Acorda, toma café, põe o óculos de realidade virtual, entra numa sala com outras pessoas que também estão em casa, sozinhas — mas todas juntas, com corpos escolhidos, vozes filtradas, rostos recriados. É uma reunião de trabalho? Uma conversa entre amigos? Um jogo? Ou tudo isso ao mesmo tempo?
Vivemos
um tempo curioso: o corpo está aqui, mas o "eu" parece expandido —
ou, talvez, fragmentado. A realidade virtual (RV) não é apenas uma tecnologia:
é um novo campo de experiência do eu, um laboratório de subjetividades.
Dia
destes estava ouvindo nossa filósofa Marilena Chauí falando sobre o
tema, realmente temos de pensar a respeito, ela alerta para este mundo novo que
já faz parte de nossas vidas.
Mas
afinal o que é subjetividade?
Subjetividade
é o conjunto de experiências internas e singulares que compõem o modo como
alguém percebe o mundo, a si mesmo e os outros. É uma construção histórica,
social e afetiva — não nasce pronta, mas se forma a partir de vivências,
relações, discursos e tecnologias.
Como
explica Michel Foucault, o sujeito não é um ponto fixo de origem, mas o
efeito de práticas discursivas e sociais. Já para Maurice Merleau-Ponty,
a subjetividade está encarnada: não somos pura mente ou consciência, mas um
corpo-sujeito que percebe e age no mundo.
Portanto,
falar de subjetividade é falar da maneira como nos tornamos alguém, como
experienciamos o que somos — e como isso pode mudar.
Quando
o sujeito se descentra
A
subjetividade moderna, desde Descartes, se ancorava em um "eu penso, logo
existo" — racional, centrado, individual. Com Freud, esse "eu"
começou a tremer: há desejos inconscientes, pulsões, zonas obscuras. Com a
pós-modernidade, o sujeito se liquefaz, como apontou Zygmunt Bauman, e
agora, com a realidade virtual, ele talvez se disperse em identidades
múltiplas, performáticas e temporárias.
O
sujeito não é mais uno: ele é "loginável", programável,
personalizável.
Num
ambiente virtual, alguém pode viver como um guerreiro viking, um gato falante
ou um avatar neutro, sem gênero definido. E, às vezes, se sente mais verdadeiro
assim. O "real" deixa de ser o critério da autenticidade. Como já
dizia Jean Baudrillard, o simulacro ultrapassa o original — o virtual se
torna mais significativo do que o real.
Cotidianos
que nos escapam pelas telas
Quantas
vezes você entrou numa sala virtual para uma reunião e sentiu que o ambiente —
os olhares, os gestos, o tempo — não seguia mais as mesmas regras da vida
física? Ali, a subjetividade é outra: somos falas, expressões faciais
artificiais, reações digitadas. E mesmo assim, sentimos. Rimos. Ficamos tensos.
Temos vergonha. A subjetividade se adapta.
Exemplo:
uma criança de nove anos, tímida na escola, descobre-se desinibida num jogo em
RV. Ela cria um personagem falante, criativo e ousado. Seus pais a observam e
se perguntam: "é ela mesma ou uma outra pessoa?"
O
corpo como memória virtual
Mesmo
quando a realidade é virtual, o corpo reage. O coração acelera. A mão sua. Os
músculos se contraem. A filosofia do corpo, como nos lembra Maurice
Merleau-Ponty, insiste: não temos um corpo — somos um corpo. E esse
corpo, mesmo imerso em bits e avatares, continua sendo nosso ponto de contato
com o mundo.
Mas
agora é um corpo intermediado, reconfigurado — que sente, mas não se mostra por
inteiro. A nova subjetividade é um jogo entre o que se quer mostrar e o que se
deseja esconder.
A
subjetividade como performance
A
filósofa Judith Butler trouxe a ideia de que a identidade é performativa
— ou seja, ela se constrói na repetição de atos. Na RV, isso é ainda mais
literal. A cada login, a cada escolha de avatar, a cada gesto encenado num
mundo virtual, o sujeito se constitui. Não por essência, mas por performance
em rede.
Somos
aquilo que repetimos: o modo como clicamos, falamos, gesticulamos — mesmo no
ambiente simulado.
E
afinal, quem somos?
O
que muda com tudo isso? Talvez não sejamos mais sujeitos estáveis, como se
acreditava. Somos experiências conectadas, em constante mutação, criando
realidades internas e externas ao mesmo tempo. A realidade virtual não cria só
um outro mundo — ela recria o eu.
O
filósofo brasileiro José Gil, ao falar sobre o corpo e a imagem, nos
lembra que a subjetividade não está presa ao corpo, mas se expande em zonas de
visibilidade e presença. Com a RV, ganhamos novas zonas. Novos rostos. Novas
máscaras. E, talvez, novos espelhos.
Em
tempo: talvez estejamos todos nos tornando um pouco mais
plurais, um pouco menos fixos. O mundo virtual não é um escape da realidade — é
uma realidade a mais, onde a subjetividade se torna múltipla, instável,
e, quem sabe, mais verdadeira em sua própria inconstância.