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segunda-feira, 2 de junho de 2025

Ironia Socrática

Por que fingir não saber ainda é tão necessário?

Se você já viu alguém numa reunião de trabalho perguntar, com a cara mais inocente do mundo: “Mas por que estamos mesmo fazendo isso?”, você presenciou um traço da ironia socrática. Não é sarcasmo, não é zombaria. É aquela pergunta que desarma a falsa certeza, que descola a máscara do saber técnico e revela o vazio do automatismo. Num tempo em que todos querem parecer especialistas de tudo — da política à nutrição, passando por filosofia de vida e investimentos — a ironia socrática surge como um antídoto poderoso contra os discursos prontos e os saberes engessados.

A ironia socrática não é apenas um método filosófico de questionamento; é uma atitude diante do mundo. Sócrates, aquele que nada escreveu e tudo perguntou, caminhava pelas ruas de Atenas desafiando os cidadãos a explicarem aquilo que julgavam saber. Ele fingia ignorância, mas não por vaidade ou escárnio: ele acreditava que o verdadeiro saber começa quando admitimos não saber. Esse fingimento, longe de ser uma fraude, era um convite. E, talvez, a modernidade precise mais do que nunca desse convite sutil.

Nos tempos atuais, essa ironia muda de cenário. Não está mais na ágora, mas pode aparecer nas redes sociais, nos podcasts, nas conversas entre amigos, nas falas de um professor que desmonta certezas com uma pergunta simples. Hoje, a ironia socrática pode ser praticada por quem ousa interromper o fluxo das opiniões automáticas e dizer: “Me explica melhor, por favor. O que exatamente você quer dizer com isso?”

Essa postura tem algo de corajoso. No mundo das aparências, quem se diz ignorante corre o risco de parecer fraco. Mas talvez a força esteja justamente em resistir à pressa de saber tudo. A ironia socrática moderna é subversiva porque desacelera. Ela não propõe respostas fáceis, mas escava o chão das ideias e revela suas rachaduras.

Além disso, essa ironia tem um potencial ético: ela obriga o outro — e a nós mesmos — a refletir com mais cuidado, a responsabilizar-se pelo que diz. Não basta repetir fórmulas, slogans ou estatísticas. A pergunta socrática escava: “O que isso significa, de fato?” É uma ferramenta contra a superficialidade, contra a alienação do discurso, contra a embriaguez da própria opinião.

Como escreve o filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro, “o que Sócrates nos ensinou, mais que tudo, é o valor do diálogo como forma de buscar o bem”. Em tempos de polarizações e certezas rígidas, o espírito socrático se torna mais necessário do que nunca. Talvez devêssemos reaprender a perguntar como quem não sabe, não para manipular, mas para encontrar juntos alguma luz no meio do barulho.

No fundo, a ironia socrática nos lembra que pensar não é acumular verdades, mas depurar ilusões. E isso — nos tempos modernos, de verdades líquidas e vozes gritadas — é quase um ato de resistência.

Vamos as aplicações contemporâneas da ironia socrática

1. Na educação: ensinar a perguntar

Imagine um professor diante de uma turma que decorou fórmulas, definições, datas. A aula flui, mas algo falta. Então o professor para e pergunta:

“Mas por que vocês acham que isso é importante?”

Silêncio.

Essa pergunta, que parece simples, desestabiliza. É a ironia socrática entrando em cena: questionar não apenas o conteúdo, mas o próprio sentido do saber.

Na prática pedagógica, o uso da ironia socrática não é zombaria, mas provocação no melhor sentido: provocar o pensamento adormecido. Ao invés de entregar o conteúdo pronto, o professor encena sua ignorância para que os alunos construam argumentos, desenvolvam critérios. Ensinar deixa de ser um ato de transmitir e passa a ser um ato de escavar juntos o que vale a pena saber.

2. Na política: a pergunta que desarma o discurso

No debate político, a ironia socrática é rara, mas poderosa. Ela surge quando alguém recusa o jogo da agressividade e responde com uma pergunta desconcertante:

— “Você disse que quer ‘resgatar os valores da família’. Pode explicar quais são esses valores e de onde vêm?”

Essa pergunta, feita sem atacar, abre um buraco no discurso. A ironia socrática, nesse contexto, desideologiza. Ela tenta separar argumento de emoção, crença de convicção, e exige do outro mais do que frases decoradas: exige pensar.

Em tempos de palanques digitais e trincheiras ideológicas, a ironia socrática é como oxigênio: não grita, mas expõe. Não se impõe — convida. É o diálogo em vez do monólogo armado.

3. Na cultura digital: o gesto subversivo de dizer “não sei”

Nas redes sociais, todos têm opinião sobre tudo — da vacina à guerra, da dieta ao fim do mundo. Quem diz “não sei” parece fraco. Mas há um poder imenso nessa frase.

Talvez a ironia socrática hoje apareça quando alguém comenta com honestidade:
— “Desculpa, não entendi bem essa notícia. Alguém pode me explicar?”

Essa pergunta, feita com verdadeira curiosidade, rompe a corrente da vaidade informativa. Ela abre espaço para um novo tipo de inteligência: aquela que prefere aprender do que parecer saber.

Aqui, a ironia não é fingimento de ignorância, mas um ato de humildade. Uma ética da dúvida. Uma recusa à pressa de ter razão. É a pausa que desativa a ansiedade opinativa e reinventa o sentido de conversar.

Finalizando: o saber que nasce da escuta

Reviver a ironia socrática nos tempos modernos não é uma nostalgia de método, mas uma urgência de atitude. Fingir não saber para provocar o pensamento do outro não é manipulação: é uma forma ética de cuidado. É pedagogia, é política, é comunicação genuína.

Num mundo que valoriza a aparência do saber, a ironia socrática resgata a profundidade da escuta. Ela não é contra o conhecimento — ela é contra a ilusão de que já sabemos tudo.

Como Sócrates, talvez devêssemos andar pelas ruas, pelos feeds, pelos corredores das escolas e dos escritórios, apenas perguntando:

“O que é isso que você diz saber?”

— e, quem sabe, a partir daí, possamos pensar juntos.