Recordo
que num certo dia, um tempinho atrás, peguei um ônibus lotado. Daqueles em que
não há onde segurar, e o ar-condicionado só sopra no motorista. Uma senhora
tentava equilibrar as sacolas no colo enquanto um adolescente, com fones de ouvido,
ocupava o assento preferencial. Olhei em volta e pensei: e se ele estivesse no
lugar dela? E se eu estivesse? Foi nesse instante, no balanço incômodo do
coletivo, que me lembrei de John Rawls.
Rawls
propôs uma ideia que, se virasse moda, mudaria o jogo da convivência humana: a
justiça deve ser pensada sem saber quem seremos dentro da sociedade.
Imagine criar as regras do mundo sem saber sua cor, classe, saúde, talento ou
gênero. Você aceitaria um sistema onde 1% vive em condomínios com lagos
artificiais e 99% sobrevive com transporte colapsado? Provavelmente não. Porque
o problema é que a maioria das regras sociais são escritas depois que já
sabemos de que lado da cidade nascemos.
Rawls
chamou isso de “posição original” — uma espécie de tabuleiro neutro onde
todos planejam a sociedade como se não soubessem onde cairão no dado da vida. E
isso faz todo o sentido: ninguém colocaria armadilhas num caminho que pode ser
o próprio.
Mas
aqui entra uma ideia inovadora: e se levássemos essa ideia para os nossos
micro-contratos diários? E se aplicássemos o "véu da ignorância"
à fila do mercado, ao grupo de WhatsApp da família, ao momento de distribuir
tarefas num projeto do trabalho?
No
supermercado, você deixa o caixa rápido para alguém com menos itens, porque poderia
ser você. No trabalho, você ouve aquela colega com dificuldade de expressão
porque poderia ser você no lugar dela, com menos léxico e mais medo. No
relacionamento amoroso, você se pergunta: “será que estou criando regras
afetivas que só me favorecem?” — porque poderia ser o outro lado do amor.
Rawls
também afirmava que desigualdades só são justificáveis se beneficiarem os
mais vulneráveis. Ou seja, o elevador social precisa funcionar para todos —
e não apenas para os que já moram na cobertura. O mérito, por mais bonito que
pareça, é uma loteria genética e circunstancial. Você nasceu inteligente? Sorte
sua. Nasceu em um lar que valorizava a leitura? Jackpot (prêmio acumulado).
Agora, o que você faz com isso: constrói pontes ou apenas decora muros com seu
sobrenome?
Se
cada um de nós começasse a criar suas pequenas regras com base na possibilidade
de ser o outro, talvez não precisássemos de leis para garantir o que a
empatia resolveria sozinha. Rawls não inventou um mundo novo — ele apenas
sugeriu que o imaginássemos antes de nos sabermos dentro dele. E isso
muda tudo.
Quando
desci do ônibus, aquela senhora já havia ido embora. O adolescente continuava
sentado, ainda com os fones, alheio a tudo. Mas, de repente, tive vontade de
voltar, sentar ao lado dele e perguntar: “Ei, e se fosse sua avó ali?”
"Se
fosse você no meu lugar: a hora do recreio com John Rawls"
Na
escola pública do bairro, o recreio começa com a fila na cantina. Crianças
apressadas, coxinhas esgotadas em três minutos, e um menino que, mais uma vez,
fica só com o suco. Atrás dele, um grupo comenta as roupas de outro colega —
tênis falsificado, calça encurtada no tornozelo, mochila com zíper improvisado
por um clipe de papel.
Eu
estou ali como visitante, numa ação cultural com livros e conversas. Mas quem
está realmente presente é ele — John Rawls, ainda que invisível, andando comigo
entre os bancos do pátio. E se a escola fosse desenhada por alguém que não
soubesse se nasceria com ou sem acesso a livros em casa, com ou sem café da
manhã, com ou sem um ambiente silencioso para estudar? Como seria?
Rawls
diria: comece desenhando a escola a partir da ignorância sobre sua origem.
Sem saber se você será o filho da professora ou o da diarista. O que nasceria
disso não seriam apenas boas intenções pedagógicas, mas estruturas que
compensam, que redistribuem, que cuidam. Merenda reforçada, acolhimento
emocional, biblioteca aberta até mais tarde, professores valorizados, política
de escuta, e sobretudo, igualdade de oportunidades reais — não só no
discurso de cartazes.
Mas
Rawls também caminharia até a sala dos professores e perguntaria: "como
está sendo feita a distribuição do tempo e dos recursos?". Se só os
melhores alunos ganham mais atenção, isso é mérito ou reforço do privilégio? Se
as crianças mais problemáticas são isoladas, isso é disciplina ou desistência
disfarçada?
Talvez
o maior desafio da escola — e da sociedade — seja equilibrar a equidade com
a liberdade. Porque liberdade de aprender não basta se uns nascem já com os
livros abertos diante deles e outros, nem sequer com luz elétrica em casa. O
Princípio da Diferença de Rawls entra aí: desigualdades são toleráveis apenas
se fizerem a vida dos mais frágeis melhorarem. Não se trata de todos terem
o mesmo — mas de todos terem as mesmas chances de alcançar o melhor.
