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terça-feira, 17 de junho de 2025

Ser Excêntrico

...é ser fora do eixo?

Que palavra boa, essa: excêntrico. Literalmente, do grego ekkentros, quer dizer “fora do centro”. E talvez isso já diga quase tudo.

Ser excêntrico é não girar no eixo dos outros. É não se preocupar se o bonde segue para a direita enquanto você caminha para a esquerda assobiando uma música esquecida. É usar uma boina vermelha num mundo de bonés pretos, comer bergamota no cinema, chamar a atenção sem querer ou querendo muito — pouco importa.

Excêntrico é aquele vizinho que cria galinhas no apartamento e lhes dá nomes de filósofos. É a colega de trabalho que prefere escrever seus relatórios à mão, com caneta tinteiro, no meio da era digital. É o tio que guarda canecas rachadas porque “a imperfeição tem charme”.

Mas o excêntrico não é necessariamente um extravagante. Nem sempre salta aos olhos. Às vezes é só alguém que recusa o script silenciosamente: não usa redes sociais, não liga para séries do momento, não troca o celular há cinco anos. E vive bem assim.

A sociedade moderna adora sugerir que há um “centro” de comportamento: comprar isso, vestir aquilo, sonhar com aquilo outro. Mas o excêntrico é um lembrete vivo de que esse centro é apenas uma construção — e pode ser abandonado sem culpa.

O filósofo francês Michel Foucault diria que o excêntrico encarna a “diferença” que resiste às normalizações do poder. Ele lembra que a vida pode ser outra coisa — um desvio alegre, um ruído num coro afinado demais.

No fundo, toda criança é um pouco excêntrica. Ela inventa brincadeiras sem sentido, fala sozinha com objetos, mistura real e imaginário sem pedir licença. Só depois é que ensinamos a ela que há um "centro" — horários, modos, jeitos, expectativas.

Talvez ser excêntrico, no fundo, seja uma forma de não esquecer essa infância secreta que mora em todo mundo.

E quem sabe o mundo precise de mais excêntricos — esses seres estranhos que não levam tão a sério o que deveria ser levado muito a sério.


Eu Social

Vivemos em uma sociedade que nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. Desde pequenos, escutamos frases como “isso não se faz”, “comporte-se”, “as pessoas estão olhando”. Antes de desenvolvermos uma identidade individual sólida, já aprendemos a nos ajustar, a ser “alguém” para os outros. É nesse jogo entre o que sentimos internamente e o que projetamos externamente que nasce uma figura essencial para a convivência humana: o eu social.

Outro dia, eu estava no mercado e, sem pensar muito, dei um sorriso automático para a moça do caixa. Não era um sorriso de alegria, nem mesmo de simpatia — era quase um reflexo social. Como quem diz: “estou sendo educado, veja só como funciono bem nesse ambiente coletivo.” E é aí que percebi que aquele gesto não era exatamente meu — era do meu eu social.

O “eu social” é esse personagem que a gente veste todos os dias. É o eu que sabe o que dizer na entrevista de emprego, que segura a piada inadequada na reunião, que disfarça o tédio numa festa porque "é bom estar ali", que troca de voz no telefone com o banco, e até que se adapta ao grupo de WhatsApp da família para não causar ruído.

O filósofo e sociólogo George Herbert Mead nos ajuda a entender melhor essa construção. Para ele, o “eu” se forma justamente através da interação com os outros. Mead diferencia o “I” (o eu espontâneo, criativo, que reage) do “Me” (o eu social, moldado pela expectativa alheia). Segundo ele, o “Me” é a parte de nós que internaliza as normas sociais, enquanto o “I” é a resposta individual a essas normas. Assim, não nascemos prontos: nos tornamos alguém no espelho das relações sociais.

No transporte público, vejo pessoas mudarem de postura conforme quem senta ao lado. No trabalho, alguém que parecia tão solto na festa da firma se transforma num robô funcional durante a semana. Em casa, somos filhos, pais, parceiros. Na rua, somos cidadãos, vizinhos, desconhecidos. É como se o “eu” trocasse de roupa cada vez que atravessa uma porta.

O sociólogo Erving Goffman, no livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, descreve a vida como um teatro. Ele sugere que todos nós, ao interagir socialmente, estamos encenando. Criamos máscaras, papéis, palcos e bastidores. E isso não é hipocrisia — é sobrevivência simbólica. O problema começa quando a gente não consegue mais sair do personagem.

Será que sabemos quem somos fora do palco? Quando não estamos agradando, respondendo expectativas, pedindo aprovação? Às vezes, penso que o “eu social” é como uma roupa de festa que usamos o tempo todo, mesmo quando tudo que queríamos era ficar de pijama.

Mas também aprendi que o eu social não precisa ser um inimigo. Ele é a ponte entre o que sou e o mundo que me cerca. A chave é não esquecer que ele é só uma parte — útil, sim — mas não total. Saber quando é hora de representá-lo… e quando é hora de deixá-lo sair de cena.


sábado, 14 de junho de 2025

Solidariedade Dukerniana

Sabe quando você entra numa padaria e sem perceber forma uma fila atrás de quem chegou primeiro? Ou quando pega um ônibus e mesmo com sono cede o lugar para uma senhora? Ou ainda quando ninguém te conhece no trabalho novo, mas mesmo assim todos já respeitam sua função, sem nem saber quem você é? Pois é. Isso é solidariedade no sentido dukerniano.

Émile Durkheim dizia que as sociedades se mantêm coesas graças a formas de solidariedade. Não é só empatia, nem compaixão. Para ele, "solidariedade" é o cimento invisível que mantém a ordem social. E existem duas formas disso acontecer: solidariedade mecânica e solidariedade orgânica.

A solidariedade mecânica é típica das sociedades simples, tradicionais, onde todo mundo pensa mais ou menos igual, vive de forma parecida, segue os mesmos costumes — como uma pequena vila onde todos se conhecem pelo nome e ninguém precisa de crachá. É o tipo de vínculo que une pessoas pela semelhança.

Já a solidariedade orgânica é própria das sociedades modernas e complexas — como a cidade grande, onde ninguém sabe quem é o outro, mas todo mundo depende de todo mundo. O padeiro não faz sua roupa; o alfaiate não planta seu próprio arroz; o engenheiro não conserta o encanamento da própria casa. Vivemos ligados não pela semelhança, mas pela diferença funcional. Cada um faz uma parte e confia que o outro fará a dele.

Se você vai ao supermercado e compra um pacote de arroz, nem imagina quem colheu, processou, transportou, empacotou. Mas sem todos eles — desconhecidos, anônimos, invisíveis — você passaria fome. Essa é a solidariedade dukerniana que sustenta nossa vida urbana sem que a gente perceba.

É interessante: quanto mais complexa a sociedade, mais "desconhecidos" garantem nossa sobrevivência. Isso gera uma confiança sistêmica — não no indivíduo concreto, mas no papel social que ele ocupa.

