Outro dia, parado num cruzamento enquanto o semáforo piscava no vermelho, me peguei pensando em como nossos desejos se parecem com aqueles carros ansiosos para arrancar. Ficam ali, acelerando por dentro, esperando a menor chance de atravessar o que quer que esteja bloqueando o caminho. Mas, como no trânsito da vida, nem sempre o verde chega na hora que a gente quer. E às vezes, quando chega, a gente descobre que o caminho estava cheio de buracos. Foi aí que me veio essa vontade de escrever sobre desejos e desafios — essa dupla dinâmica que dança dentro da gente, como se fossem dois lados de um mesmo impulso existencial.
Desejo:
o motor invisível da existência
O
desejo é aquilo que nos move, mesmo quando tudo parece parado. Ele não precisa
de lógica, nem de permissão. Desejamos antes mesmo de saber o que é desejar. Um
bebê deseja o colo, o calor, o leite — não porque entenda o mundo, mas porque
algo nele o empurra pra frente. Assim, o desejo é anterior à razão. É impulso,
é chama. É o que nos tira do lugar e nos faz imaginar futuros.
Mas
o desejo também nos fragiliza. Ao querer, admitimos falta. O filósofo francês
Gilles Deleuze dizia que o desejo é produção, não carência. Ao contrário de
Freud, que via o desejo como um vazio a ser preenchido, Deleuze enxergava nele
uma força criativa, capaz de inventar caminhos onde antes só havia ausência.
Só
que o desejo, por si só, não basta. Ele precisa se confrontar com a realidade —
e é aí que surgem os desafios.
Desafio:
o chão onde o desejo tropeça (ou aprende a dançar)
Se
o desejo é o motor, o desafio é a estrada. Às vezes lisa, às vezes esburacada,
cheia de curvas inesperadas. E o que torna um desafio um verdadeiro desafio não
é a sua dificuldade objetiva, mas o quanto ele ameaça o nosso desejo. Desejamos
amar, mas temos medo de sermos rejeitados. Desejamos criar algo novo, mas
enfrentamos o pavor do fracasso. Desejamos mudar de vida, mas não sabemos como
sair do piloto automático.
O
filósofo brasileiro Mario Sergio Cortella diz que o desafio é o que dá sabor ao
esforço. Sem desafio, o desejo se acomoda, perde vitalidade, vira capricho. É
no embate com o obstáculo que o desejo se afina, amadurece, se transforma em
vontade. Schopenhauer chamava isso de “vontade de viver”, uma força cega e
incessante que nos empurra contra o mundo, mesmo quando ele parece não querer
ser empurrado.
A
dança entre desejo e desafio
O
encontro entre desejo e desafio não é uma batalha, mas uma dança. Às vezes o
desejo lidera, às vezes o desafio exige novos passos. O segredo talvez esteja
em não se apegar demais a nenhum dos dois. Nem desejar sem limites, nem aceitar
o desafio como punição. Há uma sabedoria que se constrói no equilíbrio: desejar
o suficiente para sair da inércia, mas enfrentar o desafio com humildade e
criatividade.
Nietzsche
talvez dissesse que só se torna digno da vida quem abraça seus desejos sem medo
e encara seus desafios sem ressentimento. E isso não significa vencer sempre,
mas dançar com o que se apresenta, com a leveza de quem sabe que o desejo nunca
se apaga — ele apenas muda de forma.
O
desejo como direção, o desafio como caminho
No
fundo, viver é isso: um desejo que se renova diante dos desafios que se
multiplicam. Cada dia é uma chance de reajustar o rumo, como quem recalcula o
GPS existencial. E se às vezes o desejo parece ingênuo e os desafios
intransponíveis, talvez o truque esteja em lembrar que são justamente esses
dois que nos mantêm vivos, atentos, em movimento.
E
assim, entre um desejo e outro, entre um desafio e mais um, seguimos — como
carros no sinal, esperando o próximo verde, mesmo sabendo que a estrada nunca
será perfeita. Mas é nossa. E isso já é um começo.