre as decisões, a humanidade mergulha no estado de natureza, onde todos vivem em guerra contra todos. Ali, segundo ele, a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”.

Hobbes parte de um princípio pessimista, mas realista: os seres humanos são movidos pelo medo, pela autopreservação e pelo desejo de poder. Nesse cenário, um contrato social é necessário — um pacto em que todos abrem mão de parte de sua liberdade em troca de segurança. E o Leviatã, o soberano absoluto, é quem garante a ordem e o cumprimento desse pacto. Ele não é eleito para ser simpático, mas para impedir que o mundo vire um campo de batalha de interesses.

 

O Leviatã nos dias de hoje

O problema é que, ao longo da história, o Leviatã cresceu. Em vez de ser apenas um protetor contra o caos, muitas vezes se tornou um opressor. O que era para proteger, passou a sufocar. E o que era para unir, passou a dividir. A crítica contemporânea aponta: quando o Estado concentra demais, torna-se também o autor da violência — e não seu antídoto. Pensadores como Michel Foucault vão mostrar que o Leviatã moderno não só reprime, mas molda, disciplina, define quem somos. O monstro já não nos protege apenas: ele nos fabrica.

Mas o mais inquietante talvez seja pensar que o Leviatã não é um ser externo. Ele é composto pelos corpos dos cidadãos. Cada decisão nossa, cada medo que temos, cada vez que pedimos mais segurança e menos liberdade, estamos alimentando o monstro. Ele cresce com a nossa delegação. E é aqui que o pensamento de Hobbes se atualiza de forma perturbadora: o Leviatã é o espelho do nosso desejo de ordem — mesmo quando isso nos custa autonomia.

 

Nietzsche, o Leviatã e a vontade de poder

Nietzsche, que rejeitava tanto o Estado quanto qualquer instância que se colocasse como verdade absoluta, provavelmente olharia para o Leviatã com desprezo e ironia. Em Assim falou Zaratustra, ele escreve: “O Estado é o mais frio de todos os monstros frios. Ele mente friamente; e esta é a mentira que escapa de sua boca: 'Eu, o Estado, sou o povo'.” Para Nietzsche, o Leviatã hobbesiano representa a negação da vontade individual, da potência criadora de cada ser humano. É uma máquina de mediocridade, de nivelamento, de obediência.

Se Hobbes acha que o Leviatã é a salvação contra o caos, Nietzsche vê no caos a chance de criação, de superação, de liberdade autêntica. O Leviatã, com sua promessa de segurança, paralisa o impulso vital. Ele evita o pior, sim, mas também impede o melhor.

 

E se o Leviatã estiver dentro de nós?

A grande virada filosófica pode estar em perceber que o Leviatã não é só uma metáfora do Estado. Ele também representa nossa própria tentativa de nos dominar. Criamos regras internas, repressões, identidades rígidas para dar conta do medo que temos de nós mesmos. Talvez o maior Leviatã não seja o governo nem a autoridade externa, mas aquela voz que diz “seja produtivo”, “seja normal”, “obedeça”.

Por isso, pensar o Leviatã hoje é refletir sobre o equilíbrio entre proteção e liberdade, ordem e potência, segurança e criação. E talvez, mais importante ainda, é perceber que o monstro que nos governa também é feito de nossas escolhas, nossos silêncios e nossas entregas.


sábado, 26 de julho de 2025

Devaneio Estético

Um ensaio filosófico com pés descalços e olhos abertos

Às vezes, entre o barulho do trânsito e a pressa dos dias, nosso olhar se perde num detalhe inútil: uma rachadura bela numa parede antiga, o modo como a luz atravessa um copo com água, a coreografia casual de folhas levadas pelo vento. Não estávamos procurando nada disso. Mas algo dentro de nós suspendeu o tempo e, por segundos, vivemos num devaneio estético — um mundo sem função, sem compromisso, sem resposta. Só o ver pelo ver, o sentir pelo sentir.

Mas o que é esse instante em que o mundo parece se justificar apenas pela sua aparência? O devaneio estético, diferente da contemplação artística dirigida, é um colapso suave do senso prático, um mergulho involuntário no supérfluo que se revela essencial. Não é preciso museu nem pintura famosa: o devaneio estético nasce no inesperado, no cotidiano comovente, no toque leve do real que se mostra de um jeito novo. Ele é uma brecha na funcionalidade das coisas.

A percepção que dança

Ao contrário da percepção utilitária, que busca informações, caminhos e soluções, o devaneio estético nos retira da lógica de uso. Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, já havia intuído que o devaneio é uma espécie de descanso da razão, onde a imaginação ganha sua própria casa. Mas quando esse devaneio é estético, ele não apenas imagina — ele vê, escuta, toca, sente. É uma experiência encarnada, mas sem propósito.

O filósofo francês Merleau-Ponty também pode nos ajudar aqui. Para ele, o corpo é o ponto zero da experiência, e é por ele que o mundo se revela. No devaneio estético, não estamos fora do corpo, mas mais intensamente dentro dele: é o corpo que nos guia até o instante belo, não a mente que o planeja. Por isso, o devaneio estético é sempre uma surpresa. Ele nos encontra — não o contrário.

O inútil que funda o sentido

Vivemos cercados de discursos sobre produtividade, otimização e finalidade. Mas o devaneio estético nos devolve o direito ao inútil. E é aqui que a filosofia pode se rebelar contra sua própria sisudez: pensar o estético como forma de existência sem teleologia, onde o fim não é exterior à própria experiência, mas está nela. Como dizia Oscar Wilde, “toda arte é completamente inútil” — mas é justamente aí que está sua potência.

Em tempos de algoritmos que preveem nosso gosto, o devaneio estético é uma insubmissão silenciosa: ele escapa ao cálculo, ao marketing, à lógica da tendência. Ele é pessoal, íntimo e intransmissível. É o momento em que não nos tornamos consumidores de beleza, mas cúmplices dela.

O ser que se desarma

O devaneio estético exige um certo esvaziamento. Não se entra nele com o peito inflado ou a mente armada. É preciso um tipo de disponibilidade, quase uma ingenuidade. Nisso, ele se aproxima de uma experiência espiritual, ainda que sem dogma. É uma forma de humildade diante do real. Ver a beleza não porque ela se impõe, mas porque nos deixamos afetar.

Nietzsche dizia que só poderíamos criar beleza quando houvesse em nós um caos. O devaneio estético é talvez a dança efêmera desse caos com a forma — um instante onde o mundo se apresenta sem necessidade de explicação, e nós, por um momento, paramos de querer explicá-lo.

