Outro dia, no final da tarde, vi um senhor sentado na praça mexendo lentamente nas peças de um tabuleiro de xadrez solitário. Ele não estava jogando com ninguém, apenas reordenando as peças, talvez perdido em pensamentos. A cena parecia uma metáfora viva da nossa época: peças espalhadas, sem jogo, sem adversário, sem propósito claro. Vivemos um tempo em que as grandes ideologias, que antes davam uma narrativa ao tabuleiro da história, parecem ter perdido o fôlego.
A
crise das ideologias não é apenas um fenômeno político, mas um estado de
espírito. Antes, as grandes doutrinas – socialismo, liberalismo, nacionalismo –
prometiam caminhos claros para o futuro. Cada uma oferecia uma explicação sobre
o que é justo, sobre como o mundo deveria ser e sobre o lugar de cada indivíduo
na sociedade. Hoje, essas promessas soam gastas, como slogans publicitários
antigos.
A
desilusão não veio de repente. Foi um desgaste lento, como uma parede que vai
perdendo a tinta com o tempo. Os horrores do século XX, a globalização e a
fragmentação cultural foram minando as certezas. O capitalismo venceu, mas sem
festa de comemoração – apenas uma rotina cinzenta de consumo e desigualdade. O
socialismo, por outro lado, sobrevive em nichos, mais como nostalgia do que
como projeto viável. O nacionalismo ressurgiu, mas com uma máscara ressentida,
mais preocupado em excluir do que em unir.
Mas
o que acontece quando as ideologias desmoronam? O filósofo Zygmunt Bauman
falava da modernidade líquida, uma época em que nada permanece sólido por muito
tempo. Sem grandes narrativas para organizar o mundo, nos agarramos a causas
fragmentadas, a identidades voláteis. As ideologias se transformaram em
hashtags, em campanhas de curto prazo, em pequenas revoluções sem continuidade.
A indignação ainda existe, mas é instantânea e volátil, como o conteúdo de um
story no Instagram.
Talvez
estejamos vivendo um momento de transição, uma pausa entre o que foi e o que
ainda não sabemos nomear. A crise das ideologias não significa o fim das
ideias, mas o fim das certezas dogmáticas. Pode ser um tempo de liberdade, mas
também de angústia. O tabuleiro não está vazio porque o jogo acabou, mas porque
estamos aprendendo novas regras, ou até mesmo inventando outro jogo.
N.
Sri Ram, em A Aproximação Teosófica à Vida, falava sobre a necessidade de uma
consciência mais ampla, capaz de unir o espírito crítico com a intuição
profunda. Talvez essa seja a saída para a crise: não buscar uma nova ideologia
para substituir as antigas, mas aprender a habitar o vazio, a conviver com a
incerteza e a tecer novas visões que brotam mais da experiência do que de
doutrinas prontas.
O
senhor da praça continuava ali, mexendo nas peças, sem se importar se havia ou
não regras definidas. Talvez o jogo agora seja justamente esse: mover as peças
pelo puro prazer de pensar, sem esperar que alguém declare xeque-mate.