Durkheim alertava: se essa solidariedade enfraquece, surge a anomia — um estado de desorientação social, onde as regras perdem o sentido e as pessoas não sabem mais como agir. Não é raro sentir isso em grandes crises, como pandemias ou guerras, quando o fio invisível da confiança social ameaça se romper.

No fundo, até quando você reclama de um atraso do motoboy ou de um mau atendimento no banco, está invocando essa solidariedade dukerniana: você espera que cada peça do sistema funcione sem precisar supervisioná-la.

Como comentou o sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, no Brasil temos um costume forte de "personalizar" as relações — preferimos confiar em pessoas, não em funções. Talvez por isso a solidariedade orgânica aqui tenha suas falhas e a "mecânica" ainda resista em laços familiares, amizades, favores.

Mas no trânsito, na fila, no mercado, no aplicativo, no elevador… ela age em silêncio. Como o ar que respiramos sem notar. 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sujeito Normativo

 


O que há por trás de quem obedece (ou não)!

A gente passa a vida achando que está escolhendo. Desde cedo nos perguntam o que queremos ser quando crescer, como se a escolha fosse uma estrada aberta. Mas, se olharmos com mais atenção, muitas das nossas decisões já vieram meio prontas: o modo como nos vestimos, o jeito de falar, até a forma de amar — tudo parece já ter uma receita, mesmo antes de perguntarmos qual é o gosto.

Nesse cenário, surge uma figura discreta, mas poderosa: o sujeito normativo. Ele não é alguém específico, mas um tipo de presença que habita todos nós. É aquele que atua conforme as normas, internaliza as regras, se identifica com o que é esperado. Mas quem é esse sujeito, afinal? E, mais importante, ele é livre?

A construção do sujeito que se adapta

O sujeito normativo nasce de uma rede invisível de expectativas. Desde a infância, aprendemos o que é "certo", o que "pega bem", o que "deve ser feito". Somos guiados não por ordens diretas, mas por uma malha de sugestões sutis, recompensas emocionais e castigos simbólicos. A norma não grita, ela sussurra — e é exatamente aí que está sua força.

Michel Foucault nos ajuda a entender essa dimensão quando fala do poder disciplinar: o sujeito é produzido, ele não preexiste à norma. Ao se alinhar com os padrões, o sujeito normativo se realiza — e ao mesmo tempo, se limita. O curioso é que esse processo é quase sempre inconsciente: obedecemos sem saber que estamos obedecendo.

Louis Dumont: o sujeito entre o todo e o indivíduo

O antropólogo francês Louis Dumont nos ajuda a entender como as normas sociais moldam o próprio valor que damos ao sujeito. Em sua análise das culturas ocidentais e orientais, Dumont destaca a diferença entre duas formas de organização social: holismo e individualismo.

No holismo (mais comum em sociedades tradicionais, como na Índia), o indivíduo existe em função do todo — a coletividade, o grupo, a ordem social. Já no individualismo (mais típico do Ocidente moderno), o sujeito é concebido como autônomo, separado, dotado de direitos próprios.

Mas Dumont chama atenção para um paradoxo: mesmo onde o individualismo parece reinar, como nas democracias liberais, ele depende de um conjunto de normas culturais que moldam esse sujeito autônomo. Ou seja, até a ideia de “ser livre” já vem normatizada. O sujeito normativo moderno, portanto, não é menos normativo do que o tradicional — ele apenas internalizou novas formas de obediência, como a busca pela autenticidade, pela autorrealização, pelo sucesso pessoal.

Esse olhar antropológico revela que a norma muda de forma, mas nunca desaparece. O que chamamos de “escolha pessoal” frequentemente é apenas uma forma moderna de cumprir o que o grupo espera de nós.

O dilema entre pertencimento e autenticidade

Ser um sujeito normativo tem vantagens claras: ele se encaixa, circula com fluidez, é bem-visto. Mas há um preço. À medida que nos tornamos aquilo que esperam de nós, deixamos de escutar o que poderíamos ter sido. A norma, quando muito apertada, sufoca a singularidade. Quando vivemos apenas para cumprir o papel social que nos foi oferecido, nos tornamos personagens no teatro do previsível.

A filósofa Judith Butler acrescenta que as normas não apenas regulam o comportamento, mas criam a própria possibilidade de existência reconhecida. Só somos "alguém" se nos alinhamos minimamente ao que é considerado um "alguém possível". É um jogo de reconhecimento. E, às vezes, a margem entre ser reconhecido e ser livre é estreita.

A potência de desviar

Mas nem tudo está perdido. Há momentos em que o sujeito normativo tropeça — e é nesse tropeço que ele pode se reinventar. Quando uma pessoa diz “não” a um padrão que a oprime, não é apenas um ato de negação; é também uma criação. A transgressão, quando lúcida, abre espaço para novas formas de ser.

O filósofo brasileiro Vladimir Safatle nos convida a pensar que a transformação social exige esse gesto de ruptura, de recusa à normalização. O sujeito crítico, que tensiona as normas em vez de simplesmente segui-las, torna-se agente de mudança. Não para viver à margem por vaidade, mas para alargar as bordas do possível.

Entre a norma e o desejo

No fundo, todos nós vivemos esse equilíbrio instável entre seguir e reinventar. O sujeito normativo não é nosso inimigo — ele é parte de nós, aquela parte que busca acolhimento, sentido, pertencimento. Mas é preciso não esquecer da outra metade: o sujeito desejante, que sonha com o que ainda não tem nome.

Louis Dumont nos ajuda a entender que até o desejo de ser único pode ser, paradoxalmente, uma norma social. Talvez o desafio não seja abandonar a norma, mas dançar com ela. Saber quando ela nos serve e quando nos aprisiona. E, sobretudo, lembrar que viver de verdade é também inventar novas normas, feitas sob medida para aquilo que ainda não fomos — mas podemos vir a ser.

domingo, 25 de maio de 2025

Construção Social

Vamos falar sobre suas possibilidades...

Quando o que parece natural, na verdade, foi ensinado — e pode ser reinventado

Tem certas ideias que a gente carrega como se fossem verdades absolutas. Tipo "homem que é homem não chora", "sucesso é ter dinheiro", "menina não gosta de matemática". Mas e se eu te dissesse que muita coisa que parece natural é, na verdade, uma construção social?

Sim, muitas das nossas certezas foram aprendidas — e não nasceram com a gente. E é justamente aí que mora a boa notícia: se foi construído, pode ser reconstruído.

O que é uma construção social?

Imagina que você cresceu num mundo sem espelhos. Nunca se viu. Tudo o que sabe sobre si mesmo veio das falas dos outros. Um diz que você é bonito, outro que é desajeitado, outro que você fala demais. Com o tempo, você começa a acreditar nessas ideias e repeti-las: “sou assim”, “sou assado”.