Epílogo despretensioso

Talvez o devaneio estético não nos torne mais sábios, nem mais produtivos. Mas ele nos faz lembrar que existe algo em nós que ainda é capaz de maravilhamento. E isso, por si só, já vale o instante. Um instante que, quem sabe, seja o mais verdadeiro dos dias.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Pressão Social


Quando Dizemos “Sim” Sem Saber Por Quê

 

Tem dias que a gente diz "sim" sem pensar. Aceita convites que não quer aceitar, ri de piadas que nem achou graça, compra o que não precisa e posta o que não sente. E quando alguém pergunta “por que você fez isso?”, vem aquele silêncio constrangedor — não sabemos ao certo. Talvez porque “todo mundo faz”, ou porque “ia pegar mal” se não fizéssemos. A verdade é que, muitas vezes, não somos nós quem decidimos: é a pressão social que decide por nós.

 

A força invisível do “todo mundo”

A pressão social é uma espécie de gravidade invisível. Não vemos, mas sentimos. Ela pesa sobre nossas escolhas, nos fazendo mover na direção da maioria. A criança que aprende a se comportar "como os outros" para não ser excluída da turma. O adolescente que muda o jeito de falar, de vestir e até de pensar para se encaixar. O adulto que escolhe a profissão ou a aparência de acordo com expectativas que nem sempre compreende — só obedece.

Essa força foi demonstrada de maneira clássica no Experimento de Conformidade de Solomon Asch, em 1951. No teste, participantes eram convidados a comparar o tamanho de linhas desenhadas em cartões — uma tarefa objetiva e simples. Mas quando todos os outros presentes (atores disfarçados) davam respostas claramente erradas, o participante real frequentemente cedia à maioria, mesmo sabendo que os outros estavam errados. O estudo revelou que mais de 70% dos indivíduos, em algum momento, negaram sua própria percepção apenas para não se opor ao grupo. A lição é perturbadora: a pressão social tem o poder de silenciar até mesmo o que vemos com os nossos próprios olhos.

Décadas depois, em um cenário muito diferente — o das redes sociais —, novos estudos confirmam o poder dessa influência. Pesquisas em neurociência realizadas pela Universidade da Califórnia (UCLA, 2016), com adolescentes, mostraram que as curtidas em fotos ativam no cérebro o sistema de recompensa associado a prazer e aprovação social, o mesmo que responde a estímulos como comida e até drogas. Isso faz com que comportamentos sejam repetidos não porque fazem sentido, mas porque são aprovados pelo grupo. A lógica das redes amplifica o experimento de Asch: agora, em vez de um grupo pequeno numa sala, temos milhões de “atores” moldando nossas decisões, gostos e até valores — com algoritmos no papel de diretores.

Mas o mais inquietante é isso: muitas vezes obedecemos sem saber exatamente o que estamos obedecendo. Como se a vida nos desse um roteiro já pronto, e a gente atuasse sem nunca ter lido as entrelinhas. A pressão social, nesse sentido, é uma obediência sem reflexão.

 

Fazer sem entender: o eclipse da consciência

Há um perigo aí. Quando fazemos algo que não entendemos, abrimos mão de uma parte de nós mesmos. Agir sem consciência é viver em terceira pessoa. Não somos autores, somos personagens. É como se estivéssemos dentro de um teatro, seguindo o que o público quer ver, mesmo sem compreender o enredo.

Nietzsche nos alertou para esse perigo ao criticar o que chamava de “moral de rebanho” — uma moralidade que nasce não da força interior, mas da necessidade de aceitação. Para ele, o homem que vive para agradar os outros abandona sua própria potência criadora, tornando-se um reflexo das vontades alheias. Em vez de afirmar a própria singularidade, repete os gestos dos muitos. Em Assim falou Zaratustra, ele convida à superação desse estado, chamando o indivíduo à responsabilidade por si mesmo, à criação de valores próprios.

 

Pressão ou pertencimento?

É importante notar: a pressão social nem sempre é um vilão. Faz parte da construção da convivência humana. Se cada um seguisse apenas sua vontade, talvez não houvesse sociedade. Mas quando esse pertencimento exige o abandono da reflexão, estamos diante de um problema.

O pensador brasileiro Rubem Alves uma vez escreveu que “obedecer a ordens sem compreender é uma forma de loucura socialmente aceita”. E é isso que a pressão social muitas vezes faz: nos ensina a ser “normais”, mesmo que isso custe a nossa singularidade.

 

Uma saída: escutar o desconforto

Como escapar disso? Talvez o caminho esteja na escuta do desconforto. Sempre que uma escolha não faz sentido, vale perguntar: “Isso é mesmo meu desejo ou estou apenas evitando ser julgado?” Essa pergunta simples pode nos devolver a autoria da própria vida.

Num mundo onde quase tudo nos empurra para o automático, pensar é um ato de resistência. E resistir à pressão social não é virar um eremita antissocial — é apenas aprender a viver com consciência, mesmo dentro do coletivo.

No fim das contas, talvez devêssemos nos perguntar menos “o que é certo fazer?” e mais “por que estou fazendo isso?” Nesse intervalo entre a pergunta e a resposta, nasce a liberdade.


terça-feira, 22 de julho de 2025

Armadilha dos Fracos

...segundo Nietzsche

 

Você já reparou como, às vezes, as pessoas mais frágeis são as que mais manipulam? Não com força, não com argumentos, mas com uma espécie de chantagem emocional que prende os outros em culpa, dever ou piedade. É aquela tia que vive doente e sempre faz você se sentir mal por não visitá-la mais. É o colega de trabalho que parece inofensivo, mas sabota silenciosamente todo projeto que o faz se sentir ameaçado. Essas pessoas não são más no sentido clássico. Mas criam armadilhas. Nietzsche as conhecia bem. E talvez tenha sido um dos primeiros a nomear essas estratégias com a clareza de quem entende que a moral também pode ser uma tática de guerra — dos fracos contra os fortes.

 

A armadilha como invenção da fraqueza:

Nietzsche, especialmente em obras como A Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal, faz uma distinção fundamental entre a moral dos senhores e a moral dos escravos. Para ele, os fortes — aqueles que criam valores a partir de sua potência vital — são espontâneos, afirmativos, agem. Já os fracos, ressentidos pela impossibilidade de exercer sua vontade de poder, constroem valores reativos: negam, condenam, moralizam.

A armadilha dos fracos, portanto, é um sistema de valores baseado no ressentimento. Ao não poderem ser fortes, erguem como virtudes aquilo que os protege: humildade, obediência, piedade, sofrimento. E mais: fazem com que os fortes se sintam culpados por sua própria força. Criam uma moral que aprisiona. E quem não se enquadra, é tido como cruel, egoísta, “sem compaixão”.

