Há
momentos em que somos invadidos pela sensação de estarmos cercados por "os
muitos". No trânsito, num mercado lotado, na multidão silenciosa do
transporte público. Um conjunto de pessoas reunidas por acaso, mas que, paradoxalmente,
compartilham um fragmento de tempo e espaço. O que significa estar entre
muitos? Quem são, afinal, "os muitos"?
Mas
há também outra multidão: a que habita dentro de nós. Aqueles pequenos “eus”
que surgem conforme a situação. O que acorda otimista. O que critica tudo. O
que ama. O que teme. O que apenas observa. Em certas manhãs, somos como um
condomínio interno, com vários moradores discutindo silenciosamente qual
caminho tomar. Não raro, agimos sem saber qual “eu” tomou a decisão. E mesmo
quando achamos que sabemos, há dúvida: foi mesmo escolha ou reflexo? Intuição
ou impulso? Foi, em termos filosóficos, justificado, verdadeiro e acreditado?
Essa
última tríade, a definição clássica de conhecimento herdada de Platão, parecia
sólida até Edmund Gettier, em 1963, publicar um curto artigo que desmontaria
sua simplicidade. Gettier mostrou que é possível termos uma crença verdadeira,
justificada — e mesmo assim não termos conhecimento. Seus contraexemplos
são simples, quase banais, mas desestruturam a base do saber: alguém pode ter
todas as razões do mundo para acreditar em algo, aquilo pode inclusive ser
verdade — mas se a verdade surgir por acaso, sem uma causa suficiente,
então o que há ali não é conhecimento, é sorte.
E
aqui surge o ponto: a causa suficiente. A verdadeira raiz da certeza.
Aquilo que une os elementos da experiência de forma sólida, legítima. Sem ela,
somos apenas muitos fatos desconexos, coincidências andando de mãos dadas com
suposições bem embasadas.
Será
que não somos, também nós, como os exemplos de Gettier? Fragmentos bem
articulados, mas cuja ligação é acidental? Um eu que acredita em si, justifica
seus atos, parece coerente — mas que, sem a causa suficiente, é apenas uma
construção de sorte?
Vivemos
em tempos em que o "saber de si" é moeda valorizada.
Autoconhecimento, propósito, identidade. Mas o que acontece quando essa
identidade é formada por dados verdadeiros e bem justificados... só que por
razões erradas? O "eu" que você acredita ser pode ser resultado de
uma cadeia causal que não garante sua legitimidade. Você pode se definir por um
trauma mal interpretado. Por uma memória adulterada. Por um elogio que fixou um
papel social que nunca lhe pertenceu.
A
causa suficiente — o elo profundo entre nossas crenças e a realidade — é o que
nos falta quando seguimos vivendo no automático, quando a vida se transforma
numa colagem de eventos sem costura. E aqui os muitos voltam, mas em outro
sentido: somos muitos eus justificados, porém, como em Gettier, sem
garantia de estarmos certos.
E
na sociedade? Aquela outra multidão externa, da rua, do trabalho, da cidade —
não é também ela uma coleção de crenças verdadeiras e justificadas sobre si
mesma, mas talvez sem a causa suficiente que garanta sentido? Seguimos
protocolos, repetimos gestos, consumimos ideias. Mas por quê? Porque há verdade
nisso — ou porque todos ao redor parecem agir do mesmo modo?
A filósofa brasileira Marilena Chauí certa vez disse que “a ideologia é aquilo
que transforma o que é histórico em natural”. Pode-se dizer o mesmo das muitas
versões de nós mesmos. Naturalizamos identidades formadas por contingências. Em
outras palavras: vivemos dentro de problemas de Gettier.
Sair
disso talvez seja um esforço por profundidade. Um desejo de alinhar as
justificativas com a realidade, não apenas para parecer coerente, mas para de
fato saber quem se é. Isso exige um gesto quase subversivo: olhar para
dentro e admitir que talvez a verdade que achamos ter não seja suficiente. E,
ao olhar para fora, reconhecer que a multidão não é um ruído indistinto, mas um
conjunto de indivíduos também atravessados pela dúvida sobre suas próprias
causas suficientes.
No
final das contas, somos muitos — por dentro e por fora. E o desafio talvez seja
este: não viver apenas entre os muitos, mas encontrar, nesse emaranhado, as
causas suficientes que sustentem não só nossas crenças, mas nossa existência
com sentido.
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