Na
hora de ir embora, vejo uma professora ajudando um aluno a dobrar o uniforme.
Ele sorri, ajeita a gola. Talvez esse gesto seja pequeno, mas Rawls, se
estivesse ali de verdade, talvez sorrisse também. Porque é assim que se começa
a justiça: não esperando o mundo mudar, mas se perguntando: e se fosse eu
ali com aquele zíper quebrado?
"Se
fosse você no meu lugar: uma rodada de Rawls no boteco"
Sexta-feira
à noite, bar da esquina, garçom gente boa, cerveja trincando, e aquele grupo de
amigos que sobreviveu aos anos, mas mal sobrevive às eleições. Um puxa assunto:
“imposto é roubo”. Outro rebate: “rico devia pagar ainda mais”. Do outro lado
da mesa, alguém tenta mudar de assunto com futebol, mas já era tarde. O clima
virou debate. E eu, no meio deles, imaginei o Rawls pegando uma cadeira de
plástico, servindo-se de uma porção de batata frita, e pedindo licença para
entrar na conversa.
A
primeira coisa que ele diria, com sotaque neutro e paciência de professor,
seria: vamos imaginar que vocês vão construir a sociedade do zero. Mas sem
saber quem vão ser nela. Vocês aceitam um modelo em que alguns podem lucrar
milhões enquanto outros dependem de doações pra comprar gás? Mesmo sem saber se
nascerão como empresários ou entregadores de app?
O
silêncio da mesa viria rápido — talvez não pela profundidade da pergunta, mas
porque é difícil debater com alguém que não está berrando, e sim propondo um
jogo de imaginação.
No
fundo, o que Rawls oferece é um método para pensar em comum mesmo com
valores diferentes. Ele não obriga ninguém a pensar como o outro, mas
propõe um ponto de partida neutro. A política, para ele, deveria se basear num consenso
razoável — aquele espaço estreito onde pessoas com visões distintas ainda
conseguem construir algo juntas. Algo justo, mesmo sem concordar em tudo.
No
boteco, isso significaria parar de pensar só com o próprio CPF. Significaria
perguntar: “que sociedade eu ajudaria a construir se não soubesse se nasceria
branco, negro, homem, mulher, hétero, gay, saudável, doente, com ou sem
herança?” A política sairia da arena dos memes e viraria um exercício de
imaginação solidária.
Alguém
retrucaria: “mas e o mérito, o esforço pessoal?” Rawls ouviria com calma,
tomaria um gole de cerveja e responderia: “se você nasceu com certas
vantagens — inteligência, beleza, apoio familiar, saúde — que parte disso foi
realmente mérito seu?” E completaria: “o mérito, quando é justo, não
exclui; ele inspira. Mas quando vira desculpa para desigualdade, é só ego
fantasiado de justiça.”
A
conta chega, a discussão se esfria. Amigos se abraçam, meio tensos, meio
cansados, mas ainda amigos. Rawls levanta da cadeira invisível, sorri com
aquela cara de quem nunca brigaria em caixa de comentário, e vai embora em
silêncio.
E eu fico ali, pensando: talvez o problema não seja discordar. Talvez o
problema seja nunca tentar imaginar o outro lado da mesa — ou da vida.
"Se
fosse você no meu lugar: pronto-socorro com Rawls"
Duas
da manhã. Pronto-socorro lotado. Bebê chorando, senhor com tosse insistente,
gente encostada nas paredes, esperando ser chamada. A televisão do canto repete
as manchetes, como se a dor daquelas pessoas fosse só mais uma notícia. Eu
estou ali acompanhando um parente, cansado, como todos. E, em meio ao cheiro de
álcool e desespero contido, sinto alguém sentar ao meu lado: é Rawls, o
filósofo invisível das filas injustas.
Ele
não olha o celular, não reclama da demora, apenas observa. E depois de alguns
minutos, diz: "É aqui que se vê o contrato social falhando."
Rawls
acreditava que a estrutura básica da sociedade deveria ser justa para todos —
não só no papel, mas na vida concreta. E nada mais concreto que uma sala de
espera de hospital público. Porque aqui ninguém é "cidadão de bem",
"empreendedor", "patriota" ou "militante". Aqui
todo mundo é, antes de tudo, corpo vulnerável, sujeito ao acaso
biológico.
Ele
me olha e pergunta, como quem já sabe a resposta: “se você fosse escolher o
sistema de saúde sem saber se nasceria saudável ou com uma doença rara, com
plano privado ou dependendo do SUS, como o desenharia?”
A
pergunta é incômoda. Porque ela nos obriga a pensar a sociedade não a partir
do nosso lugar fixo, mas a partir da possibilidade de estarmos em qualquer
lugar — inclusive no chão da enfermaria, esperando uma maca que não chega.