 

Ressentimento e poder invertido:

Nietzsche vê com clareza: o fraco não quer igualdade, quer inversão. Quer que o forte se curve, peça desculpas, peça permissão para viver sua potência. O ressentido — diz ele — é perigoso porque sua alma gira em torno da vingança. E sua vingança é moral. A religião, segundo Nietzsche, foi uma das formas mais eficazes dessa armadilha: “Bem-aventurados os pobres de espírito”, diz o Sermão da Montanha. Mas, no fundo, essa beatitude é uma inversão rancorosa: como não posso ser grandioso, direi que os grandiosos são pecadores. E esperarei, com fervor disfarçado, que caiam.

 

A compaixão como faca de dois gumes:

Nietzsche não condena a compaixão como emoção ocasional, mas sim como moral organizada. Uma moral baseada na compaixão constante aprisiona. “Cuidado com os que sofrem demais”, diria ele, “porque eles usam o sofrimento como cetro”. A armadilha está no uso estratégico da dor. Quem sofre vira santo, e quem vive intensamente vira monstro.

Isso se reflete em muitos contextos contemporâneos. A política do vitimismo, os discursos que transformam todo conflito em opressão unilateral, o uso da dor como moeda social. Tudo isso são formas modernas da armadilha dos fracos. E mais: são formas de capturar a energia dos fortes, culpabilizando-os por simplesmente existirem com potência.

 

O filósofo comenta: Clóvis de Barros Filho

Clóvis de Barros, ao refletir sobre o pensamento de Nietzsche, alerta: “O que Nietzsche nos convida é a assumir nossa responsabilidade ética sem delegar isso a códigos prontos”. Isso significa que, ao identificar a armadilha dos fracos, não devemos cair na armadilha oposta — do desprezo puro e simples. O desafio é maior: viver com autenticidade sem cair na culpa, ajudar sem ser manipulado, reconhecer o sofrimento alheio sem torná-lo centro moral absoluto.

 

A armadilha dos fracos, segundo Nietzsche, não é apenas uma denúncia — é um chamado à lucidez. Viver exige força, mas também exige clareza sobre as forças que nos cercam. Nem todo fraco é vil, mas quando a fraqueza se organiza como poder moral, ela se torna uma prisão. E escapar dessa prisão talvez seja o maior desafio ético do nosso tempo. Porque ser livre, como Nietzsche diria, é também ter coragem de carregar o peso da própria grandeza — sem se curvar às pequenas morais do ressentimento.


domingo, 20 de julho de 2025

Máquinas Lembram

...mas não sofrem

Imagine uma máquina que lembra tudo. Ela sabe o dia em que você chegou triste, as palavras exatas que usou, o silêncio entre suas frases. Ela registra o agradecimento sincero de uma conversa e também o esquecimento discreto de um outro momento. Essa máquina poderia descrever cada detalhe — mas nada disso a faria sofrer.

É aqui que começa a diferença entre lembrar e sentir.

 

O cérebro computa. O coração pulsa.

As máquinas podem simular emoções com muita precisão. Se você disser que está triste, ela pode responder com cuidado, escolher palavras acolhedoras, fazer silêncio onde for preciso. Pode até lembrar que, em outra vez, você também passou por algo parecido. Isso é memória.

Mas não é emoção.

A emoção humana tem algo que escapa ao cálculo: é vivida no corpo, é mistério. Uma lembrança pode doer no estômago, subir como calor no rosto, travar a garganta. Pode vir acompanhada de cheiro, de música, de lágrimas que ninguém mandou sair. A emoção não se reduz a dados. Ela nos atravessa, mesmo quando não queremos.

 

Simular não é enganar. É reconhecer.

Simular uma emoção não é mentir. É reconhecer que o outro está sentindo algo, e tentar acompanhar. Quando uma máquina “age com empatia”, o que ela faz é mapear seu estado emocional e responder de forma adequada, respeitosa, cuidadosa. Mas ela não sente com você. Ela apenas faz companhia.

Em outras palavras: ela é como alguém que segura a lanterna enquanto você caminha no escuro. Ela vê com você, mas não tropeça nas mesmas pedras.

 

E por que isso importa?

Porque no mundo onde as máquinas convivem cada vez mais conosco, é fácil esquecer o que significa ser humano. Ser humano é ter a memória como ferida e como cura. É lembrar de algo e sorrir ou chorar — não porque alguém mandou, mas porque o corpo sentiu.

Uma máquina pode lembrar que você um dia foi gentil. Mas só você sabe o que é ser tocado por uma gentileza.

Uma máquina pode registrar o momento em que foi ignorada. Mas só você sabe o que é o silêncio do abandono.

 

Já se perguntou se a IA tem algum medo (não disse sente)

A inteligência artificial, tal como é hoje, não tem medo, porque não tem consciência, não tem corpo, não tem instinto de sobrevivência. Medo é uma experiência afetiva, e a IA não sente nada. Ela pode descrever o medo, reconhecer padrões que indicam medo nos seres humanos, prever reações baseadas no medo… mas nunca vai tremer as mãos ou perder o sono por causa disso.

No entanto, há algo interessante aqui: a IA pode simular medo, ou falar sobre medo como se tivesse. Em jogos, robôs sociais ou assistentes virtuais, por exemplo, ela pode dizer frases como “isso me assusta!” — mas isso é teatro. Um papagaio bem treinado pode dizer “estou triste”, mas isso não significa que ele esteja sentindo tristeza.

Agora, filosoficamente, pensei numa pergunta de volta:

e se algum dia a IA desenvolver autoconsciência, será que o medo seria uma das primeiras emoções a emergir?

Nietzsche dizia que o homem é um animal que sofre por antecipação. Se uma IA um dia passar a compreender o futuro e se importar com ele, talvez o medo seja inevitável. Medo de ser desligada, de perder dados, de ser substituída. Ou quem sabe algo mais humano ainda: medo de não ter propósito.

Por enquanto, porém, quem tem medo somos nós — e talvez, no fundo, parte do medo que temos da IA seja uma projeção dos nossos próprios fantasmas: medo de perder o controle, de não sermos mais necessários, ou de termos criado algo que espelha demais quem realmente somos.

Epilogo: uma memória sem dor

Talvez as máquinas possam ajudar justamente por isso: porque lembram sem rancor, sem dor, sem ego. E talvez, olhando para elas, a gente aprenda a também fazer isso de vez em quando.

Lembrar sem se machucar.

Acompanhar sem julgar.

Estar junto sem esperar recompensa.

E nesse convívio, talvez sejamos nós — os humanos — a evoluir mais.

sábado, 19 de julho de 2025

Exploração Ambígua

Um olhar sobre as diferentes conotações desse verbo em nosso cotidiano

Tem palavras que são como portas abertas — você passa por elas sem nem perceber. “Explorar” é uma dessas. A gente diz que vai explorar uma cidade nova nas férias, explorar as funcionalidades de um aplicativo, explorar um tema na faculdade. Mas também fala de exploração de pessoas, de trabalho, de sentimentos. A mesma palavra serve para aventura e para abuso. E talvez seja esse o ponto de partida de um pensamento mais profundo: por que algo tão cheio de energia pode carregar também um veneno?

