Outro dia, eu fazia compras no supermercado, e fiquei observando as pessoas tentando escolher um molho de tomate. Tantas marcas, tantos rótulos, tantas promessas: "caseiro", "tradicional", "com manjericão", "premium", "italiano". E de repente me veio essa pergunta estranha: existe um molho de tomate universal? Um que funcione para todos os gostos, todas as receitas, todos os contextos? Claro que não. Mas a pergunta revelou algo mais profundo: por que temos essa vontade de achar o "universal"? O que, afinal, é o universal?
Falamos
de “universais” como se fossem entidades invisíveis pairando sobre as coisas,
garantindo que duas mesas sejam "mesas", que dois sentimentos de amor
sejam “amor”, que duas cores azul sejam “azul”. Mas essa ideia — a de que por
trás de cada coisa existe um modelo eterno — é mais velha que Platão. Ele
chamava isso de "formas" ou "ideias". A “mesidade” da mesa
estaria numa ideia de mesa, fora do tempo, perfeita. E nós aqui, lidando com
versões mais ou menos boas dessa forma ideal.
Só
que Aristóteles já torceu o nariz. Para ele, os universais estavam nas coisas
mesmas, e não num mundo paralelo. A “mesidade” mora na mesa, não no céu das
ideias. Já aí começava uma divergência que a filosofia carregaria por séculos:
o universal é algo real, algo mental, ou apenas uma palavra?
Na
Idade Média, esse debate virou briga de gente grande: realistas contra
nominalistas. Pedro Abelardo, por exemplo, tentou fazer uma espécie de
meio-termo entre os dois extremos. Para ele, os universais não eram nem puras
palavras (como queriam os nominalistas), nem entidades reais separadas (como
queriam os realistas mais radicais). Abelardo dizia que os universais existem
como conceitos mentais — eles expressam semelhanças reais entre as coisas, mas
não têm existência por si sós. Uma tentativa elegante de salvar tanto a razão
quanto a experiência.
Mas
aí vem Guilherme de Ockham, o famoso franciscano que gostava de navalhas —
filosóficas, claro. Ockham radicalizou: para ele, os universais não passam de nomes,
convenções linguísticas úteis para comunicar. Se eu digo "cachorro",
é só uma forma prática de me referir a vários indivíduos semelhantes. Não há
"cachorricidade" flutuando por aí. A realidade, segundo ele, é feita
só de indivíduos. O resto é economia mental. E sua navalha cortava firme: “não
multiplicar os entes sem necessidade”.
Aqui
começa a virar jogo: os universais talvez revelem mais sobre nós do que
sobre o mundo. A busca pelo universal é uma tentativa de dar ordem ao caos, de
dizer que há uma unidade por trás da diversidade. Como quem olha para todas as
formas de amor — maternal, erótico, fraterno, espiritual — e pergunta: o que há
de comum entre eles?
A
filosofia contemporânea, especialmente com Wittgenstein, começou a relativizar
ainda mais essa busca. Ele dizia que não há uma essência única por trás de tudo
que chamamos de “jogo”, por exemplo. Há apenas semelhanças de família, fios que
se cruzam, padrões que se repetem, mas não um centro fixo.
Será
que o universal é só um espelho do nosso desejo de simplificar? De encontrar um
padrão no que é múltiplo? Quando dizemos que todo ser humano merece dignidade,
estamos apelando a um universal moral. Mas ao mesmo tempo, quando observamos
culturas distintas, vemos que essa dignidade pode se manifestar de formas
radicalmente diferentes. O universal, nesse caso, não é um ponto de partida,
mas talvez um horizonte.
A
filósofa brasileira Marilena Chauí chama atenção para a ilusão dos universais
como instrumento ideológico. Ela mostra como certas ideias se travestem de
universais para impor uma perspectiva única. O "universal" pode ser
apenas o ponto de vista de alguém com muito poder e pouca humildade, tentando
convencer o mundo de que sua forma de ver é a forma correta.
No
fundo, talvez o universal não exista como coisa, mas como tensão: entre
o desejo de ver o comum e a necessidade de preservar o singular. Quando digo
que todos queremos ser amados, isso pode parecer universal. Mas cada um deseja
isso de um jeito, com um tom, um ritmo, uma história.
Talvez os universais não sejam receitas prontas, nem fórmulas fixas, mas pontes. Modos de escutar, de traduzir, de reconhecer a semelhança no meio da diferença — e a diferença no meio da semelhança. Como quem reconhece uma canção tocada em instrumentos diversos: ainda é a mesma melodia, mas nunca do mesmo jeito.
E, voltando ao molho de tomate: talvez não haja um universal para agradar todos os gostos. Mas há um tempero que todos procuram — aquele que faz sentido no seu prato, no seu dia, no seu mundo. E talvez o mais universal de todos seja esse: o desejo de que algo nos sirva de verdade. Mesmo que, para isso, cada um tenha que temperar à sua maneira.