Um espelho rachado entre o eu e o outro
Outro
dia, sentado num banco de praça, vi uma senhora puxar a neta pela mão e
sussurrar: "Não chega perto daquele ali, é meio esquisito". O
"esquisito" era só um rapaz de moletom cinza, com fones de ouvido e
olhar perdido — talvez perdido em música, talvez em pensamentos, talvez em dor.
Aquilo me fez pensar. Como esse impulso de nomear os outros, de pendurar neles
etiquetas invisíveis, guia silenciosamente as engrenagens da vida social.
A
sociologia chama isso de etiquetamento (ou labelling, como
preferem os anglófilos acadêmicos), e a teoria do etiquetamento é um dos campos
mais provocativos da criminologia e da sociologia da marginalidade. Mas ela vai
muito além do crime. Está no modo como chamamos de "problemático" o
aluno inquieto, "difícil" a mulher que não abaixa a cabeça,
"louco" o que reage fora do script.
O
mundo como uma vitrine de rótulos
A
ideia central do etiquetamento é simples e perversa: a sociedade cria
desvios ao nomear e reagir ao que considera desvio. Howard Becker, um dos
grandes nomes desse campo, escreveu que "desvio não é uma qualidade do ato
que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação, por outros, de regras e
sanções a um 'infrator'". Em outras palavras, você não é desviado até
alguém te dizer que é.
Becker
vai além: ele diz que, ao definir quem são os "desviantes", a
sociedade cria uma linha invisível entre os "normais" e os
"anormais", entre os "dentro" e os "fora". E
pior: quem é rotulado como desvio passa a se ver com os olhos dos outros. É um
processo de dupla prisão — o olhar social que julga, e o olhar interno que se
acostuma ao julgamento. Assim, a etiqueta deixa de ser só externa: ela gruda na
pele, infiltra-se na identidade, molda comportamentos futuros. Não é o desvio
que provoca o rótulo. É o rótulo que fabrica o desvio.
Nas
escolas, os alunos que ganham a etiqueta de "bagunceiros" costumam
reproduzir esse papel até se tornarem, de fato, aquilo que esperam deles. No
trabalho, aquele funcionário que uma vez cometeu um erro vira
"distraído" ad aeternum. Nos bairros periféricos, quem veste a roupa
"errada" ou anda com os "errados" vira suspeito antes mesmo
de agir. O rótulo se antecipa ao comportamento. E molda o comportamento. A
identidade do sujeito começa a se alinhar com aquilo que projetam sobre ele. É
como se nos dessem uma fantasia social, e, por cansaço ou sobrevivência,
acabássemos vestindo.
Etiquetar
é organizar o caos — mas às custas de pessoas
O
impulso de etiquetar nasce do nosso desejo de controle. Em um mundo caótico,
classificar as pessoas em "normais" e "anormais" dá uma
sensação de ordem. É reconfortante, mas profundamente reducionista. Quando você
chama alguém de "vagabundo", você não precisa mais escutar a história
dele. A etiqueta nos exime da empatia.
E
mais: o processo de etiquetamento tem vínculos profundos com o poder.
Quem tem poder nomeia; quem não tem, é nomeado. A elite define quem é
"marginal", quem é "cidadão de bem", quem é
"exemplo" ou "ameaça". Isso revela que o etiquetamento não
é só um ato simbólico, mas uma ferramenta de controle social.
O
rótulo como sentença
Para
além da estigmatização, o etiquetamento pode produzir profecias
autorrealizáveis. Michel Foucault, que não tratou diretamente da teoria do
etiquetamento, mas a iluminou de modo indireto, mostrou como os sistemas
disciplinares moldam os sujeitos que dizem apenas vigiar. O rótulo opera como
um vírus lento: uma vez internalizado, pode se tornar a lente pela qual o
sujeito vê a si mesmo.
Pense
em alguém que é diagnosticado como "inadequado socialmente". Aos
poucos, mesmo sem querer, ele pode começar a agir de modo retraído, a evitar
contato, a desconfiar dos outros — e assim, paradoxalmente, se torna aquilo que
disseram que era. O ciclo se fecha.
Rasgar
a etiqueta: uma resistência
Mas
há resistência. Há quem recuse o rótulo, quem o subverta. O artista que abraça
a "loucura" para criar, o jovem que transforma o estigma da quebrada
em força cultural, o idoso que decide mudar de vida e desafia o estereótipo da
velhice passiva. Rasgar a etiqueta pode ser um ato de coragem — e de criação de
novos significados.
O
sociólogo brasileiro Jessé Souza também contribui para esse olhar, ao
mostrar como a elite define o que é valor e o que é desvio no Brasil. Ele
aponta que o "ralé" é uma invenção social, e que os rótulos servem
para manter intactas as estruturas de dominação. Ou seja, por trás de cada
etiqueta, há interesses.
Concluindo...
Etiquetar
é rápido. Conhecer é demorado. Talvez por isso a gente viva num mundo de
rótulos — porque não temos tempo (ou vontade) de conhecer de verdade. Mas,
sociologicamente, cada etiqueta é também um espelho rachado: reflete tanto o
outro quanto nossas próprias limitações em compreendê-lo. A pergunta que fica
não é apenas “o que o outro é?”, mas “por que eu o vejo assim?”.
Na
próxima vez que alguém parecer "esquisito", talvez o melhor seja
perguntar o que há de esquisito em nossa própria pressa de rotular. Afinal, as
etiquetas grudam nos outros, mas dizem muito mais sobre quem as cola.
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