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quinta-feira, 10 de julho de 2025

Éthos e Hegemonia

Quando o jeito de ser vira lei

Já parou para pensar por que, em certos grupos, um jeito de falar, vestir, agir ou até mesmo pensar parece “natural”, enquanto outros modos são vistos como estranhos ou errados? Por que certas ideias, valores e estilos de vida dominam a cena social, como se fossem a única forma “correta” de existir?

É aqui que entram dois conceitos poderosos — éthos e hegemonia — que, juntos, explicam como o poder se infiltra no cotidiano, moldando não só nossas instituições, mas a própria alma das comunidades.

Éthos vem do grego e significa algo como “caráter” ou “modo de ser”. Não é apenas um traço individual, mas o espírito coletivo que orienta o comportamento e as crenças dentro de um grupo. É o pano de fundo que faz com que certas atitudes pareçam “normais” ou até “virtuosas” para quem está dentro daquele universo.

Já hegemonia é uma ideia central na obra do pensador italiano Antonio Gramsci. Para ele, a hegemonia não é apenas dominação por força, mas o domínio cultural e ideológico — quando uma classe ou grupo social consegue fazer com que sua visão de mundo seja aceita como universal e legítima. Essa hegemonia se espalha pelo éthos coletivo, naturalizando o poder e ocultando as relações de opressão que o sustentam.

Na prática, pense nas escolas, na mídia, nas redes sociais. Elas ajudam a construir o éthos dominante: a “forma correta” de ser cidadão, consumidor, trabalhador, jovem, mulher ou homem. O que Gramsci mostra é que o poder não depende só da repressão, mas da capacidade de convencer as pessoas a “querer o que é necessário” para manter a ordem vigente.

Essa dinâmica aparece claramente nas narrativas sobre meritocracia, por exemplo — a ideia de que quem trabalha duro sobe na vida e merece seu lugar. Quem não consegue, supostamente, falhou por incompetência própria. Essa crença está tão entranhada no éthos social que poucas vezes é questionada, mesmo que esconda desigualdades estruturais.

O éthos hegemonicamente construído também pode ditar padrões de beleza, comportamento e até mesmo linguagem, criando grupos de exclusão e marginalização. Quem foge desses padrões pode ser visto como “fora do lugar”, “anormal” ou “rebelde”. Mas, justamente aí reside a possibilidade da transformação social: contestar o éthos dominante é um passo para desestabilizar a hegemonia.

Hoje, um campo onde o éthos hegemônico aparece de forma cristalina é nas redes sociais. Plataformas como Instagram e TikTok estabelecem padrões estéticos, estilos de vida e formas de comunicação que rapidamente se tornam “normais” e desejáveis. Influenciadores e marcas moldam gostos e comportamentos, fazendo com que milhões sigam tendências sem perceber que estão reproduzindo um modo de ser imposto — um éthos digital que valoriza a performance, o consumo e a aprovação social.

Mas também surgem resistências: movimentos sociais, como o Black Lives Matter ou os coletivos LGBTQIA+, desafiam os éthos dominantes ao reivindicar novos modos de ser e existir que rompem com padrões tradicionais. Eles buscam criar uma contra-hegemonia, propondo um éthos mais plural, inclusivo e crítico das desigualdades.

No ambiente corporativo, o éthos hegemônico é visível nas culturas organizacionais que valorizam competitividade, produtividade e conformidade. A ideia do “funcionário ideal” muitas vezes se traduz num padrão de comportamento que exclui quem não se encaixa, seja por gênero, raça, estilo ou crenças. A contestação a esses padrões internos pode gerar conflitos, mas também impulsiona debates sobre diversidade e inclusão — justamente um esforço para alterar o éthos dominante e, com isso, a hegemonia cultural dentro das empresas.

Gramsci acreditava que os grupos subalternos precisavam criar sua própria “contra-hegemonia” — uma nova cultura e um novo éthos que questionem o status quo e ampliem o sentido de liberdade e justiça. Essa luta é constante, feita nas pequenas batalhas diárias de percepção, linguagem e comportamento.

Por isso, pensar em éthos e hegemonia é olhar para o poder não só como algo que impõe de fora, mas que vive e se reproduz dentro de cada um de nós. É um convite para refletir sobre quais modos de ser estamos adotando e por quê — e se eles realmente nos pertencem ou foram impostos.