A construção social funciona desse jeito. A sociedade molda comportamentos, gostos, papéis e identidades. A gente vai absorvendo tudo isso como se fosse parte da natureza humana — mas é cultura, hábito, costume. E por isso mesmo, pode mudar.

Três possibilidades que se abrem

1. Identidades que se reinventam

Você não precisa ser a mesma pessoa a vida toda. Se identidade é construção, então ela pode ser revista. Pode-se ser mãe e continuar artista. Pode-se gostar de tecnologia e de filosofia. Pode-se ser homem e usar saia. Não existe mais um "jeito certo" de existir — só o jeito que faz sentido pra você.

2. Novas formas de viver juntos

Se certos papéis sociais são construídos, eles não são eternos. O cuidado com os filhos não é só tarefa materna. A liderança no trabalho não precisa ser dura e fria. O sucesso pode ser medido em tempo livre, saúde mental ou vínculos profundos. A construção social nos permite inventar outras formas de viver em sociedade.

3. Menos preconceitos, mais consciência

Quando entendemos que categorias como “raça”, “beleza” ou “masculinidade” são construídas socialmente e não biologicamente, começamos a perceber o preconceito como uma distorção coletiva — e não algo natural. O racismo, por exemplo, é aprendido. E tudo o que é aprendido, pode ser desaprendido.

E na vida real?

  • No trabalho: a ideia de que chefe bom é chefe durão está sendo revista. Hoje, muitos líderes escolhem a empatia e a escuta.
  • Na escola: meninas que se sentem capazes em ciências e meninos que gostam de cuidar dos outros desafiam os velhos estereótipos.
  • No amor: não existe só uma forma de amar. A ideia de que a felicidade depende de “encontrar a metade da laranja” já parece coisa de outro século.

Bourdieu e o poder invisível do hábito

O sociólogo francês Pierre Bourdieu chamou atenção pra isso com o conceito de habitus — aquele nosso jeito de ser, pensar e agir que parece natural, mas foi moldado pelas experiências sociais. Segundo ele, a sociedade age dentro de nós sem que a gente perceba. Mas, ao perceber, a gente ganha poder de escolha.

No fim das contas...

Reconhecer as construções sociais não é viver no mundo das ideias. É justamente o contrário: é abrir os olhos para o que está por trás do cotidiano. E mais do que isso — é enxergar que o mundo pode ser diferente, e que a gente pode participar dessa transformação.

É um convite à liberdade, com responsabilidade. Nem tudo precisa ser desconstruído. Mas tudo pode ser reavaliado. O que serve à dignidade humana? O que aprisiona? O que nos torna mais inteiros?

Essa reflexão é uma chave. E a porta está logo ali.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Construcionismo Social

Outro dia, enquanto esperava na fila da padaria, ouvi uma senhora reclamar que “hoje em dia ninguém tem mais respeito”. Não era a primeira vez que ouvia essa frase. Aliás, parece que ela está guardada no bolso de todo mundo, pronta para sair a qualquer momento. Mas será mesmo que o respeito “acabou”? Ou será que o que entendemos por respeito mudou? Melhor ainda: e se o respeito nunca tivesse existido como uma coisa em si, mas fosse apenas uma construção social?

Essa pergunta toca o coração do construcionismo social, uma perspectiva que afirma que valores, identidades, instituições e até emoções são produtos da vida em sociedade. São construídos nas interações, nos acordos e também nas tensões do cotidiano.

A Realidade como Obra Coletiva

Para o construcionismo social, a realidade que conhecemos não é simplesmente descoberta: ela é construída. Isso não significa que o mundo físico seja uma ilusão, mas que a forma como o percebemos — o que é certo, errado, belo, ofensivo, desejável — é moldada pelas relações sociais e pela linguagem. Como diria Peter Berger, a sociedade é ao mesmo tempo uma gaiola e um espelho: nos limita e nos reflete.

É aí que entra Anthony Giddens, com sua teoria da estruturação, trazendo uma virada interessante: não somos apenas vítimas passivas de uma sociedade que nos molda — somos agentes ativos nesse jogo. Para Giddens, estrutura social e ação humana estão entrelaçadas num fluxo contínuo. As estruturas nos orientam, sim, mas também dependem das nossas práticas cotidianas para existir. É como uma dança: os passos são ensinados, mas somos nós que dançamos — e, às vezes, mudamos a coreografia no meio do salão.

Scripts Invisíveis e Pequenas Rebeliões

Voltemos ao cotidiano. Pense em como tratamos uma pessoa de terno num banco e como tratamos alguém de chinelo numa loja chique. É automático. Reproduzimos scripts sociais invisíveis que orientam o comportamento. Mas o mais curioso, como diria Giddens, é que ao seguir esses scripts, nós também os reforçamos. Toda vez que aceitamos uma piada preconceituosa em silêncio, damos continuidade a uma estrutura social. Toda vez que interrompemos esse padrão — mesmo que com um olhar torto ou uma pergunta incômoda — abrimos brechas.

Essas pequenas escolhas são fundamentais. O construcionismo social, somado à noção de agência de Giddens, nos lembra que a transformação começa na rotina: na fala interrompida, no hábito questionado, no rótulo recusado. A realidade social, afinal, é frágil — precisa ser sustentada o tempo todo pelas nossas ações para continuar existindo.

Construcionismo e Liberdade: Para Além do Determinismo

Se tudo é construído, tudo também pode ser reconstruído. Isso não significa que vivemos no caos ou que tudo é relativo, mas sim que temos possibilidades de reinvenção.

Se “família” pode significar laços de afeto e não apenas de sangue, se “trabalho” pode ser remoto, flexível ou cooperativo, se “identidade” pode ser fluida e múltipla, então o construcionismo não é só uma ferramenta para entender o mundo — é uma chave para transformá-lo. Giddens reforça essa visão ao mostrar que os indivíduos, mesmo limitados por contextos, não são marionetes. Eles sabem o que fazem — e, às vezes, sabem que poderiam fazer diferente.

Uma Conclusão Aberta (Como Toda Boa Construção Social)

Voltando à senhora da padaria: talvez ela tenha razão no que sente, mas talvez a forma de respeito que ela espera seja diferente da que os jovens reconhecem. O construcionismo social nos convida a parar de tratar o presente como uma queda em relação ao passado e começar a vê-lo como uma nova narrativa em construção.

E com Giddens à mesa, lembramos que não basta entender as estruturas — é preciso assumir responsabilidade pelas nossas ações dentro delas. Porque, no fim, se a sociedade é construída todos os dias, nós somos os pedreiros — ou, quem sabe, os poetas — dessa construção.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Etiquetamento Social

Um espelho rachado entre o eu e o outro

Outro dia, sentado num banco de praça, vi uma senhora puxar a neta pela mão e sussurrar: "Não chega perto daquele ali, é meio esquisito". O "esquisito" era só um rapaz de moletom cinza, com fones de ouvido e olhar perdido — talvez perdido em música, talvez em pensamentos, talvez em dor. Aquilo me fez pensar. Como esse impulso de nomear os outros, de pendurar neles etiquetas invisíveis, guia silenciosamente as engrenagens da vida social.

