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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Etiquetamento Social

Um espelho rachado entre o eu e o outro

Outro dia, sentado num banco de praça, vi uma senhora puxar a neta pela mão e sussurrar: "Não chega perto daquele ali, é meio esquisito". O "esquisito" era só um rapaz de moletom cinza, com fones de ouvido e olhar perdido — talvez perdido em música, talvez em pensamentos, talvez em dor. Aquilo me fez pensar. Como esse impulso de nomear os outros, de pendurar neles etiquetas invisíveis, guia silenciosamente as engrenagens da vida social.

A sociologia chama isso de etiquetamento (ou labelling, como preferem os anglófilos acadêmicos), e a teoria do etiquetamento é um dos campos mais provocativos da criminologia e da sociologia da marginalidade. Mas ela vai muito além do crime. Está no modo como chamamos de "problemático" o aluno inquieto, "difícil" a mulher que não abaixa a cabeça, "louco" o que reage fora do script.

O mundo como uma vitrine de rótulos

A ideia central do etiquetamento é simples e perversa: a sociedade cria desvios ao nomear e reagir ao que considera desvio. Howard Becker, um dos grandes nomes desse campo, escreveu que "desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação, por outros, de regras e sanções a um 'infrator'". Em outras palavras, você não é desviado até alguém te dizer que é.

Becker vai além: ele diz que, ao definir quem são os "desviantes", a sociedade cria uma linha invisível entre os "normais" e os "anormais", entre os "dentro" e os "fora". E pior: quem é rotulado como desvio passa a se ver com os olhos dos outros. É um processo de dupla prisão — o olhar social que julga, e o olhar interno que se acostuma ao julgamento. Assim, a etiqueta deixa de ser só externa: ela gruda na pele, infiltra-se na identidade, molda comportamentos futuros. Não é o desvio que provoca o rótulo. É o rótulo que fabrica o desvio.

Nas escolas, os alunos que ganham a etiqueta de "bagunceiros" costumam reproduzir esse papel até se tornarem, de fato, aquilo que esperam deles. No trabalho, aquele funcionário que uma vez cometeu um erro vira "distraído" ad aeternum. Nos bairros periféricos, quem veste a roupa "errada" ou anda com os "errados" vira suspeito antes mesmo de agir. O rótulo se antecipa ao comportamento. E molda o comportamento. A identidade do sujeito começa a se alinhar com aquilo que projetam sobre ele. É como se nos dessem uma fantasia social, e, por cansaço ou sobrevivência, acabássemos vestindo.

Etiquetar é organizar o caos — mas às custas de pessoas

O impulso de etiquetar nasce do nosso desejo de controle. Em um mundo caótico, classificar as pessoas em "normais" e "anormais" dá uma sensação de ordem. É reconfortante, mas profundamente reducionista. Quando você chama alguém de "vagabundo", você não precisa mais escutar a história dele. A etiqueta nos exime da empatia.

E mais: o processo de etiquetamento tem vínculos profundos com o poder. Quem tem poder nomeia; quem não tem, é nomeado. A elite define quem é "marginal", quem é "cidadão de bem", quem é "exemplo" ou "ameaça". Isso revela que o etiquetamento não é só um ato simbólico, mas uma ferramenta de controle social.

O rótulo como sentença

Para além da estigmatização, o etiquetamento pode produzir profecias autorrealizáveis. Michel Foucault, que não tratou diretamente da teoria do etiquetamento, mas a iluminou de modo indireto, mostrou como os sistemas disciplinares moldam os sujeitos que dizem apenas vigiar. O rótulo opera como um vírus lento: uma vez internalizado, pode se tornar a lente pela qual o sujeito vê a si mesmo.

Pense em alguém que é diagnosticado como "inadequado socialmente". Aos poucos, mesmo sem querer, ele pode começar a agir de modo retraído, a evitar contato, a desconfiar dos outros — e assim, paradoxalmente, se torna aquilo que disseram que era. O ciclo se fecha.

Rasgar a etiqueta: uma resistência

Mas há resistência. Há quem recuse o rótulo, quem o subverta. O artista que abraça a "loucura" para criar, o jovem que transforma o estigma da quebrada em força cultural, o idoso que decide mudar de vida e desafia o estereótipo da velhice passiva. Rasgar a etiqueta pode ser um ato de coragem — e de criação de novos significados.

O sociólogo brasileiro Jessé Souza também contribui para esse olhar, ao mostrar como a elite define o que é valor e o que é desvio no Brasil. Ele aponta que o "ralé" é uma invenção social, e que os rótulos servem para manter intactas as estruturas de dominação. Ou seja, por trás de cada etiqueta, há interesses.

Concluindo...

Etiquetar é rápido. Conhecer é demorado. Talvez por isso a gente viva num mundo de rótulos — porque não temos tempo (ou vontade) de conhecer de verdade. Mas, sociologicamente, cada etiqueta é também um espelho rachado: reflete tanto o outro quanto nossas próprias limitações em compreendê-lo. A pergunta que fica não é apenas “o que o outro é?”, mas “por que eu o vejo assim?”.

Na próxima vez que alguém parecer "esquisito", talvez o melhor seja perguntar o que há de esquisito em nossa própria pressa de rotular. Afinal, as etiquetas grudam nos outros, mas dizem muito mais sobre quem as cola.