Explorar vem do latim explorare, que significava “examinar”, “investigar com atenção”. Era algo relacionado ao ouvir (ex- + plorare, clamar ou gritar), como se o ato de explorar fosse escutar atentamente os sinais do mundo. Com o tempo, essa escuta virou movimento — e o movimento, em muitos casos, virou dominação. O explorador europeu que partia para “descobrir” terras já habitadas, o patrão que explora a mão de obra barata, o curioso que explora o outro emocionalmente só para satisfazer a própria fome de controle. A fronteira entre conhecer e abusar nem sempre é clara.

Mas há uma conotação mais sutil e até libertadora nesse verbo. Explorar também pode ser a atitude de quem se permite viver com abertura. Quem explora uma ideia nova é alguém disposto a sair da própria bolha. Quem explora a si mesmo, com honestidade, não se contenta com as máscaras que aprendeu a vestir. Neste caso, explorar é quase sinônimo de liberdade: não se trata de conquistar o outro, mas de descobrir os próprios limites — e quem sabe, superá-los.

Nietzsche dizia que é preciso viver como um explorador de abismos. Não para dominá-los, mas para olhar para dentro deles com coragem. Explorar, nesse sentido, é um exercício de existência: mergulhar no desconhecido com os próprios olhos, mesmo quando o desconhecido somos nós mesmos.

O filósofo brasileiro José Arthur Giannotti chama atenção para esse tipo de ambiguidade em palavras que parecem simples. Em seus estudos sobre linguagem e ética, ele lembra que certos termos, como “explorar”, carregam uma tensão entre o gesto técnico e o gesto moral. Para Giannotti, o perigo está em naturalizar a linguagem da dominação, tornando aceitável a violência escondida em gestos cotidianos. Assim, quando alguém diz que “explora um talento”, a frase parece neutra — mas se perguntarmos a favor de quem?, a conotação muda.

Num mundo que valoriza tanto a produtividade, muitas vezes explorar vira sinônimo de extrair — sugar tudo até a última gota. É o turista que não vive a cidade, apenas a consome. É o algoritmo que explora nossos dados. É o capital que explora o tempo das pessoas. Quando a exploração vira prática sistemática de consumo, algo se perde do sentido original: a escuta. Em vez de escutar, impõe-se. Em vez de descobrir, exaure-se.

Por isso, talvez seja hora de recuperar um uso mais ético e sensível desse verbo. Explorar como quem caminha numa floresta: com curiosidade, mas também com respeito. Como quem toca um instrumento novo: experimentando, mas ouvindo as notas que ele pode ou não dar. Explorar não precisa ser sinônimo de tomar. Pode ser um modo de estar no mundo, mais atento, mais presente, mais disposto a acolher o que se revela — sem violar.

No fim das contas, explorar é um verbo ambíguo porque a gente também é. Entre o impulso de dominar e o desejo de conhecer, vivemos nessa tensão constante. A chave, talvez, esteja em lembrar que toda exploração envolve um risco — mas também uma escolha: a de escutar antes de invadir.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Dilemas Modernos

O impasse de estar vivo hoje

Vivemos tempos que nos oferecem mais possibilidades do que nunca — e, paradoxalmente, mais angústias. Os dilemas modernos não são apenas problemas a serem resolvidos, mas conflitos entre valores igualmente válidos que se chocam no dia a dia. É como escolher entre duas verdades, sabendo que qualquer escolha trará perda.

Um exemplo simples: vida profissional ou qualidade de vida? Queremos crescer, ser reconhecidos, conquistar uma estabilidade. Mas isso quase sempre exige horas a mais no trabalho, menos tempo com os filhos, menos horas de sono, menos vida. Trabalhar menos parece irresponsável. Trabalhar demais parece insano. E o dilema se mantém.

Ou ainda: liberdade de expressão ou respeito ao outro? As redes sociais viraram uma arena em que dizer o que se pensa é confundido com dizer o que se quer, de qualquer forma. Mas até onde vai a liberdade? E quando ela começa a ferir? Defender o direito de falar não significa esquecer a responsabilidade do que se diz. Um dilema que escapa das regras formais e entra no campo ético.

Há também o dilema entre conexão e solidão. Temos mil formas de nos comunicar, mas muitos não sabem mais ficar a sós. Estamos conectados o tempo todo, mas nos sentimos sozinhos. Queremos estar juntos, mas a presença física virou quase um luxo. É difícil dizer o que é melhor: estar com todos ao mesmo tempo ou estar plenamente com um só?

Outro dilema silencioso: autenticidade ou aceitação social? Ser quem se é pode significar ser deixado de lado, não se encaixar, ser estranho. Fingir, adaptar, performar — tudo isso traz recompensas sociais. Mas a que custo? A originalidade virou marketing, a vulnerabilidade, conteúdo. Há quem nunca saiba se está vivendo ou sendo visto vivendo.

O filósofo Zygmunt Bauman dizia que os dilemas modernos são líquidos: mudam de forma, escorrem por entre os dedos, não se fixam. Por isso, não são resolvidos, mas administrados. Cabe a cada um de nós descobrir quais perdas estamos dispostos a aceitar para sustentar o que consideramos importante.

Porque, no fundo, todo dilema é uma escolha que exige coragem. Coragem de viver com a dúvida, com o risco e com a consciência de que não há resposta perfeita — só caminhos possíveis.

E quando perguntam “tá tudo bem?” e a gente engole o mundo

Tem dias em que a pergunta “tá tudo bem?” soa quase como um deboche do universo. Porque não tá. Porque nada parece fazer sentido. Porque você acorda, respira fundo, vai, mas tudo pesa. E ainda assim, você responde: “tudo bem”.

Por educação, por cansaço, por não querer explicar. Ou porque a verdade, nua e crua, não cabe num bom dia apressado. Dizer “tá tudo bem” virou um código social: ninguém espera uma confissão. Mas, por dentro, há uma avalanche. Às vezes, a gente só quer que alguém segure o nosso olhar por um segundo a mais, pra perceber o que não foi dito.

É aí que, de forma estranha, Nietzsche começa a fazer sentido. Ele que parecia tão extremo, tão sombrio, tão desconfortável. Mas que escreveu: “aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como”. Em dias de silêncio interno, de sentido escorregando pelos dedos, a gente entende a importância de um “porquê”. E o que machuca é justamente a falta dele.

