Estava sentado em um banco de praça, observando meu neto brincar com sombras projetadas pelo sol, me dei conta: ainda vivemos no mundo dos mitos. A ideia de que o pensamento mítico pertence a um passado remoto, onde deuses e heróis ditavam os rumos da realidade, é uma ilusão moderna. Ele não apenas persiste, mas continua a moldar nossa forma de compreender o mundo, de construir significados e de estruturar nossas crenças mais profundas.
O
pensamento mítico, longe de ser um resquício da antiguidade, se manifesta nas
narrativas contemporâneas que organizam nossa existência. Joseph Campbell e
Mircea Eliade foram dois dos grandes estudiosos que demonstraram como os mitos
são arquétipos recorrentes, funcionando como lentes através das quais
interpretamos nossas experiências. Mas e se olharmos além do senso comum e
percebermos que a mitologia não se limita a fábulas ancestrais? Que o
pensamento mítico se infiltrou no nosso cotidiano de maneira sutil e
inescapável?
Na
era digital, os mitos antigos continuam a atuar, mesmo sob novas roupagens.
Tomemos como exemplo a busca pelo "escolhido", uma narrativa central
em diversas mitologias. Seja em ambientes corporativos ou no esporte, persiste
a crença de que há indivíduos excepcionalmente predestinados ao sucesso, como
se possuíssem uma dádiva divina. Assim como Aquiles foi moldado para ser o
maior guerreiro da Grécia, acreditamos que certos CEOs ou atletas nascem com
uma essência especial, esquecendo que suas trajetórias também são feitas de
esforço, circunstâncias e rede de apoio. A idolatria moderna reencena velhos
mitos, reforçando a ideia de que alguns são destinados à grandeza enquanto
outros permanecem na obscuridade.
O
mito é uma forma de dar sentido ao caos. Ele surge quando a lógica linear falha
em capturar a complexidade da vida. Nos relacionamentos, no trabalho, na
política e na cultura, criamos narrativas míticas para preencher lacunas de
compreensão. O sucesso, por exemplo, é frequentemente mitologizado: heróis
empresariais surgem de origens humildes, superam provações e alcançam o Olimpo
corporativo. Da mesma forma, a política se alimenta de mitos nacionais, heróis
e vilões, estruturas míticas que organizam e justificam discursos.
E
há ainda os mitos pessoais, aqueles que cada um constrói sobre si mesmo. Quem
somos nós senão personagens de uma narrativa que contamos a nós mesmos? Nossa
identidade se estrutura em torno de eventos que selecionamos, enfeitamos e
ressignificamos, criando uma lógica interna que nos torna protagonistas de
nossa própria mitologia. Como observa Roland Barthes, a mitologia moderna não é
um conjunto de fábulas distantes, mas um sistema de signos que estrutura o
mundo e nossas experiências diárias.
A
grande questão filosófica é: como conciliar pensamento mítico e racionalidade?
Se os mitos continuam a nos governar, como podemos distinguir entre mitos que
nos libertam e aqueles que nos aprisionam? Um mito pode dar sentido, mas também
pode obscurecer a verdade. Nietzsche já alertava para o perigo das verdades
fossilizadas, que nada mais são do que mitos que se passaram por realidade
objetiva.
O
pensamento mítico não morreu e talvez nunca morra. Ele se adapta, se reformula
e segue nos guiando. O desafio contemporâneo é usá-lo de forma consciente:
identificar os mitos que nos regem e questioná-los, sem perder a capacidade de
se encantar com as narrativas que dão sentido à existência. Afinal, talvez o
verdadeiro mito moderno seja acreditar que vivemos sem mitos.