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sexta-feira, 9 de maio de 2025

Lógica dos Universais

Outro dia, eu fazia compras no supermercado, e fiquei observando as pessoas tentando escolher um molho de tomate. Tantas marcas, tantos rótulos, tantas promessas: "caseiro", "tradicional", "com manjericão", "premium", "italiano". E de repente me veio essa pergunta estranha: existe um molho de tomate universal? Um que funcione para todos os gostos, todas as receitas, todos os contextos? Claro que não. Mas a pergunta revelou algo mais profundo: por que temos essa vontade de achar o "universal"? O que, afinal, é o universal?

Falamos de “universais” como se fossem entidades invisíveis pairando sobre as coisas, garantindo que duas mesas sejam "mesas", que dois sentimentos de amor sejam “amor”, que duas cores azul sejam “azul”. Mas essa ideia — a de que por trás de cada coisa existe um modelo eterno — é mais velha que Platão. Ele chamava isso de "formas" ou "ideias". A “mesidade” da mesa estaria numa ideia de mesa, fora do tempo, perfeita. E nós aqui, lidando com versões mais ou menos boas dessa forma ideal.

Só que Aristóteles já torceu o nariz. Para ele, os universais estavam nas coisas mesmas, e não num mundo paralelo. A “mesidade” mora na mesa, não no céu das ideias. Já aí começava uma divergência que a filosofia carregaria por séculos: o universal é algo real, algo mental, ou apenas uma palavra?

Na Idade Média, esse debate virou briga de gente grande: realistas contra nominalistas. Pedro Abelardo, por exemplo, tentou fazer uma espécie de meio-termo entre os dois extremos. Para ele, os universais não eram nem puras palavras (como queriam os nominalistas), nem entidades reais separadas (como queriam os realistas mais radicais). Abelardo dizia que os universais existem como conceitos mentais — eles expressam semelhanças reais entre as coisas, mas não têm existência por si sós. Uma tentativa elegante de salvar tanto a razão quanto a experiência.

Mas aí vem Guilherme de Ockham, o famoso franciscano que gostava de navalhas — filosóficas, claro. Ockham radicalizou: para ele, os universais não passam de nomes, convenções linguísticas úteis para comunicar. Se eu digo "cachorro", é só uma forma prática de me referir a vários indivíduos semelhantes. Não há "cachorricidade" flutuando por aí. A realidade, segundo ele, é feita só de indivíduos. O resto é economia mental. E sua navalha cortava firme: “não multiplicar os entes sem necessidade”.

Aqui começa a virar jogo: os universais talvez revelem mais sobre nós do que sobre o mundo. A busca pelo universal é uma tentativa de dar ordem ao caos, de dizer que há uma unidade por trás da diversidade. Como quem olha para todas as formas de amor — maternal, erótico, fraterno, espiritual — e pergunta: o que há de comum entre eles?

A filosofia contemporânea, especialmente com Wittgenstein, começou a relativizar ainda mais essa busca. Ele dizia que não há uma essência única por trás de tudo que chamamos de “jogo”, por exemplo. Há apenas semelhanças de família, fios que se cruzam, padrões que se repetem, mas não um centro fixo.

Será que o universal é só um espelho do nosso desejo de simplificar? De encontrar um padrão no que é múltiplo? Quando dizemos que todo ser humano merece dignidade, estamos apelando a um universal moral. Mas ao mesmo tempo, quando observamos culturas distintas, vemos que essa dignidade pode se manifestar de formas radicalmente diferentes. O universal, nesse caso, não é um ponto de partida, mas talvez um horizonte.

A filósofa brasileira Marilena Chauí chama atenção para a ilusão dos universais como instrumento ideológico. Ela mostra como certas ideias se travestem de universais para impor uma perspectiva única. O "universal" pode ser apenas o ponto de vista de alguém com muito poder e pouca humildade, tentando convencer o mundo de que sua forma de ver é a forma correta.

No fundo, talvez o universal não exista como coisa, mas como tensão: entre o desejo de ver o comum e a necessidade de preservar o singular. Quando digo que todos queremos ser amados, isso pode parecer universal. Mas cada um deseja isso de um jeito, com um tom, um ritmo, uma história.

Talvez os universais não sejam receitas prontas, nem fórmulas fixas, mas pontes. Modos de escutar, de traduzir, de reconhecer a semelhança no meio da diferença — e a diferença no meio da semelhança. Como quem reconhece uma canção tocada em instrumentos diversos: ainda é a mesma melodia, mas nunca do mesmo jeito.

E, voltando ao molho de tomate: talvez não haja um universal para agradar todos os gostos. Mas há um tempero que todos procuram — aquele que faz sentido no seu prato, no seu dia, no seu mundo. E talvez o mais universal de todos seja esse: o desejo de que algo nos sirva de verdade. Mesmo que, para isso, cada um tenha que temperar à sua maneira.