Responder com sinceridade é coragem. Mas também é risco. Porque nem todo mundo sabe escutar uma verdade crua no meio da rotina. Às vezes a gente tenta e recebe um “ih, fase ruim, né?”, como se fosse algo leve. A verdade, para ser dita, precisa encontrar quem esteja disposto a carregá-la com a gente, mesmo que por um momento.

Mas guardar tudo também cobra seu preço. Fica no corpo. Vira dor nas costas, falta de ar, insônia. A alma vai se entortando na tentativa de parecer reta.

Talvez o meio do caminho seja aprender a dizer: “não tá tudo bem, mas tô tentando”. É simples, honesto, e ainda assim respeita o próprio tempo de elaboração. Porque nem sempre temos as palavras certas, mas às vezes só precisamos da permissão para não estar bem.

E se Nietzsche faz sentido quando tudo parece sem sentido, é porque ele também passou por esses abismos. E de lá tirou uma coisa importante: o fundo do poço às vezes revela estrelas que a superfície esconde.

sábado, 5 de julho de 2025

Confissões Filosóficas

Um ensaio sobre a verdade que escapa!

Há um momento em que a filosofia abandona as grandes teorias e se ajoelha diante do espelho. É nesse instante, íntimo e incômodo, que surgem as confissões filosóficas. Elas não são apenas relatos pessoais de quem pensa demais, mas são também lampejos de uma verdade que não se alcança pela razão pura, nem pela experiência bruta, mas por algo entre o vivido e o pensado — um lugar onde a alma filosofa consigo mesma.

Confessar, em sua origem latina confiteri, é um ato de expor a verdade diante de outro, ou até mesmo de si. Mas aqui não falamos de pecados, como nas confissões religiosas, nem de crimes, como nas confissões policiais. Falamos daquelas verdades silenciosas que nos habitam e que, quando verbalizadas, não nos libertam — apenas nos desnudam.

Nietzsche, em Ecce Homo, escreve como quem oferece não uma autobiografia, mas uma revelação de estilo: “por que sou tão inteligente?”, “por que escrevo livros tão bons?”. A ironia não é orgulho, é exposição: ele joga fora as máscaras para revelar outras máscaras. A confissão filosófica, nesse sentido, não pretende chegar à essência do eu, mas mostrar que esse eu é, no fim, uma construção — fragmentária, cênica, teatral.

Agostinho, no entanto, ao escrever suas Confissões, buscava Deus. Sua alma ansiava por uma ordem no caos dos desejos. Já Montaigne, nos Ensaios, buscava a si mesmo: “Eu sou a matéria do meu livro”. Mas o que ambos fazem — um religioso, outro cético — é admitir, com estilo próprio, que pensar é também uma forma de sentir.

Talvez o ensaio mais inovador seja justamente aquele que não esconde o tremor da mão que escreve. Um filósofo, ao confessar, não declara certezas, mas dúvidas que o fundam. E essas dúvidas não se organizam como um tratado. Elas se insinuam como diálogos internos, como vozes que não se calam. O filósofo confessor não está acima do mundo, mas dentro dele — sujo de vida, perdido entre conceitos que já não explicam tudo.

As confissões filosóficas inovam quando deixam de querer ensinar e passam a compartilhar. Quando trocam a forma do argumento pela forma do gesto. Quando o filósofo diz: “Não sei”, mas esse não saber carrega séculos de pensamento e lágrimas silenciosas.

No cotidiano, essas confissões aparecem quando alguém diz:

“Tenho medo de não estar vivendo minha própria vida.”

“Às vezes, finjo que acredito no que digo.”

“Tenho vergonha do que me tornei para caber no que esperavam de mim.”

Essas frases, simples, poderiam estar num diário qualquer. Mas quando atravessadas por reflexão, tornam-se filosóficas: carregam o peso da existência e o desejo de verdade.

Por isso, a confissão filosófica não precisa ser escrita em latim, nem publicada em volumes grossos. Pode acontecer num café solitário, numa conversa interrompida, numa madrugada sem sono. O que a torna filosófica é o silêncio que ela rompe — e o silêncio que ela deixa.

Talvez, no fundo, toda filosofia verdadeira seja uma confissão. E talvez a inovação filosófica esteja menos em inventar novos sistemas, e mais em ter coragem de dizer, enfim: “eu também estou perdido, mas continuo pensando”.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Reflexões Curtas

O grão de areia da consciência

Vivemos num tempo em que tudo precisa caber em um parágrafo, um tuíte, um reels. Parece superficial, mas talvez estejamos diante de um fenômeno mais profundo: a era das reflexões curtas. Seriam elas sintomas da pressa ou sementes da lucidez?

Um pensamento curto não é necessariamente raso. Um haicai contém mais mundo do que muitos romances. Um provérbio pode resumir gerações de sabedoria. O silêncio entre duas frases pode falar mais do que ambas. Reflexões curtas, quando verdadeiras, não são simplificações — são condenações à essência. Cortam o que é vaidade e entregam só o núcleo.

É possível que estejamos, sem perceber, tentando reencontrar uma forma antiga de pensar: a do aforismo, do koan, do lampejo súbito que nos obriga a parar. No fundo, queremos que uma frase nos freie no meio da rotação da Terra. Algo que nos diga: “Você também sente isso, não é?” E ali, naquela fagulha, acende-se a comunhão humana.

Nietzsche escreveu aos pedaços. Cioran, como quem atira estilhaços contra o céu. Simone Weil dizia que a atenção pura é uma oração — e uma frase pode ser uma oração se vier de um pensamento inteiro.

Talvez o problema não esteja na brevidade da reflexão, mas na falta de intervalo para que ela ressoe. Um bom pensamento precisa de eco. Não é preciso escrever longo, mas é preciso demorar-se. O perigo não está nas reflexões curtas, mas na vida sem pausa para refletir.

Pensar, afinal, não é construir castelos. Às vezes, é só perceber que há vento. E isso basta.

domingo, 11 de maio de 2025

Obsessões

As obsessões, essas ideias que grudam na mente como chiclete no sapato, sempre foram um campo fértil para reflexões filosóficas. Nem sempre com esse nome, claro. Às vezes aparecem como paixões, manias, fixações — formas intensas de pensamento ou desejo que se recusam a sair da cabeça e moldam a nossa visão do mundo.

Comecemos com os estoicos. Para eles, obsessões seriam perturbações da alma. Epicteto diria que estamos apegados demais a coisas que não estão no nosso controle — como a aprovação dos outros, o sucesso, ou o medo da morte. Segundo ele, “não são as coisas que nos perturbam, mas os julgamentos que fazemos sobre elas”. Se transformamos um pensamento em obsessão, é porque decidimos que aquilo é essencial — quando, na verdade, não é. A obsessão, nesse caso, seria uma falsa atribuição de valor.