No
mundo de Rawls, a justiça não é caridade, nem favor. É um pacto onde os mais
frágeis são a medida da organização do todo. Se a política de saúde
privilegia quem pode pagar, o contrato está quebrado. Se os médicos atendem
vinte pacientes por hora por pura exaustão, o contrato está fraturado. Se há
mais investimento em estética de clínica privada do que em saneamento básico, o
contrato foi assinado só por quem já estava no andar de cima.
E
aqui vem o detalhe que mais me impressiona em Rawls: ele não propõe utopia. Ele
aceita que haverá desigualdades — mas exige que elas sirvam para melhorar a
vida dos que têm menos. Ou seja, a diferença só é justa quando é ponte, não
muro.
Uma
enfermeira chama meu parente pelo nome. Levanto. Antes de entrar, olho de novo
para o banco. Rawls já não está. Mas sua pergunta ainda vibra na cabeça:
se fosse eu na maca, no leito, sem plano, sem voz — como eu gostaria que o
sistema fosse?
"Se
fosse você no meu lugar: Rawls no condomínio fechado"
Domingo
de sol. Grama aparada, crianças de bicicleta, churrasqueiras acesas, silêncio
quase europeu entre uma rua e outra. Caminho por um condomínio fechado, desses
com nomes estrangeiros e guardas na portaria que nos tratam com aquele
formalismo automático. Estou visitando um amigo, e confesso: dá um certo alívio
andar por um lugar onde não se ouvem buzinas nem latidos de cachorro atrás de
grades.
Mas
é claro que Rawls está ali, invisível, caminhando comigo pela rua sem buracos.
Ele olha ao redor, vê os muros altos, os sistemas de câmera, o playground
colorido. Sorri com educação, mas pergunta em voz baixa: “e quem ficou do
lado de fora?”
É
a pergunta que ninguém gosta de fazer quando está dentro. O condomínio é a
realização arquitetônica da ideia de privilégio seguro. Aqui, quem conseguiu
escapar das falhas da cidade constrói uma versão melhorada da mesma — só que
para poucos.
Rawls
não criticaria o conforto em si. Mas questionaria o sistema que o produz. Se a
cidade inteira fosse construída a partir da “posição original” — ou seja, se
todos tivessem que desenhá-la sem saber se nasceriam dentro ou fora desses
muros, será que esses muros sequer existiriam?
Talvez
as ruas seriam melhores para todos. As escolas públicas teriam o mesmo nível
das particulares. Os parques seriam frequentáveis por qualquer criança, e os
guardas, substituídos por confiança cidadã. Mas o que vemos é o contrário: à
medida que os condomínios se expandem, a cidade se fragmenta. Há uma
duplicação de serviços — segurança, lazer, transporte — onde os mais ricos
criam sua própria cidade paralela, alheia à sorte dos outros.
Rawls
caminharia até a portaria, apertaria o botão do interfone, e diria: a
liberdade de viver bem só é justa se não excluir os outros da possibilidade de
também viverem com dignidade. Caso contrário, ela é apenas uma versão
sofisticada do egoísmo.
Na
hora de ir embora, vejo uma funcionária uniformizada esperando o ônibus do lado
de fora, debaixo do sol. Ela passou a manhã dentro, servindo. E agora volta
para a cidade real, onde os buracos não têm nome em francês.
Antes
de fechar o portão, Rawls olha para ela, depois para mim, e pergunta de novo:
e se fosse você no lugar dela?
E
é isso. Rawls já apareceu no ônibus, no bar, no hospital, no condomínio —
sempre puxando conversa onde ninguém está muito a fim de filosofar. Mas ele
insiste. E talvez seja esse o papel da filosofia: cutucar o conforto,
provocar empatia, fazer a gente imaginar o outro lugar, o outro rosto, a outra
sorte.
Ele
não veio com fórmulas prontas, nem promessas de mundo ideal. Só com uma ideia
simples e difícil: a justiça começa quando paramos de organizar o mundo só a
partir de onde estamos.
A
cada cenário, Rawls nos convida a uma pergunta essencial:
“E se fosse você no lugar do outro?”
No
fundo, viver eticamente talvez seja isso — um exercício contínuo de imaginar-se
fora do próprio lugar, antes de julgar, votar, escolher ou construir.
E
mesmo que a gente não veja Rawls por aí, ele segue à espreita, nas entrelinhas
das decisões mais banais.
Na
próxima vez que você entrar numa fila, abrir a boca num debate ou passar por
alguém invisível na calçada... quem sabe ele não esteja ali, ao seu lado,
fazendo aquela pergunta que não deixa ninguém sair igual?
Embora
sua obra principal, Uma Teoria da Justiça, tenha sido publicada em 1971,
as questões que ele levanta continuam totalmente vivas no debate político e
social contemporâneo. Como podemos perceber Rawls é atual porque propõe um
jeito de pensar a sociedade com justiça, sem utopia, mas com imaginação ética.
Ele não oferece soluções mágicas, mas um ponto de partida para pensar em
conjunto — mesmo entre quem discorda.