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sexta-feira, 23 de maio de 2025

Os Muitos


Há momentos em que somos invadidos pela sensação de estarmos cercados por "os muitos". No trânsito, num mercado lotado, na multidão silenciosa do transporte público. Um conjunto de pessoas reunidas por acaso, mas que, paradoxalmente, compartilham um fragmento de tempo e espaço. O que significa estar entre muitos? Quem são, afinal, "os muitos"?

Mas há também outra multidão: a que habita dentro de nós. Aqueles pequenos “eus” que surgem conforme a situação. O que acorda otimista. O que critica tudo. O que ama. O que teme. O que apenas observa. Em certas manhãs, somos como um condomínio interno, com vários moradores discutindo silenciosamente qual caminho tomar. Não raro, agimos sem saber qual “eu” tomou a decisão. E mesmo quando achamos que sabemos, há dúvida: foi mesmo escolha ou reflexo? Intuição ou impulso? Foi, em termos filosóficos, justificado, verdadeiro e acreditado?

Essa última tríade, a definição clássica de conhecimento herdada de Platão, parecia sólida até Edmund Gettier, em 1963, publicar um curto artigo que desmontaria sua simplicidade. Gettier mostrou que é possível termos uma crença verdadeira, justificada — e mesmo assim não termos conhecimento. Seus contraexemplos são simples, quase banais, mas desestruturam a base do saber: alguém pode ter todas as razões do mundo para acreditar em algo, aquilo pode inclusive ser verdade — mas se a verdade surgir por acaso, sem uma causa suficiente, então o que há ali não é conhecimento, é sorte.

E aqui surge o ponto: a causa suficiente. A verdadeira raiz da certeza. Aquilo que une os elementos da experiência de forma sólida, legítima. Sem ela, somos apenas muitos fatos desconexos, coincidências andando de mãos dadas com suposições bem embasadas.

Será que não somos, também nós, como os exemplos de Gettier? Fragmentos bem articulados, mas cuja ligação é acidental? Um eu que acredita em si, justifica seus atos, parece coerente — mas que, sem a causa suficiente, é apenas uma construção de sorte?

Vivemos em tempos em que o "saber de si" é moeda valorizada. Autoconhecimento, propósito, identidade. Mas o que acontece quando essa identidade é formada por dados verdadeiros e bem justificados... só que por razões erradas? O "eu" que você acredita ser pode ser resultado de uma cadeia causal que não garante sua legitimidade. Você pode se definir por um trauma mal interpretado. Por uma memória adulterada. Por um elogio que fixou um papel social que nunca lhe pertenceu.

A causa suficiente — o elo profundo entre nossas crenças e a realidade — é o que nos falta quando seguimos vivendo no automático, quando a vida se transforma numa colagem de eventos sem costura. E aqui os muitos voltam, mas em outro sentido: somos muitos eus justificados, porém, como em Gettier, sem garantia de estarmos certos.

E na sociedade? Aquela outra multidão externa, da rua, do trabalho, da cidade — não é também ela uma coleção de crenças verdadeiras e justificadas sobre si mesma, mas talvez sem a causa suficiente que garanta sentido? Seguimos protocolos, repetimos gestos, consumimos ideias. Mas por quê? Porque há verdade nisso — ou porque todos ao redor parecem agir do mesmo modo?

A filósofa brasileira Marilena Chauí certa vez disse que “a ideologia é aquilo que transforma o que é histórico em natural”. Pode-se dizer o mesmo das muitas versões de nós mesmos. Naturalizamos identidades formadas por contingências. Em outras palavras: vivemos dentro de problemas de Gettier.

Sair disso talvez seja um esforço por profundidade. Um desejo de alinhar as justificativas com a realidade, não apenas para parecer coerente, mas para de fato saber quem se é. Isso exige um gesto quase subversivo: olhar para dentro e admitir que talvez a verdade que achamos ter não seja suficiente. E, ao olhar para fora, reconhecer que a multidão não é um ruído indistinto, mas um conjunto de indivíduos também atravessados pela dúvida sobre suas próprias causas suficientes.

No final das contas, somos muitos — por dentro e por fora. E o desafio talvez seja este: não viver apenas entre os muitos, mas encontrar, nesse emaranhado, as causas suficientes que sustentem não só nossas crenças, mas nossa existência com sentido.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Qualquer coisa



No turbilhão da vida cotidiana, navegamos através de um mar de crenças, cada uma competindo pela nossa atenção e aceitação. Às vezes, é como se estivéssemos em um jogo de adivinhação, tentando distinguir entre o que é verdadeiro e o que é apenas uma ilusão. Mas será que podemos realmente confiar em nossas crenças? E como podemos distinguir entre conhecimento genuíno e meras conjecturas?

Pessoas tolas acreditam em qualquer coisa, mais tolo é quem acredita nas coisas ditas por um tolo. Se você acredita numa coisa e sua crença é verdadeira, você está justificado em acreditar, isto quer dizer que sabe ou conhece aquela coisa, por isto você não está propenso em acreditar em crenças tolas.

Para começar nossas reflexões, pensemos em uma situação comum: o clima. Você já olhou pela janela de manhã e decidiu levar um guarda-chuva com você, porque parecia que ia chover? Este é um exemplo simples de como usamos nossas crenças para orientar nossas ações. Mas e se você sair sem guarda-chuva e acabar se molhando? Isso não significa que sua crença estava errada? Não necessariamente. O clima é volátil, e mesmo com toda a tecnologia moderna, prever o tempo ainda é uma arte imprecisa. Como o filósofo da ciência Karl Popper argumentaria, a verdadeira ciência está sempre sujeita a revisão e falsificação. Portanto, sua crença no tempo pode ter sido justificada com base nas informações disponíveis, mas ainda assim acabou sendo falsa.

Outro exemplo que podemos considerar é a medicina alternativa. Você já ouviu falar de alguém que jurava que a homeopatia curou sua enxaqueca? Para alguns, isso pode ser prova suficiente de que a homeopatia funciona. No entanto, para outros, como o filósofo da ciência David Hume, isso seria apenas um exemplo de causalidade aparente, não necessariamente causalidade real. Hume nos lembra de que correlação não implica causalidade. A pessoa pode ter se curado por outros fatores, ou até mesmo por placebo. Portanto, a crença na eficácia da homeopatia pode não ser justificada pelo conhecimento científico atual.

Mas então, como podemos distinguir entre crenças justificadas e crenças infundadas? O filósofo epistemológico Edmund Gettier nos deixa com uma pergunta intrigante: "O que é conhecimento?" Ele nos apresenta cenários em que alguém pode ter uma crença verdadeira justificada, mas não pode ser considerado como tendo conhecimento genuíno. Isso nos leva a questionar se a justificação é suficiente para garantir o conhecimento.

Portanto, enquanto navegamos pelas águas turbulentas do conhecimento, devemos estar sempre cientes das armadilhas das nossas próprias crenças. Podemos nos apoiar em evidências e razão para nos guiar, mas devemos sempre estar abertos a questionar e revisar nossas crenças à luz de novas informações. Pois é essa humildade intelectual que nos permite verdadeiramente avançar em direção à compreensão do mundo que nos cerca.