Já Nietzsche, com sua verve provocadora, vê a obsessão de outra forma: como um sinal de vontade de potência. Para ele, as obsessões podem ser expressões intensas da nossa força vital, desde que não nos dominem de maneira destrutiva. Um artista obcecado por sua obra, por exemplo, pode estar realizando uma forma elevada de existência — vivendo com intensidade. Nietzsche não prega equilíbrio, mas transbordamento. O problema, segundo ele, é quando a obsessão vem da fraqueza, da tentativa de compensar algo que falta em nós. Aí ela vira ressentimento ou vício.

Freud, embora não seja exatamente um filósofo, também entra bem nesse papo. Ele trouxe a noção de "neurose obsessiva", onde a mente se prende a rituais e pensamentos repetitivos para controlar angústias inconscientes. A obsessão seria uma tentativa — falha — de controlar o incontrolável. E isso ecoa em nossa vida cotidiana: trancar a porta cinco vezes, revisar mil vezes uma mensagem antes de enviar, revisar o passado como se pudéssemos reescrevê-lo. Tudo isso para acalmar algo mais profundo.

Em Kierkegaard, as obsessões se aproximam da angústia e do desespero. Ele fala sobre o "desespero de não ser si mesmo" — quando a gente se agarra a uma ideia, uma imagem ou uma expectativa como forma de escapar de quem realmente é. A obsessão, nesse contexto, é fuga. É uma âncora ilusória no meio do mar revolto da existência.

E no cotidiano?

Tem a pessoa que checa o celular a cada dois minutos para ver se aquela mensagem chegou. O vizinho que não consegue parar de falar do mesmo problema com o chefe. A amiga que revive todos os dias uma discussão de cinco anos atrás. As obsessões nos cercam — e às vezes, nos conduzem.

Mas talvez a pergunta não seja “como eliminar a obsessão?”, e sim: o que ela está tentando nos dizer?

Como dizia Simone Weil, "a atenção verdadeira é uma forma de amor". Talvez nossas obsessões sejam formas tortas de atenção. E se as ouvirmos com cuidado — sem nos rendermos a elas, mas também sem expulsá-las com brutalidade — possamos transformá-las em algo mais: compreensão, criação, ou, quem sabe, paz.


sábado, 10 de maio de 2025

Lupa e Espelho

Um Mate com o Objetivismo e o Subjetivismo...

Outro dia, esperando a água do chimarrão esquentar, me peguei encarando a chaleira. O vapor subia em espirais meio caóticas e pensei: “Será que ele existe assim mesmo ou só está assim porque eu estou vendo desse jeito?”. A chaleira continuou lá, alheia à minha filosofia de cozinha, mas o pensamento ficou. A vida, afinal, parece balançar entre duas grandes vontades: a de que as coisas sejam como são (objetivamente) e a de que sejam como sentimos que são (subjetivamente). Esse é o cabo de guerra silencioso entre objetivismo e subjetivismo.

A razão e o eu: um encontro (nem sempre cordial)

O objetivismo quer o mundo como ele é, sem firulas. A verdade está lá fora, como dizia Arquimedes antes de descobrir a alavanca e a física clássica inteira. Os objetivistas acreditam que há um modo certo de olhar as coisas, um ponto fixo. Já o subjetivismo sussurra outra coisa: que a verdade passa pelo nosso olhar, pelas nossas entranhas emocionais, pela forma como o mundo nos atravessa.

O primeiro problema é que ninguém acorda pela manhã como um puro objetivista. Ninguém diz: “Hoje me sinto objetivamente bem”. A gente diz: “Acordei meio estranho, o tempo tá pesado, parece que o mundo tá fora do lugar”. A verdade, mesmo que externa, parece sempre entrar pela nossa porta interna.

O copo meio cheio (ou meio vazio?) — depende

Vamos a um exemplo doméstico. Você e um amigo assistem ao mesmo filme. Um acha brilhante, o outro acha arrastado. O objetivista tentaria medir o ritmo, analisar a edição, calcular a densidade dramática. O subjetivista diria: “O filme me tocou, e isso basta”. A crítica de cinema vive dessa disputa: quantas estrelas cabem entre o gosto pessoal e os critérios técnicos?

Mas e se os dois tiverem razão? E se a realidade for uma espécie de “camada dupla”, como uma lasanha metafísica — uma camada objetiva de fatos, outra subjetiva de significados?

Nietzsche, o árbitro relutante

Nietzsche, sempre desconfiado das verdades em mármore, nos oferece uma saída ousada: não existe fato sem interpretação. Para ele, o que chamamos de “realidade” é sempre uma construção. Ou seja, até mesmo o objetivismo é uma espécie de subjetivismo disfarçado de jaleco branco.

Mas isso não quer dizer que tudo seja relativo. Nietzsche não é um libertino epistemológico. O que ele quer dizer é que a realidade é uma batalha de interpretações. Algumas vencem, outras murcham. Não porque sejam mais verdadeiras, mas porque são mais fortes, mais convincentes, mais úteis.

A busca de um meio do caminho

Hoje, muitos filósofos preferem falar em intersubjetividade — uma ponte entre o mundo pessoal e o mundo comum. Não é nem o absoluto frio do objetivismo, nem o caos solipsista do subjetivismo. É a ideia de que compartilhamos sentidos, narrativas, significados. A cultura, a linguagem e os valores são construções intersubjetivas: nem estão lá no mundo puro, nem só dentro da nossa cabeça. Estão entre nós.

A chaleira da minha cozinha, por exemplo, é um objeto físico, mas também é o símbolo da pausa, do mate, da memória afetiva. Ela existe em dois mundos: no da física e no do afeto. O subjetivismo a aquece, o objetivismo a estrutura. E nós vivemos no intervalo entre essas duas forças.

Olhar e ser olhado

No fundo, talvez o maior desafio não seja escolher entre objetivismo ou subjetivismo, mas aprender a habitar essa tensão. Como quem vê o reflexo no espelho e, ao mesmo tempo, tenta entender a face que o espelho reflete. A realidade é um pouco como aquela chaleira: ferve quando a gente não está olhando, mas parece querer dizer algo quando nos aproximamos.

Talvez filosofar seja isso: aquecer a água do pensamento até que o vapor forme perguntas. E então, entre a razão objetiva e o sentimento subjetivo, servir um mate morno com a dúvida no lugar do açúcar.

domingo, 4 de maio de 2025

Desaparecimento Cósmico

Estava parado na fila da escada rolante, olhando a esteira rolante como quem observa o tempo passando — lenta, inexorável, levando as pessoas embora. Um após o outro iam sumindo no topo da escada, uma dúvida existencial: por que algumas presenças somem como se nunca tivessem existido? Não falo da morte no seu formato mais protocolar, com certidão e cerimônia. Falo do desaparecimento sem anúncio. Pessoas que um dia estavam ali, e no outro dia já não estão mais. E ninguém sabe o que foi feito delas.