A sociologia chama isso de etiquetamento (ou labelling, como preferem os anglófilos acadêmicos), e a teoria do etiquetamento é um dos campos mais provocativos da criminologia e da sociologia da marginalidade. Mas ela vai muito além do crime. Está no modo como chamamos de "problemático" o aluno inquieto, "difícil" a mulher que não abaixa a cabeça, "louco" o que reage fora do script.

O mundo como uma vitrine de rótulos

A ideia central do etiquetamento é simples e perversa: a sociedade cria desvios ao nomear e reagir ao que considera desvio. Howard Becker, um dos grandes nomes desse campo, escreveu que "desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação, por outros, de regras e sanções a um 'infrator'". Em outras palavras, você não é desviado até alguém te dizer que é.

Becker vai além: ele diz que, ao definir quem são os "desviantes", a sociedade cria uma linha invisível entre os "normais" e os "anormais", entre os "dentro" e os "fora". E pior: quem é rotulado como desvio passa a se ver com os olhos dos outros. É um processo de dupla prisão — o olhar social que julga, e o olhar interno que se acostuma ao julgamento. Assim, a etiqueta deixa de ser só externa: ela gruda na pele, infiltra-se na identidade, molda comportamentos futuros. Não é o desvio que provoca o rótulo. É o rótulo que fabrica o desvio.

Nas escolas, os alunos que ganham a etiqueta de "bagunceiros" costumam reproduzir esse papel até se tornarem, de fato, aquilo que esperam deles. No trabalho, aquele funcionário que uma vez cometeu um erro vira "distraído" ad aeternum. Nos bairros periféricos, quem veste a roupa "errada" ou anda com os "errados" vira suspeito antes mesmo de agir. O rótulo se antecipa ao comportamento. E molda o comportamento. A identidade do sujeito começa a se alinhar com aquilo que projetam sobre ele. É como se nos dessem uma fantasia social, e, por cansaço ou sobrevivência, acabássemos vestindo.

Etiquetar é organizar o caos — mas às custas de pessoas

O impulso de etiquetar nasce do nosso desejo de controle. Em um mundo caótico, classificar as pessoas em "normais" e "anormais" dá uma sensação de ordem. É reconfortante, mas profundamente reducionista. Quando você chama alguém de "vagabundo", você não precisa mais escutar a história dele. A etiqueta nos exime da empatia.

E mais: o processo de etiquetamento tem vínculos profundos com o poder. Quem tem poder nomeia; quem não tem, é nomeado. A elite define quem é "marginal", quem é "cidadão de bem", quem é "exemplo" ou "ameaça". Isso revela que o etiquetamento não é só um ato simbólico, mas uma ferramenta de controle social.

O rótulo como sentença

Para além da estigmatização, o etiquetamento pode produzir profecias autorrealizáveis. Michel Foucault, que não tratou diretamente da teoria do etiquetamento, mas a iluminou de modo indireto, mostrou como os sistemas disciplinares moldam os sujeitos que dizem apenas vigiar. O rótulo opera como um vírus lento: uma vez internalizado, pode se tornar a lente pela qual o sujeito vê a si mesmo.

Pense em alguém que é diagnosticado como "inadequado socialmente". Aos poucos, mesmo sem querer, ele pode começar a agir de modo retraído, a evitar contato, a desconfiar dos outros — e assim, paradoxalmente, se torna aquilo que disseram que era. O ciclo se fecha.

Rasgar a etiqueta: uma resistência

Mas há resistência. Há quem recuse o rótulo, quem o subverta. O artista que abraça a "loucura" para criar, o jovem que transforma o estigma da quebrada em força cultural, o idoso que decide mudar de vida e desafia o estereótipo da velhice passiva. Rasgar a etiqueta pode ser um ato de coragem — e de criação de novos significados.

O sociólogo brasileiro Jessé Souza também contribui para esse olhar, ao mostrar como a elite define o que é valor e o que é desvio no Brasil. Ele aponta que o "ralé" é uma invenção social, e que os rótulos servem para manter intactas as estruturas de dominação. Ou seja, por trás de cada etiqueta, há interesses.

Concluindo...

Etiquetar é rápido. Conhecer é demorado. Talvez por isso a gente viva num mundo de rótulos — porque não temos tempo (ou vontade) de conhecer de verdade. Mas, sociologicamente, cada etiqueta é também um espelho rachado: reflete tanto o outro quanto nossas próprias limitações em compreendê-lo. A pergunta que fica não é apenas “o que o outro é?”, mas “por que eu o vejo assim?”.

Na próxima vez que alguém parecer "esquisito", talvez o melhor seja perguntar o que há de esquisito em nossa própria pressa de rotular. Afinal, as etiquetas grudam nos outros, mas dizem muito mais sobre quem as cola.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Depois do Libertarianismo

Quando o filósofo se permite hesitar: Robert Nozick

A primeira vez que li algo sobre Nozick, foi no curso de Filosofia no IPA, achei em princípio que ele queria acabar com o mundo. Um Estado mínimo? Nada de políticas sociais? Pensei: “esse cara é o pesadelo dos professores de filosofia do ensino médio”.

Para entender é preciso saber que o conceito de Estado mínimo em Robert Nozick parte da ideia de que qualquer interferência estatal além da proteção dos direitos individuais — como a vida, a liberdade e a propriedade — é moralmente injustificável. Para ele, o Estado não deve redistribuir recursos nem promover políticas de bem-estar, pois isso implicaria usar o trabalho de uns para beneficiar outros, violando a autonomia individual. Em Anarquia, Estado e Utopia, Nozick argumenta que mesmo uma sociedade desigual pode ser justa, desde que as trocas e aquisições tenham ocorrido de forma voluntária. Assim, o Estado ideal seria quase invisível: não criaria igualdade, mas garantiria que ninguém invadisse a liberdade dos outros.

Mas depois fui encontrá-lo em um outro momento — mais maduro, mais calmo, quase um filósofo que parou para tomar um café consigo mesmo. E foi nesse reencontro, lendo Explicações Filosóficas, que percebi: Nozick não era apenas o libertário provocador de Anarquia, Estado e Utopia, mas alguém profundamente inquieto, disposto a abandonar a rigidez e se abrir à complexidade da experiência humana.

O filósofo que muda

Explicações Filosóficas é um livro curioso. Nele, Nozick troca o tom combativo por uma postura mais exploratória, quase humilde. Ele diz logo no início que prefere “oferecer explicações” em vez de “impor conclusões”. Parece pouco, mas é uma mudança de postura radical para um filósofo que, anos antes, havia proposto uma teoria política com a convicção de quem traça os limites do que é ou não justo.