No fim das contas, o éthos é o palco onde a hegemonia dança — e só compreendendo essa dança é que podemos escolher se queremos ser os dançarinos oficiais ou inventar uma nova coreografia.


sexta-feira, 9 de maio de 2025

Lógica dos Universais

Outro dia, eu fazia compras no supermercado, e fiquei observando as pessoas tentando escolher um molho de tomate. Tantas marcas, tantos rótulos, tantas promessas: "caseiro", "tradicional", "com manjericão", "premium", "italiano". E de repente me veio essa pergunta estranha: existe um molho de tomate universal? Um que funcione para todos os gostos, todas as receitas, todos os contextos? Claro que não. Mas a pergunta revelou algo mais profundo: por que temos essa vontade de achar o "universal"? O que, afinal, é o universal?

Falamos de “universais” como se fossem entidades invisíveis pairando sobre as coisas, garantindo que duas mesas sejam "mesas", que dois sentimentos de amor sejam “amor”, que duas cores azul sejam “azul”. Mas essa ideia — a de que por trás de cada coisa existe um modelo eterno — é mais velha que Platão. Ele chamava isso de "formas" ou "ideias". A “mesidade” da mesa estaria numa ideia de mesa, fora do tempo, perfeita. E nós aqui, lidando com versões mais ou menos boas dessa forma ideal.

Só que Aristóteles já torceu o nariz. Para ele, os universais estavam nas coisas mesmas, e não num mundo paralelo. A “mesidade” mora na mesa, não no céu das ideias. Já aí começava uma divergência que a filosofia carregaria por séculos: o universal é algo real, algo mental, ou apenas uma palavra?

Na Idade Média, esse debate virou briga de gente grande: realistas contra nominalistas. Pedro Abelardo, por exemplo, tentou fazer uma espécie de meio-termo entre os dois extremos. Para ele, os universais não eram nem puras palavras (como queriam os nominalistas), nem entidades reais separadas (como queriam os realistas mais radicais). Abelardo dizia que os universais existem como conceitos mentais — eles expressam semelhanças reais entre as coisas, mas não têm existência por si sós. Uma tentativa elegante de salvar tanto a razão quanto a experiência.

Mas aí vem Guilherme de Ockham, o famoso franciscano que gostava de navalhas — filosóficas, claro. Ockham radicalizou: para ele, os universais não passam de nomes, convenções linguísticas úteis para comunicar. Se eu digo "cachorro", é só uma forma prática de me referir a vários indivíduos semelhantes. Não há "cachorricidade" flutuando por aí. A realidade, segundo ele, é feita só de indivíduos. O resto é economia mental. E sua navalha cortava firme: “não multiplicar os entes sem necessidade”.

Aqui começa a virar jogo: os universais talvez revelem mais sobre nós do que sobre o mundo. A busca pelo universal é uma tentativa de dar ordem ao caos, de dizer que há uma unidade por trás da diversidade. Como quem olha para todas as formas de amor — maternal, erótico, fraterno, espiritual — e pergunta: o que há de comum entre eles?

A filosofia contemporânea, especialmente com Wittgenstein, começou a relativizar ainda mais essa busca. Ele dizia que não há uma essência única por trás de tudo que chamamos de “jogo”, por exemplo. Há apenas semelhanças de família, fios que se cruzam, padrões que se repetem, mas não um centro fixo.

Será que o universal é só um espelho do nosso desejo de simplificar? De encontrar um padrão no que é múltiplo? Quando dizemos que todo ser humano merece dignidade, estamos apelando a um universal moral. Mas ao mesmo tempo, quando observamos culturas distintas, vemos que essa dignidade pode se manifestar de formas radicalmente diferentes. O universal, nesse caso, não é um ponto de partida, mas talvez um horizonte.

A filósofa brasileira Marilena Chauí chama atenção para a ilusão dos universais como instrumento ideológico. Ela mostra como certas ideias se travestem de universais para impor uma perspectiva única. O "universal" pode ser apenas o ponto de vista de alguém com muito poder e pouca humildade, tentando convencer o mundo de que sua forma de ver é a forma correta.

No fundo, talvez o universal não exista como coisa, mas como tensão: entre o desejo de ver o comum e a necessidade de preservar o singular. Quando digo que todos queremos ser amados, isso pode parecer universal. Mas cada um deseja isso de um jeito, com um tom, um ritmo, uma história.

Talvez os universais não sejam receitas prontas, nem fórmulas fixas, mas pontes. Modos de escutar, de traduzir, de reconhecer a semelhança no meio da diferença — e a diferença no meio da semelhança. Como quem reconhece uma canção tocada em instrumentos diversos: ainda é a mesma melodia, mas nunca do mesmo jeito.

E, voltando ao molho de tomate: talvez não haja um universal para agradar todos os gostos. Mas há um tempero que todos procuram — aquele que faz sentido no seu prato, no seu dia, no seu mundo. E talvez o mais universal de todos seja esse: o desejo de que algo nos sirva de verdade. Mesmo que, para isso, cada um tenha que temperar à sua maneira.