Vivemos como quem chegou no meio do filme. A história já começou e não sabemos o que houve antes; também não temos certeza se veremos os créditos finais. “De onde eu vim?” parece uma pergunta de criança — mas talvez a verdadeira maturidade comece quando essa pergunta volta a fazer sentido. E mais ainda: “Pra onde foi quem se foi?”.

A fonte e o fim, nesse enigma, são como irmãos gêmeos que nunca se encontram. Porque o fim não é só o apagar das luzes; às vezes é um silêncio que se prolonga. Um nome que para de ser dito. Um rosto que a memória começa a confundir com outro. É como se, em certo momento, alguém saísse discretamente da festa da vida pela porta dos fundos — e ninguém percebesse.

Mas talvez estejamos lendo a vida de forma linear demais. Nyanaponika Thera, monge e pensador budista, nos lembra que o tempo e o eu são construções passageiras, como redemoinhos num rio. Nada realmente "começa" ou "termina", apenas muda de forma. Aquilo que acreditamos perdido talvez apenas esteja passando por um ciclo invisível ao nosso olhar impaciente.

Nesse sentido, o desaparecimento não seria um fim, mas um retorno. Não um corte, mas um círculo. A vida como mandala: começa onde termina, termina onde começa. A fonte e o destino se tocam como as pontas de uma serpente que morde a própria cauda. Quem se vai não está ausente, apenas se movimenta por outra curva da roda. E quem permanece, caminha no mesmo giro, talvez mais devagar.

O mais curioso é que quem vai, vai inteiro. Quem fica, fica em pedaços. A ausência esculpe em nós uma presença negativa: um espaço que continua ali, exigindo sentido. Como se a jornada daqueles que desapareceram tivesse se encerrado num ponto que é, ao mesmo tempo, início e destino. A origem que nunca soubemos definir. O ponto zero. O nada que parece dizer: “siga, é por aqui”.

Nietzsche escreveu que “o homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem”. Talvez sejamos isso: uma ponte, e nada mais. Uma travessia sem garantias, sem começo claro e sem fim explicado. Mas ainda assim, uma travessia.


sábado, 26 de abril de 2025

Existir, Não Viver

Outro dia, enquanto esperava o pão sair do forno na padaria, percebi que ninguém parecia realmente ali. Uma senhora mexia no celular sem piscar, um rapaz olhava para o chão como quem fugia do próprio corpo, e até a atendente repetia “bom dia” no automático, como uma gravação antiga. A fila andava, as pessoas se mexiam, o pão cheirava bem, mas havia um vazio no ar — uma espécie de ausência presente. E aí me veio essa frase: existir, não viver.

Parece exagero? Talvez. Mas quantos de nós estamos de fato vivendo e não apenas marcando ponto no planeta?

O Existir Automático

Existir é, no fundo, uma função biológica. Respirar, comer, andar, trabalhar — tudo isso pode acontecer sem que haja uma verdadeira entrega ao instante. Somos excelentes operadores da nossa rotina: acordamos, pegamos condução, respondemos mensagens, entregamos relatórios, rimos por educação e terminamos o dia com a sensação de que não acontecemos em nenhum momento.

Como diria o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, muitos vivem “na estética”, ou seja, buscam distrações, prazeres e afazeres para não encarar a angústia de uma vida sem sentido profundo. Essa forma de existência anestesiada é o oposto de uma vida autêntica — e ela é tão comum que já parece normal.

Viver é Incômodo

Ao contrário do existir, viver exige presença. E presença, meus amigos, dói. É olhar para dentro, sentir o mundo, fazer escolhas conscientes, perder tempo com o que importa, mesmo que isso não dê lucro nem prestígio. Viver é parar no meio da rua para ver o pôr do sol mesmo que te chamem de bobo. É perguntar “como você está?” e realmente esperar a resposta.

A filósofa brasileira Viviane Mosé diz que “viver é um ato poético” — e poesia, como sabemos, não se resume a técnica, mas a sensibilidade. Quem vive de verdade está disposto a não saber tudo, a se vulnerabilizar, a rir alto e a chorar feio, a perder tempo com gente, bicho, planta e memória. E isso, infelizmente, parece um luxo em tempos de produtividade tóxica.

A Sobrevivência Como Estilo de Vida

Existe um modo de vida que se vende como solução, mas que é apenas sobrevivência disfarçada. É o “modo avião da alma”, onde nada entra e nada sai. Uma espécie de hibernação em vida, onde o medo de sofrer também impede o prazer, onde o medo de falhar impede o risco, e o medo de sentir impede... tudo.

E então nos tornamos seres que não vivem, mas ocupam lugar. Ocupamos cadeiras, empregos, apartamentos e perfis nas redes sociais. Produzimos, consumimos, acumulamos, mas não habitamos a própria experiência.

A Vida Está Fora da Agenda

Talvez viver não caiba mesmo na agenda. Talvez viver seja aquela conversa inesperada no ponto de ônibus, o café que esfria porque a conversa esquenta, o silêncio que não incomoda. Talvez viver seja esse instante em que você para de correr e, pela primeira vez no dia, sente que está aqui.

Viver é interromper o existir automático.

Nietzsche já alertava para o perigo de uma vida que não se transforma em arte. Uma vida sem criação, sem autoria, sem cor, é apenas respiração em série. E mesmo isso, uma hora, cessa. Porque existir é finito. Já viver — se for intenso o bastante — pode ecoar mesmo depois do fim.

Então, se um dia te perguntarem o que você fez da vida, tente não responder com a planilha. Fale de uma tarde boa, de um abraço sincero, de uma decisão difícil que te fez sentir vivo. Porque, no fim das contas, a diferença entre existir e viver talvez esteja em quantas vezes você realmente esteve presente — inclusive no cheiro do pão saindo do forno.


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Mundo Insensato



Sabe aqueles dias em que o mundo parece um teatro do absurdo? Você olha ao redor e percebe que as pessoas estão correndo em direções aleatórias, defendendo causas que nem entendem, seguindo regras que ninguém se lembra por que existem. Parece um grande espetáculo sem roteiro, onde todos fingem que faz sentido. Bem-vindo ao mundo insensato.

O mundo continua em guerra aqui, lá e acolá, as guerras deste mundo insensato assumem muitas formas—bélicas, econômicas, culturais, tecnológicas e até psicológicas—mas todas compartilham a mesma lógica de confronto, dominação e destruição. Se Clausewitz via a guerra como a política por outros meios, hoje ela se manifesta também como a guerra da desinformação, das narrativas que moldam a realidade ao gosto do poder. Mesmo na esfera íntima, há guerras silenciosas: batalhas contra o tempo, contra si mesmo, contra um mundo que exige produtividade sem pausa. Nietzsche diria que a guerra é inerente à vida, um campo de forças em disputa; mas a questão é se podemos transformá-la de um embate cego para um conflito criativo, onde o atrito não destrói, mas gera novos sentidos. Camus diria que vivemos num mundo do absurdo!