Neste livro, Nozick mergulha em temas como a identidade pessoal, o livre-arbítrio, o conhecimento e o sentido da vida. E se em sua obra política anterior ele estava preocupado em defender a autonomia do indivíduo contra o peso do Estado, agora sua atenção se volta para dentro: o que significa ser esse “eu” autônomo? Como sei que continuo sendo o mesmo ao longo do tempo? E mais importante: por que tudo isso importa?

A busca pelo sentido

Um dos momentos mais bonitos do livro é quando Nozick fala sobre o sentido da vida. Ele não oferece uma resposta definitiva — não seria Nozick se fizesse isso —, mas propõe que o sentido pode estar na conexão com algo maior do que nós mesmos. Essa ideia não vem com uma roupagem religiosa, mas com um desejo quase existencial de que nossas ações participem de algo que ultrapasse o ego imediato.

É um Nozick mais “humano”, menos preocupado com sistemas fechados e mais atento às zonas cinzentas da vida. Ele parece aceitar que nem tudo pode ser deduzido logicamente ou resolvido com um contrato social.

Identidade e continuidade

Outro tema forte é o da identidade pessoal. Quem sou eu? E mais: como posso ser o mesmo ao longo do tempo, se tudo muda — meus pensamentos, meu corpo, minhas crenças? Aqui, Nozick nos lembra que a identidade não é uma substância imóvel, mas algo construído na continuidade da consciência, na história que contamos sobre nós mesmos. Somos uma espécie de narrativa em andamento.

Isso ressoa fortemente com nossas dúvidas cotidianas. Já se olhou no espelho e pensou: “Quem é essa pessoa que me olha de volta?” Nozick entende essa estranheza. Ele também se pergunta — mas em vez de tentar resolvê-la de uma vez por todas, caminha com ela.

Um filósofo reconciliado

Nozick não abandonou suas ideias libertárias. Ele apenas percebeu que, para além da política, há outros terrenos onde o pensamento precisa atuar com mais leveza, menos pretensão de controle. E talvez seja essa a maior lição de suas obras tardias: a filosofia não serve apenas para construir sistemas, mas para nos acompanhar nos momentos em que os sistemas falham.

Ele deixa de ser o jovem brilhante que quer vencer o debate para se tornar um pensador que conversa com as perguntas. Alguém que entende que viver é, em grande parte, conviver com mistérios — e que há uma dignidade em não querer apressar as respostas.


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Papel Social


 

Recordo que num certo dia, um tempinho atrás, peguei um ônibus lotado. Daqueles em que não há onde segurar, e o ar-condicionado só sopra no motorista. Uma senhora tentava equilibrar as sacolas no colo enquanto um adolescente, com fones de ouvido, ocupava o assento preferencial. Olhei em volta e pensei: e se ele estivesse no lugar dela? E se eu estivesse? Foi nesse instante, no balanço incômodo do coletivo, que me lembrei de John Rawls.

Rawls propôs uma ideia que, se virasse moda, mudaria o jogo da convivência humana: a justiça deve ser pensada sem saber quem seremos dentro da sociedade. Imagine criar as regras do mundo sem saber sua cor, classe, saúde, talento ou gênero. Você aceitaria um sistema onde 1% vive em condomínios com lagos artificiais e 99% sobrevive com transporte colapsado? Provavelmente não. Porque o problema é que a maioria das regras sociais são escritas depois que já sabemos de que lado da cidade nascemos.

Rawls chamou isso de “posição original” — uma espécie de tabuleiro neutro onde todos planejam a sociedade como se não soubessem onde cairão no dado da vida. E isso faz todo o sentido: ninguém colocaria armadilhas num caminho que pode ser o próprio.

Mas aqui entra uma ideia inovadora: e se levássemos essa ideia para os nossos micro-contratos diários? E se aplicássemos o "véu da ignorância" à fila do mercado, ao grupo de WhatsApp da família, ao momento de distribuir tarefas num projeto do trabalho?

No supermercado, você deixa o caixa rápido para alguém com menos itens, porque poderia ser você. No trabalho, você ouve aquela colega com dificuldade de expressão porque poderia ser você no lugar dela, com menos léxico e mais medo. No relacionamento amoroso, você se pergunta: “será que estou criando regras afetivas que só me favorecem?” — porque poderia ser o outro lado do amor.

Rawls também afirmava que desigualdades só são justificáveis se beneficiarem os mais vulneráveis. Ou seja, o elevador social precisa funcionar para todos — e não apenas para os que já moram na cobertura. O mérito, por mais bonito que pareça, é uma loteria genética e circunstancial. Você nasceu inteligente? Sorte sua. Nasceu em um lar que valorizava a leitura? Jackpot (prêmio acumulado). Agora, o que você faz com isso: constrói pontes ou apenas decora muros com seu sobrenome?

Se cada um de nós começasse a criar suas pequenas regras com base na possibilidade de ser o outro, talvez não precisássemos de leis para garantir o que a empatia resolveria sozinha. Rawls não inventou um mundo novo — ele apenas sugeriu que o imaginássemos antes de nos sabermos dentro dele. E isso muda tudo.

Quando desci do ônibus, aquela senhora já havia ido embora. O adolescente continuava sentado, ainda com os fones, alheio a tudo. Mas, de repente, tive vontade de voltar, sentar ao lado dele e perguntar: “Ei, e se fosse sua avó ali?”

"Se fosse você no meu lugar: a hora do recreio com John Rawls"

Na escola pública do bairro, o recreio começa com a fila na cantina. Crianças apressadas, coxinhas esgotadas em três minutos, e um menino que, mais uma vez, fica só com o suco. Atrás dele, um grupo comenta as roupas de outro colega — tênis falsificado, calça encurtada no tornozelo, mochila com zíper improvisado por um clipe de papel.

Eu estou ali como visitante, numa ação cultural com livros e conversas. Mas quem está realmente presente é ele — John Rawls, ainda que invisível, andando comigo entre os bancos do pátio. E se a escola fosse desenhada por alguém que não soubesse se nasceria com ou sem acesso a livros em casa, com ou sem café da manhã, com ou sem um ambiente silencioso para estudar? Como seria?

Rawls diria: comece desenhando a escola a partir da ignorância sobre sua origem. Sem saber se você será o filho da professora ou o da diarista. O que nasceria disso não seriam apenas boas intenções pedagógicas, mas estruturas que compensam, que redistribuem, que cuidam. Merenda reforçada, acolhimento emocional, biblioteca aberta até mais tarde, professores valorizados, política de escuta, e sobretudo, igualdade de oportunidades reais — não só no discurso de cartazes.

Mas Rawls também caminharia até a sala dos professores e perguntaria: "como está sendo feita a distribuição do tempo e dos recursos?". Se só os melhores alunos ganham mais atenção, isso é mérito ou reforço do privilégio? Se as crianças mais problemáticas são isoladas, isso é disciplina ou desistência disfarçada?

Talvez o maior desafio da escola — e da sociedade — seja equilibrar a equidade com a liberdade. Porque liberdade de aprender não basta se uns nascem já com os livros abertos diante deles e outros, nem sequer com luz elétrica em casa. O Princípio da Diferença de Rawls entra aí: desigualdades são toleráveis apenas se fizerem a vida dos mais frágeis melhorarem. Não se trata de todos terem o mesmo — mas de todos terem as mesmas chances de alcançar o melhor.

Na hora de ir embora, vejo uma professora ajudando um aluno a dobrar o uniforme. Ele sorri, ajeita a gola. Talvez esse gesto seja pequeno, mas Rawls, se estivesse ali de verdade, talvez sorrisse também. Porque é assim que se começa a justiça: não esperando o mundo mudar, mas se perguntando: e se fosse eu ali com aquele zíper quebrado?

"Se fosse você no meu lugar: uma rodada de Rawls no boteco"

Sexta-feira à noite, bar da esquina, garçom gente boa, cerveja trincando, e aquele grupo de amigos que sobreviveu aos anos, mas mal sobrevive às eleições. Um puxa assunto: “imposto é roubo”. Outro rebate: “rico devia pagar ainda mais”. Do outro lado da mesa, alguém tenta mudar de assunto com futebol, mas já era tarde. O clima virou debate. E eu, no meio deles, imaginei o Rawls pegando uma cadeira de plástico, servindo-se de uma porção de batata frita, e pedindo licença para entrar na conversa.

A primeira coisa que ele diria, com sotaque neutro e paciência de professor, seria: vamos imaginar que vocês vão construir a sociedade do zero. Mas sem saber quem vão ser nela. Vocês aceitam um modelo em que alguns podem lucrar milhões enquanto outros dependem de doações pra comprar gás? Mesmo sem saber se nascerão como empresários ou entregadores de app?

O silêncio da mesa viria rápido — talvez não pela profundidade da pergunta, mas porque é difícil debater com alguém que não está berrando, e sim propondo um jogo de imaginação.

No fundo, o que Rawls oferece é um método para pensar em comum mesmo com valores diferentes. Ele não obriga ninguém a pensar como o outro, mas propõe um ponto de partida neutro. A política, para ele, deveria se basear num consenso razoável — aquele espaço estreito onde pessoas com visões distintas ainda conseguem construir algo juntas. Algo justo, mesmo sem concordar em tudo.

No boteco, isso significaria parar de pensar só com o próprio CPF. Significaria perguntar: “que sociedade eu ajudaria a construir se não soubesse se nasceria branco, negro, homem, mulher, hétero, gay, saudável, doente, com ou sem herança?” A política sairia da arena dos memes e viraria um exercício de imaginação solidária.

Alguém retrucaria: “mas e o mérito, o esforço pessoal?” Rawls ouviria com calma, tomaria um gole de cerveja e responderia: “se você nasceu com certas vantagens — inteligência, beleza, apoio familiar, saúde — que parte disso foi realmente mérito seu?” E completaria: “o mérito, quando é justo, não exclui; ele inspira. Mas quando vira desculpa para desigualdade, é só ego fantasiado de justiça.”

A conta chega, a discussão se esfria. Amigos se abraçam, meio tensos, meio cansados, mas ainda amigos. Rawls levanta da cadeira invisível, sorri com aquela cara de quem nunca brigaria em caixa de comentário, e vai embora em silêncio.
E eu fico ali, pensando: talvez o problema não seja discordar. Talvez o problema seja nunca tentar imaginar o outro lado da mesa — ou da vida.

"Se fosse você no meu lugar: pronto-socorro com Rawls"

Duas da manhã. Pronto-socorro lotado. Bebê chorando, senhor com tosse insistente, gente encostada nas paredes, esperando ser chamada. A televisão do canto repete as manchetes, como se a dor daquelas pessoas fosse só mais uma notícia. Eu estou ali acompanhando um parente, cansado, como todos. E, em meio ao cheiro de álcool e desespero contido, sinto alguém sentar ao meu lado: é Rawls, o filósofo invisível das filas injustas.

Ele não olha o celular, não reclama da demora, apenas observa. E depois de alguns minutos, diz: "É aqui que se vê o contrato social falhando."

Rawls acreditava que a estrutura básica da sociedade deveria ser justa para todos — não só no papel, mas na vida concreta. E nada mais concreto que uma sala de espera de hospital público. Porque aqui ninguém é "cidadão de bem", "empreendedor", "patriota" ou "militante". Aqui todo mundo é, antes de tudo, corpo vulnerável, sujeito ao acaso biológico.

Ele me olha e pergunta, como quem já sabe a resposta: “se você fosse escolher o sistema de saúde sem saber se nasceria saudável ou com uma doença rara, com plano privado ou dependendo do SUS, como o desenharia?”

A pergunta é incômoda. Porque ela nos obriga a pensar a sociedade não a partir do nosso lugar fixo, mas a partir da possibilidade de estarmos em qualquer lugar — inclusive no chão da enfermaria, esperando uma maca que não chega.

No mundo de Rawls, a justiça não é caridade, nem favor. É um pacto onde os mais frágeis são a medida da organização do todo. Se a política de saúde privilegia quem pode pagar, o contrato está quebrado. Se os médicos atendem vinte pacientes por hora por pura exaustão, o contrato está fraturado. Se há mais investimento em estética de clínica privada do que em saneamento básico, o contrato foi assinado só por quem já estava no andar de cima.

E aqui vem o detalhe que mais me impressiona em Rawls: ele não propõe utopia. Ele aceita que haverá desigualdades — mas exige que elas sirvam para melhorar a vida dos que têm menos. Ou seja, a diferença só é justa quando é ponte, não muro.

Uma enfermeira chama meu parente pelo nome. Levanto. Antes de entrar, olho de novo para o banco. Rawls já não está. Mas sua pergunta ainda vibra na cabeça:
se fosse eu na maca, no leito, sem plano, sem voz — como eu gostaria que o sistema fosse?

"Se fosse você no meu lugar: Rawls no condomínio fechado"

Domingo de sol. Grama aparada, crianças de bicicleta, churrasqueiras acesas, silêncio quase europeu entre uma rua e outra. Caminho por um condomínio fechado, desses com nomes estrangeiros e guardas na portaria que nos tratam com aquele formalismo automático. Estou visitando um amigo, e confesso: dá um certo alívio andar por um lugar onde não se ouvem buzinas nem latidos de cachorro atrás de grades.

Mas é claro que Rawls está ali, invisível, caminhando comigo pela rua sem buracos. Ele olha ao redor, vê os muros altos, os sistemas de câmera, o playground colorido. Sorri com educação, mas pergunta em voz baixa: “e quem ficou do lado de fora?”

É a pergunta que ninguém gosta de fazer quando está dentro. O condomínio é a realização arquitetônica da ideia de privilégio seguro. Aqui, quem conseguiu escapar das falhas da cidade constrói uma versão melhorada da mesma — só que para poucos.