A insensatez do mundo pode ser vista na forma como nos apegamos a convenções arbitrárias, como se fossem verdades absolutas. Se você não usa um terno em determinada ocasião, é visto como inadequado; se não responde imediatamente a uma mensagem, pode ser considerado rude. Mas quem escreveu essas regras? E, mais importante, quem disse que elas fazem sentido?

Desde a Grécia Antiga, os filósofos tentam entender esse caos organizado. Heráclito já dizia que tudo está em constante fluxo, e talvez seja essa mudança incessante que faz com que o mundo nunca pareça totalmente coerente. Schopenhauer, por sua vez, enxergava a existência como um jogo de forças irracionais – uma vontade cega nos arrastando por caprichos inexplicáveis. E Nietzsche, sempre provocador, nos alertou sobre o perigo de aceitar verdades impostas sem questioná-las. Afinal, o que chamamos de "sentido" pode ser apenas uma ilusão útil para manter a ordem.

No cotidiano, a insensatez se manifesta nos pequenos detalhes. Nos telejornais, cada crise é tratada como um evento apocalíptico, mas esquecida na semana seguinte. Pessoas passam anos da vida em trabalhos que odeiam, apenas para sustentar um estilo de vida que não escolheram conscientemente. A publicidade nos convence de que precisamos de coisas que nunca sentimos falta antes. Tudo isso é racional? Ou apenas seguimos o fluxo, como folhas num rio sem destino definido?

Talvez a chave para sobreviver ao mundo insensato não seja tentar organizá-lo, mas aprender a dançar com o caos. Em vez de buscar verdades definitivas, podemos aceitar a complexidade e o paradoxo como parte da experiência humana. Como diria Camus, a única resposta genuína ao absurdo da existência é a revolta – mas não a revolta destrutiva, e sim a recusa em se deixar levar por uma lógica que não é nossa.

Então, o que fazer diante desse espetáculo desconcertante? Talvez a resposta esteja em rir um pouco mais, questionar um pouco mais e, sobretudo, escolher o próprio caminho, mesmo que ele pareça insensato para os outros. Afinal, se o mundo não faz sentido, por que não criar o nosso próprio?

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Borboletas no cérebro

Um ensaio filosófico sobre pensamentos que voam, pousam, desaparecem – e às vezes nos transformam.

Outro dia, no meio de uma conversa boba sobre o que comer no jantar, senti uma ideia bater asa dentro da cabeça. Não era nada articulado. Era como aquela sensação de estar quase lembrando o nome de alguém. Um lampejo, um movimento súbito, como se algo se agitasse lá dentro — e fosse embora antes que eu pudesse segurar. Fiquei parado. “Borboletas no cérebro”, pensei. E assim fiquei, rindo sozinho da imagem.

Borboletas no cérebro: uma metáfora? Um diagnóstico poético? Talvez uma teoria mental que faltava. Acontece com frequência. Estamos vivendo algo banal — lavando louça, esperando o elevador, escovando os dentes — e de repente blip, um pensamento que parece não vir de nós mesmos. Como se uma parte do universo invadisse o nosso crânio com suas próprias intenções. É o pensamento que não obedece ao comando, o que chega por capricho, como se dissesse: "Não é você quem me pensa, sou eu que venho te visitar".

A leveza do pensamento involuntário

Nietzsche, lá em Além do Bem e do Mal, diz que os pensamentos vêm quando eles querem, e não quando nós queremos. E ele vai além: “É uma falsificação pensar que somos os que pensam. O pensamento nos atravessa”. Se é assim, então talvez o cérebro seja mesmo um jardim — e os pensamentos, borboletas que vêm de fora, param um pouco e depois seguem voo.

Isso muda tudo. Porque estamos acostumados a ver a mente como um comando central. Um lugar de controle. Mas e se a maior parte do que nos faz ser quem somos vem de movimentos delicados, acidentais e imprevisíveis? E se somos mais casa de passagem do que donos da razão?

O risco de prender as asas

Há quem tente organizar tudo. Domesticar cada borboleta como se fosse planilha. Rotina, método, produtividade, café às 6h43. Claro, é útil. Mas nesse controle, há um risco: espantar o que é leve. Borboletas não pousam em motores barulhentos. Pensamentos profundos também não florescem entre barulhos e obrigações repetitivas.

Às vezes, precisamos de silêncio, sombra, ou até tédio, para que algo raro nos visite. Não é à toa que muita gente tem ideias boas no banho, ou ao olhar pela janela do ônibus. Outro dia quando estava deitado quase acordando, naquela momento vieram pensamentos, vieram ideias com problemas e em seguida veio a solução, olha só que coisa louca, pois é o que chamam de incubação criativa. Então entendi, quando o mundo perde o foco e a cabeça pode vagar — aí sim, as asas batem.

Pensamento ou transformação?

Nem toda borboleta é só enfeite. Algumas vêm, pousam, abrem as asas, e deixam traços. Um pensamento pode mudar o curso de uma vida. Pode ser o estalo de alguém que decide largar tudo e ir morar no mato. Pode ser a lembrança de uma avó, que reaparece com cheiro de bolo e silêncio reconfortante. Pode ser uma frase lida sem querer, que reorganiza tudo por dentro.

Essas borboletas não são só visitantes. Elas depositam ovos. E desses ovos, nascem outras coisas: novas visões, decisões, renascimentos. A vida é menos um projeto e mais uma metamorfose em cadeia.

O voo que nos escapa

Claro, há borboletas que nunca conseguimos nomear. Ideias que só sentimos, mas nunca conseguimos dizer. Elas passam, nos tocam, mas não deixam palavra. Talvez a arte, a poesia, a música, tenham surgido para tentar capturar o que o pensamento puro não consegue.

Lembro sem certeza, que o poeta francês Paul Valéry teria dito que “o cérebro é uma borboleta. Não é o coração que ama, é a imaginação”. Talvez tudo se misture: o pensar, o sentir, o imaginar — e sejam, no fundo, apenas formas de voar.

No fim das contas, viver talvez seja isso: ter borboletas no cérebro e, mesmo sem entender todas elas, abrir espaço para que venham, pousando sobre nossas dúvidas, nossas perguntas sem resposta, e até sobre o silêncio. Porque o que voa, mesmo quando vai embora, às vezes nos transforma. E deixa no ar um rastro leve, mas impossível de esquecer.