Rawls não criticaria o conforto em si. Mas questionaria o sistema que o produz. Se a cidade inteira fosse construída a partir da “posição original” — ou seja, se todos tivessem que desenhá-la sem saber se nasceriam dentro ou fora desses muros, será que esses muros sequer existiriam?

Talvez as ruas seriam melhores para todos. As escolas públicas teriam o mesmo nível das particulares. Os parques seriam frequentáveis por qualquer criança, e os guardas, substituídos por confiança cidadã. Mas o que vemos é o contrário: à medida que os condomínios se expandem, a cidade se fragmenta. Há uma duplicação de serviços — segurança, lazer, transporte — onde os mais ricos criam sua própria cidade paralela, alheia à sorte dos outros.

Rawls caminharia até a portaria, apertaria o botão do interfone, e diria: a liberdade de viver bem só é justa se não excluir os outros da possibilidade de também viverem com dignidade. Caso contrário, ela é apenas uma versão sofisticada do egoísmo.

Na hora de ir embora, vejo uma funcionária uniformizada esperando o ônibus do lado de fora, debaixo do sol. Ela passou a manhã dentro, servindo. E agora volta para a cidade real, onde os buracos não têm nome em francês.

Antes de fechar o portão, Rawls olha para ela, depois para mim, e pergunta de novo:
e se fosse você no lugar dela?

E é isso. Rawls já apareceu no ônibus, no bar, no hospital, no condomínio — sempre puxando conversa onde ninguém está muito a fim de filosofar. Mas ele insiste. E talvez seja esse o papel da filosofia: cutucar o conforto, provocar empatia, fazer a gente imaginar o outro lugar, o outro rosto, a outra sorte.

Ele não veio com fórmulas prontas, nem promessas de mundo ideal. Só com uma ideia simples e difícil: a justiça começa quando paramos de organizar o mundo só a partir de onde estamos.

A cada cenário, Rawls nos convida a uma pergunta essencial:
“E se fosse você no lugar do outro?”

No fundo, viver eticamente talvez seja isso — um exercício contínuo de imaginar-se fora do próprio lugar, antes de julgar, votar, escolher ou construir.

E mesmo que a gente não veja Rawls por aí, ele segue à espreita, nas entrelinhas das decisões mais banais.

Na próxima vez que você entrar numa fila, abrir a boca num debate ou passar por alguém invisível na calçada... quem sabe ele não esteja ali, ao seu lado, fazendo aquela pergunta que não deixa ninguém sair igual?

Embora sua obra principal, Uma Teoria da Justiça, tenha sido publicada em 1971, as questões que ele levanta continuam totalmente vivas no debate político e social contemporâneo. Como podemos perceber Rawls é atual porque propõe um jeito de pensar a sociedade com justiça, sem utopia, mas com imaginação ética.
Ele não oferece soluções mágicas, mas um ponto de partida para pensar em conjunto — mesmo entre quem discorda.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Exclusão Social

Outro dia, voltando para casa, parei no sinal e vi uma senhora sentada na calçada com um cartaz no colo. Nem consegui ler o que dizia. O que me chamou atenção foi o olhar de quem não esperava mais nada. A cidade passava por ela como se fosse uma sombra que não fizesse barulho. Foi ali, no meio do nada cotidiano, que me bateu a pergunta: como a gente aprende a ignorar tanta gente?

Vivemos cercados de gente invisível. Invisível não porque sumiu, mas porque foi sumariamente excluída. A exclusão social não é só ausência de renda, de moradia ou de acesso. É uma arquitetura inteira de não pertencimento, construída aos poucos, com pequenas demarcações de território: quem pode entrar, quem pode falar, quem pode ser ouvido.

A modernidade prometeu inclusão através do progresso. Mas o que ela entregou foi uma espécie de "conectividade seletiva". Estamos todos na rede, mas nem todos têm voz. Nem todos têm feed. Para muitos, o mundo digital é só vitrine — janela pela qual se observa a festa para a qual não foram convidados.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu ajuda a entender essa engrenagem da exclusão quando propõe o conceito de capital simbólico. Para além do dinheiro ou da força física, o valor de uma pessoa numa sociedade também depende do prestígio, do reconhecimento, do saber legitimado. Aqueles que não dominam os códigos culturais aceitos — a forma certa de falar, vestir, circular — são excluídos não só materialmente, mas também simbolicamente. A exclusão, assim, não é apenas um estado social: é um processo de negação contínua, uma marca de desvalorização que afeta até mesmo a maneira como o sujeito se enxerga.

Do ponto de vista filosófico, Emmanuel Levinas fala do rosto do outro como o lugar da ética. Ele nos convida a parar de ver o outro como objeto de análise e a começar a vê-lo como convocação. O rosto daquele que é excluído não é apenas um pedido de ajuda — é uma acusação silenciosa, um lembrete de que nosso modelo de sociedade ainda está devendo muito.

Por outro lado, podemos pensar com o brasileiro Milton Santos, que dizia que a globalização poderia ser perversa ou solidária, dependendo de quem a conduz. Para ele, havia esperança de uma outra racionalidade — uma que não marginalizasse o diferente, mas o acolhesse como peça fundamental do mosaico social.

A exclusão social é, no fundo, um espelho. Ela revela mais sobre quem exclui do que sobre quem é excluído. Revela nossos medos, nossos apegos à ordem, nossas crenças em meritocracias frágeis. Enquanto fingimos que a desigualdade é culpa do indivíduo, poupamos a estrutura.

E é justamente por isso que a exclusão social precisa ser desmontada como se desmonta uma armadilha: com cuidado, com escuta, com coragem de admitir que talvez, por omissão ou costume, tenhamos ajudado a montar esse palco onde uns poucos dançam enquanto muitos varrem o chão.

No fim das contas, talvez a verdadeira revolução não comece com grandes discursos, mas com o simples ato de parar — parar de correr, parar de julgar, parar pra olhar. E reconhecer, ali na calçada do lado, que ninguém deveria ser invisível num mundo que se diz humano.


domingo, 9 de fevereiro de 2025

Intolerância Religiosa

A intolerância religiosa é um daqueles fenômenos que parecem absurdos quando observados de fora, mas que se manifestam com uma força assustadora na vida cotidiana. O que faz com que alguém não apenas discorde de uma crença, mas queira destruí-la ou impedir que outros a sigam? Se a fé é algo tão pessoal, por que ela gera conflitos coletivos tão intensos? Para entender essa questão, precisamos explorar não apenas os aspectos sociais e históricos, mas também a relação entre identidade, poder e o medo do desconhecido.

A Raiz Filosófica da Intolerância Religiosa

Desde a antiguidade, a religião tem sido uma das principais forças estruturantes da sociedade. Filósofos como Platão e Aristóteles discutiam a relação entre religião e política, enquanto na Idade Média, Santo Agostinho e Tomás de Aquino buscavam conciliar fé e razão. O problema da intolerância, no entanto, nasce do momento em que a crença religiosa passa a ser vista como uma verdade absoluta e inquestionável. Quando uma religião se torna hegemônica, há uma tendência a excluir ou perseguir quem não compartilha da mesma visão de mundo.

Baruch Spinoza, no século XVII, argumentava que a intolerância religiosa decorre da tentativa das instituições de controlar o pensamento humano. Em seu "Tratado Teológico-Político", ele defendeu a liberdade de crença e alertou para os perigos da fusão entre poder religioso e político. Para ele, a verdadeira espiritualidade não deveria ser imposta, mas sim fruto da reflexão individual.

Já Jean-Paul Sartre, dentro do existencialismo, apontava que as crenças são, em grande parte, construções humanas, e que a intolerância nasce do medo de confrontar a liberdade do outro. Em outras palavras, quando alguém rejeita a religião alheia de forma violenta, o que está em jogo não é apenas a fé, mas a insegurança sobre a própria identidade.

O Medo do Outro e a Construção da Identidade

A intolerância religiosa frequentemente se manifesta como uma aversão ao desconhecido. No cotidiano, isso se traduz em olhares tortos para quem veste um turbante, para um centro de umbanda sendo atacado ou para a insistência em "converter" quem segue outro caminho espiritual. Quando uma crença diferente se apresenta, ela desafia nossas certezas e nos obriga a pensar se realmente temos razão. Para muitos, essa dúvida é insuportável.

O filósofo brasileiro Milton Santos observava que a globalização cria um paradoxo: ao mesmo tempo em que nos aproxima de diferentes culturas e crenças, também gera reações de fechamento e resistência. A intolerância religiosa pode ser vista, então, como uma resposta defensiva diante de um mundo cada vez mais plural. Em vez de lidar com a complexidade, opta-se pela rejeição.

Superar a Intolerância: Um Exercício de Alteridade

Se a intolerância nasce do medo e da insegurança, a saída para esse problema deve envolver o reconhecimento da alteridade. Emmanuel Levinas argumentava que o encontro com o outro é a base da ética. Ou seja, só podemos agir de forma justa quando reconhecemos no outro um ser humano tão legítimo quanto nós mesmos. Isso exige um esforço consciente para ouvir, dialogar e respeitar.

No Brasil, a intolerância religiosa ainda é um desafio, especialmente contra religiões de matriz africana, que sofrem preconceito histórico. Combater esse problema requer não apenas leis e políticas públicas, mas uma mudança cultural que passe pelo sistema educacional e pela formação de uma mentalidade aberta ao diálogo.

A intolerância religiosa é um problema filosófico, social e ético que nasce da rigidez das certezas, do medo do diferente e da instrumentalização da fé para fins de poder. O caminho para superá-la passa pela valorização do pensamento crítico e da empatia. Como disse Voltaire, "posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Talvez seja hora de aplicarmos esse princípio não apenas à liberdade de expressão, mas também à liberdade de crença.


domingo, 2 de fevereiro de 2025

Assédios

Quando a Linha Invisível é Ultrapassada

As cafeterias são mundos de vida vibrante e cheia de estórias. Outro dia, num café movimentado, vi uma cena que me fez refletir. Um homem insistia em puxar conversa com a atendente, mesmo depois dela ter dado sinais claros de que não queria papo. Sorrisos forçados, respostas monossilábicas, um olhar de socorro para a colega ao lado. O homem parecia alheio a tudo isso. Para ele, era só uma conversa amigável. Para ela, era um incômodo, talvez até medo.

A cena ilustra um problema antigo, mas que hoje ganha novas camadas de discussão: o assédio. Ele não está apenas no ambiente de trabalho, nem se limita ao aspecto sexual. O assédio pode ser psicológico, moral, digital. Ele ocorre quando alguém atravessa um limite que não deveria – e, pior, quando se recusa a enxergar que o ultrapassou.

O Poder na Dinâmica do Assédio

O filósofo francês Michel Foucault nos ajuda a entender o assédio ao analisar as relações de poder. Para ele, o poder não é uma estrutura fixa, mas algo que circula em redes, manifestando-se nos pequenos gestos do cotidiano. O assédio acontece, muitas vezes, porque existe uma assimetria nessa relação: um chefe que pressiona um funcionário, um professor que abusa da autoridade, um influenciador que expõe seguidores ao ridículo. O problema não é só a conduta em si, mas a incapacidade de resistência por parte da vítima, seja por medo, dependência ou insegurança.

A sutileza do assédio também complica sua identificação. Quantas vezes ouvimos frases como “era só uma brincadeira”, “você está exagerando”, “ele não fez por mal”? Essa minimização faz parte da engrenagem que mantém o problema funcionando. O filósofo Zygmunt Bauman diria que vivemos em uma sociedade líquida, onde os limites entre o aceitável e o inaceitável são constantemente negociados – e, muitas vezes, distorcidos para beneficiar quem tem mais poder.

A Cultura da Insistência

O assédio também se alimenta de um problema cultural: a romantização da insistência. Em filmes, novelas e músicas, o “não” é visto como um desafio a ser vencido. O problema é que essa mentalidade legitima abusos, tornando natural a ideia de que certas barreiras não precisam ser respeitadas. A filósofa brasileira Djamila Ribeiro critica essa normalização, mostrando como ela reforça desigualdades e perpetua opressões históricas.

E no ambiente profissional? Pierre Bourdieu falava de um “habitus” social que molda comportamentos e expectativas. Em muitos lugares, o assédio moral é um reflexo desse habitus, onde a hierarquia justifica abusos sob a máscara da “cobrança por resultados” ou do “jeito duro de liderar”.

Como Romper o Ciclo?

A primeira resposta parece óbvia: educação. Mas não basta ensinar regras, é preciso mudar mentalidades. Um “não” não precisa ser gritado para ser válido. Desconforto não precisa virar sofrimento para ser levado a sério.

A segunda resposta é estrutural: fortalecer canais de denúncia, dar segurança para que as vítimas falem e garantir que as consequências sejam reais. Se o assédio persiste, é porque muitas vezes ele não custa nada para quem o pratica.

Mas há também a responsabilidade individual. Todos nós, em algum momento, já fomos espectadores passivos de alguma forma de assédio. Quantas vezes deixamos passar uma piada agressiva, um comentário constrangedor, um abuso disfarçado de brincadeira? O silêncio é parte do problema.

No café onde tudo começou, a atendente foi salva pela colega, que entrou na conversa e, com um tom mais firme, fez o homem recuar. Uma pequena resistência, mas que fez diferença naquele momento. O problema do assédio não se resolve de uma vez, mas se enfraquece quando as pessoas param de fingir que ele não existe. Afinal, respeito não deveria ser uma concessão, mas uma regra básica de convivência.